Competência da Justiça Estadual para ações contra plataformas de transporte por aplicativo
A competência ratione materiae , via de regra, é questão anterior a qualquer juízo sobre outras espécies de competência e, sendo determinada em função da natureza jurídica da pretensão, decorre diretamente do pedido e da causa de pedir deduzidos em juízo. No caso, os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista. A pretensão decorre do contrato civil de intermediação digital firmado com empresa UBER, responsável por fazer a aproximação entre os motoristas parceiros e seus clientes, os passageiros. Registre-se que a atividade foi reconhecida com a edição da Lei n. 13.640/2018, que alterou a Lei n. 12.587/2012 (Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana), para incluir em seu art. 4º, o inciso X, com a definição de transporte remunerado privado individual de passageiros: "serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede". Assim, as ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada ( sharing economy ), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma. Em suma, tratando-se de demanda em que a causa de pedir e o pedido deduzidos na inicial não se referem à existência de relação de trabalho entre as partes, configurando-se em litígio que deriva de relação jurídica de cunho eminentemente civil, a competência é da Justiça Estadual.
Agravo de instrumento contra decisão que majora astreintes por descumprimento de tutela antecipada
No caso, após a prolação da primeira decisão interlocutória que deferiu a tutela de urgência sob pena de multa, sobreveio a notícia de descumprimento da ordem judicial, motivando a prolação de subsequente decisão interlocutória que, ao majorar a multa fixada anteriormente, modificou o conteúdo da primeira decisão e, consequentemente, também versou sobre tutela provisória, nos moldes da hipótese de cabimento descrita no art. 1.015, I, do CPC/15. Anote-se que esta Corte se pronunciou, em recente julgado, que "o conceito de "decisão interlocutória que versa sobre tutela provisória" abrange as decisões que examinam a presença ou não dos pressupostos que justificam o deferimento, indeferimento, revogação ou alteração da tutela provisória e, também, as decisões que dizem respeito ao prazo e ao modo de cumprimento da tutela, a adequação, suficiência, proporcionalidade ou razoabilidade da técnica de efetivação da tutela provisória e, ainda, a necessidade ou dispensa de garantias para a concessão, revogação ou alteração da tutela provisória", motivo pelo qual "é possível concluir que o art. 1.015, I, do CPC/2015, deve ser lido e interpretado como uma cláusula de cabimento de amplo espectro, de modo a permitir a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias que digam respeito não apenas ao núcleo essencial da tutela provisória, mas também que se refiram aos aspectos acessórios que estão umbilicalmente vinculados a ela, porque, em todas essas situações, há urgência que justifique o imediato reexame da questão em 2º grau de jurisdição". (REsp 1.752.049/PR, Terceira Turma, DJe 15/03/2019). Nesse caminho, subsequentes decisões interlocutórias cujos conteúdos se relacionem diretamente com um primeiro pronunciamento jurisdicional versarão, de igual modo, sobre a tutela provisória, especialmente quando a decisão posterior alterar a decisão anterior - no caso, houve a majoração da multa anteriormente fixada em razão da renitência da requerida.
