COVID-19 e comunidades quilombolas

STF
1006
Direito Constitucional
Geral
2 min de leitura
Atualizado em 14 de novembro de 2025

Este julgado integra o

Informativo STF 1006

Comentário Damásio

Resumo

É dever do Poder Público elaborar e implementar plano para o enfrentamento da pandemia COVID-19 nas comunidades quilombolas. Deve ser suspensa a tramitação de demandas judiciais e recursos vinculados envolvendo direitos territoriais das comunidades quilombolas, tais como ações possessórias, reivindicatórias de propriedade, imissões na posse e anulatórias de demarcação até o término da pandemia.

Conteúdo Completo

É dever do Poder Público elaborar e implementar plano para o enfrentamento da pandemia COVID-19 nas comunidades quilombolas.
Deve ser suspensa a tramitação de demandas judiciais e recursos vinculados envolvendo direitos territoriais das comunidades quilombolas, tais como ações possessórias, reivindicatórias de propriedade, imissões na posse e anulatórias de demarcação até o término da pandemia. 

É dever do Poder Público elaborar e implementar plano para o enfrentamento da pandemia COVID-19 nas comunidades quilombolas.

 

Os remanescentes de quilombos constituem grupo tradicional constituído a partir da resistência e luta pela liberdade, considerado o período de escravidão. Situam-se, majoritariamente, em zona rural, dedicando-se a atividades atinentes a agropecuária e extrativismo. A Constituição Federal (CF) preceitua que é dever do Estado proteger e promover o patrimônio cultural material e imaterial, inclusive modos de criar, fazer e viver, sítios, artefatos e expressões (CF, arts. 215, § 1º, e 216, I a V) (1).

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao apreciar a Ação Popular 3.388 (2), na qual questionada a definição dos limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, proclamou o espírito fraternal e solidário dos citados preceitos, voltados à compensação de desvantagens historicamente acumuladas e à efetivação de integração comunitária.

Ante o quadro de violação generalizada de direitos fundamentais dos quilombolas em virtude da pandemia da Covid-19, a agravar o estado de vulnerabilidade e a marginalização histórica, é imprescindível elaborar e executar plano governamental nacional com a participação de representantes da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – Conaq, por meio do qual formulados objetivos, metas, ações programáticas, cronograma de implementação e metodologias de avaliação, contemplando-se, ao menos, providências visando a ampliação das estratégias de prevenção e do acesso aos meios de testagem e aos serviços públicos de saúde, controle de entrada nos territórios por terceiros, considerado isolamento social comunitário e distribuição de alimentos e material de higiene e desinfecção.

Além disso, ante o interesse público, surge pertinente a constituição de grupo de trabalho interdisciplinar e paritário, por meio do qual viabilizado o controle da execução dos programas e ações decorrentes do Plano de enfrentamento à pandemia nas comunidades quilombolas.

Um ponto importante a destacar é que a verificação da efetividade dessa política pública exige monitoramento e avaliação qualificada, garantindo-se a adequada alocação de recursos considerados os objetivos e metas propostos.

Para a consecução desse objetivo, é imprescindível a consolidação de insumos a subsidiarem a adequada atuação dos órgãos, autarquias e instituições. O rígido acompanhamento da doença, levando em conta evolução do contágio, da taxa de recuperação e de letalidade, pressupõe consideração das especificidades da população que se pretende atender.

A inclusão do quesito raça/cor/etnia no registro dos casos propicia o levantamento, pelo Poder Público, de marcadores sociais que permitem a definição de programas destinados à adequada resposta à crise sanitária.

No intuito de garantir efetividade ao direito fundamental à informação (CF, arts. 5º, XXXIII, 37, § 3º, II, e 216, § 2º) (3), também se faz necessário o restabelecimento dos sítios eletrônicos nos quais divulgadas as políticas públicas, programas, ações e pesquisas direcionadas à população quilombola no contexto da pandemia.

Deve ser suspensa a tramitação de demandas judiciais e recursos vinculados envolvendo direitos territoriais das comunidades quilombolas, tais como ações possessórias, reivindicatórias de propriedade, imissões na posse e anulatórias de demarcação até o término da pandemia.

O direito material demanda a salvaguarda de comunidades quilombolas do risco sanitário exacerbado pela execução de medidas constritivas em seus territórios e a preservação de sua condição de acesso igualitário à justiça, ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (CF, art. 5º, XXXV, LIV e LV) (4) sem comprometer à especial necessidade de isolamento social decorrente da sua grave condição de vulnerabilidade, reconhecida em lei.

Incide, no caso, o princípio da precaução (CF, art. 225) (5) que exige do Poder Público um atuar na direção da mitigação dos riscos socioambientais, em defesa da manutenção da vida e da saúde.

Por fim, cabe ressaltar que, apesar de os povos quilombolas terem sido incluídos na fase prioritária do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação elaborado pelo governo federal, essa inclusão formal não é suficiente se desacompanhada de planejamento conducente à eficácia da medida.

No plano de vacinação, o governo limitou-se a fazer indicação genérica, deixando de prever protocolos sanitários voltados à efetividade da medida e de articular ações programáticas a fim de evitar descompasso nas unidades da Federação.

É preciso viabilizar a concretização dos preceitos fundamentais atinentes à dignidade da pessoa humana, à vida e à saúde.

Com esse entendimento, o Plenário, por unanimidade, converteu o julgamento da medida cautelar em julgamento definitivo de mérito. Na sequência, por maioria, julgou parcialmente procedente o pedido para determinar, à União, que: (i) formule, no prazo de 30 dias, plano nacional de enfrentamento da pandemia Covid-19 no que concerne à população quilombola, versando providências e protocolos sanitários voltados a assegurar a eficácia da vacinação na fase prioritária, com a participação de representantes da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – Conaq; (ii) constitua, em até 72 horas, grupo de trabalho interdisciplinar e paritário, com a finalidade de debater, aprovar e monitorar a execução do Plano, dele participando integrantes, pelo menos, do Ministério da Saúde, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Fundação Cultural Palmares, Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal, Conselho Nacional de Direitos Humanos, Associação Brasileira de Saúde Coletiva e representantes das comunidades quilombolas a serem indicadas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas; (iii) providencie, no máximo em 72 horas, a inclusão, no registro dos casos de Covid-19, do quesito raça/cor/etnia, asseguradas a notificação compulsória dos confirmados e ampla e periódica publicidade; (iv) restabeleça, no prazo de 72 horas, o conteúdo das plataformas públicas de acesso à informação http://monitoramento.seppir.gov.br/ e https://www.gov.br/mdh/pt-br/comunidadestradicionais/programabrasil-quilombola, abstendo-se de proceder à exclusão de dados públicos relativos à população. O Tribunal ainda deferiu o pedido para suspender os processos judiciais, notadamente ações possessórias, reivindicatórias de propriedade, imissões na posse, anulatórias de processos administrativos de titulação, bem como os recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais das comunidades quilombola até o término da pandemia. Nos termos do voto do Ministro Edson Fachin, redator para o acórdão, vencidos parcialmente os Ministros Marco Aurélio (relator) e Nunes Marques.

(8) CF: “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (...) Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”

(9) Pet 3.388, relator Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno.

(10) CF: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; (...)  Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: (...) II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; (...) Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...) § 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.”

(11) CF: “Art. 5º. (...) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (...) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”

(12) CF: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Informações Gerais

Número do Processo

742

Tribunal

STF

Data de Julgamento

24/02/2021

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