União estável superveniente como causa resolutiva do direito real de habitação do cônjuge supérstite
Nos termos do art. 1.611, §§ 1º e 2º, do Código Civil de 1916, com os acréscimos da Lei n. 4.121/1962, o usufruto vidual e o direito real de habitação tinham por destinatário o viúvo do autor da herança, além de sujeitar os referidos benefícios a uma condição resolutiva, porquanto o benefício somente seria assegurado enquanto perdurasse o estado de viuvez. Embora o direito real de propriedade tenha adquirido novos contornos no atual Código Civil, o direito real de habitação é um limite imposto ao exercício da propriedade alheia sobre o bem. Constitui-se em favor legal ou convencional, por meio do qual se assegura ao beneficiário o direito limitado de uso do bem, para moradia com sua família, não podendo alugar, tampouco emprestar a terceiros, resultando, por outra via, em óbice à utilização e fruição do bem pelo proprietário. Esses eram seus contornos genéricos estabelecidos no art. 747 do CC/1916. Nota-se que, seja na vigência do Código Civil revogado, seja no atual, o proprietário tem, em regra, o poder de usar, fruir e dispor da coisa, além do direito de reavê-la do poder de quem a detenha ou possua injustamente. Estas faculdades inerentes ao direito de propriedade, passam a integrar o patrimônio dos herdeiros legítimos e testamentários no exato momento em que aberta a sucessão, conforme preceitua o princípio da saisine (art. 1.572 do CC/1916 e 1.784 do CC/2002), ainda que de forma não individualizada. Como, no caso, a sucessão foi aberta sob a vigência do CC/1916, deve-se perquirir se a constituição de união estável superveniente à abertura da sucessão é fato equiparado ao casamento, apto, por isso, a afastar o estado de viuvez eleito pelo legislador como condição resolutiva do direito real de habitação do cônjuge supérstite. À vista da Constituição Federal de 1988 e a Lei n. 9.278/1996, que sucederam à edição da Lei n. 4.121/1962 no tempo, esta Corte Superior, por diversas vezes, laborou no sentido de reconhecer a plena equiparação entre casamento e união estável, numa via de mão dupla. No que se refere especificamente ao direito real de habitação é de se rememorar que o referido benefício foi estendido também para os companheiros com nítido intuito de equiparação entre os institutos do casamento e da união estável. Destarte, é relevante notar que a união estável, mesmo antes do atual Código Civil, foi sendo paulatinamente equiparada ao casamento para fins de reconhecimento de benefícios inicialmente restritos a um ou outro dos casos. A despeito da origem de matizes divergentes - o formalismo do casamento e o informalismo da união estável -, a proteção é dirigida notadamente à entidade familiar, de modo que a origem de sua constituição passa a ser absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico.
Impossibilidade de discussão da tradicionalidade e de produção de laudo antropológico em ação possessória pré-demarcação
1ª tese: É inadequada a discussão acerca da tradicionalidade da ocupação indígena em ação possessória ajuizada por proprietário de fazenda antes de completado o procedimento demarcatório. Cuida-se de ação de reintegração de posse ajuizada por particular em face de cacique de comunidade indígena, da Fundação Nacional do Índio - FUNAI e da União, em razão da ocupação de indígenas em propriedade rural. A FUNAI, a União e o MPF, apontam violação a dispositivos do Estatuto do Índio, postulam a reforma do acórdão recorrido defendendo, essencialmente, o direito de posse dos indígenas sobre as áreas por eles tradicionalmente ocupadas. Nessa quadra, mostra-se inadequada a discussão acerca da tradicionalidade da ocupação indígena, sob pena de admitir a possibilidade de justiça de mão própria pelos indígenas, tornando legal a ocupação prematura e voluntariosa de uma determinada área, antes mesmo de completado o procedimento de demarcatório. Enquanto não configurado o momento apropriado para a ocupação de terra indígena tradicionalmente ocupada - o que pressupõe regular procedimento demarcatório -, não há justo título para a ocupação perpetrada, daí a configuração do esbulho. Não é demais ressaltar que o reconhecimento do direito do autor à posse da área por ele ocupada concreto não exclui eventual reconhecimento da tradicionalidade da ocupação da terra indígena e os efeitos dela decorrentes, mas em sede de regular procedimento demarcatório, nos termos da legislação própria. 2ª tese: Não cabe produção de laudo antropológico em ação possessória ajuizada por proprietário de fazenda ocupada por grupo indígena. Cuida-se de ação de reintegração de posse ajuizada por particular em face de cacique de comunidade indígena, da Fundação Nacional do Índio - FUNAI e da União, em razão da ocupação de indígenas em propriedade rural. O Tribunal de origem manteve a procedência do pedido de reintegração de posse, pois, "[n]a ausência de procedimento demarcatório, deve prevalecer a situação fática em vigor"; e, "[c]omo o autor está na posse da fazenda desde 1977 e os índios invadiram a propriedade por conta própria, ou seja, sem elementos administrativos que mostrem uma ocupação contemporânea a outubro de 1988 ou neutralizada historicamente por esbulho renitente (STF, Pet 3388, Relator Carlos Britto, Tribunal Pleno, DJ 19/03/2009), a reintegração é a única solução possível". Em recurso, a FUNAI e o MPF, em linhas gerais, apontam nulidade por cerceamento de defesa, pois o juízo de origem não poderia ter proferido sentença sem a produção de laudo antropológico destinado a demonstrar a existência ou não de ocupação tradicional indígena sobre a área. Sem razão a FUNAI e o MPF nesse ponto, pois a demanda é de natureza possessória e foi ajuizada por proprietário de fazenda ocupada por indivíduos de grupo indígena, que agiram por sua própria conta. Admitida a produção de laudo antropológico, abrir-se-ia a possibilidade de reconhecimento da legalidade da invasão perpetrada em sede de ação possessória proposta por não índio, melhor dizendo, da possibilidade de aceitação da prática de justiça de mão própria pelos indígenas, o que afrontaria o ordenamento jurídico sob diversos ângulos.
Afastamento por violência doméstica: interrupção do contrato, benefício previdenciário e competência da vara especializada
1 ª tese: A natureza jurídica do afastamento por até seis meses em razão de violência doméstica e familiar é de interrupção do contrato de trabalho, incidindo, analogicamente, o auxílio-doença, devendo a empresa se responsabilizar pelo pagamento dos quinze primeiros dias, ficando o restante do período a cargo do INSS. Ante a interpretação teleológica da Lei Maria da Penha, que veio concretizar o dever assumido pelo Estado brasileiro de proteção à mulher contra toda forma de violência, art. 226, § 8º, da Constituição Federal, a natureza jurídica de interrupção do contrato de trabalho é a mais adequada para os casos de afastamento por até seis meses em razão de violência doméstica e familiar. A hipótese de interrupção do contrato é aquela na qual o empregado não é obrigado a prestar serviços ao empregador por determinado período, porém este é contado como tempo de serviço e o empregado continua a receber salários normalmente. Ademais, a Lei n. 11.340/2006 determinou ao empregador apenas a manutenção do vínculo empregatício, por até seis meses, com a vítima de violência doméstica, ante seus afastamentos do trabalho. Nenhum outro ônus foi previsto, o que deixa a ofendida desamparada, sobretudo no que concerne à fonte de seu sustento. Diante da omissão legislativa, devemos entender que, como os casos de violência doméstica e familiar acarretam ofensa à integridade física ou psicológica da mulher, estes devem ser equiparados por analogia, aos de enfermidade da segurada, com incidência do auxílio-doença, pois, conforme inteligência do art. 203 da Carta Maior, "a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social". Neste caso, ao invés do atestado de saúde, há necessidade de apresentação do documento de homologação ou determinação judicial de afastamento do trabalho em decorrência de violência doméstica e familiar para comprovar que a ofendida está incapacitada a comparecer ao local de trabalho. Assim, a empresa se responsabilizará pelo pagamento dos quinze primeiros dias, ficando o restante do período, a cargo do INSS, desde que haja aprovação do afastamento pela perícia médica daquele instituto. 2 ª tese: Compete ao juízo da vara especializada em violência doméstica e familiar a apreciação do pedido de imposição de medida protetiva de manutenção de vínculo trabalhista, por até seis meses, em razão de afastamento do trabalho de ofendida decorrente de violência doméstica e familiar. A amplitude da competência conferida pela Lei n. 11.340/2006 à Vara Especializada tem por propósito permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, permitindo-lhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato. Providência que, a um só tempo, facilita o acesso da mulher, vítima de violência doméstica, ao Poder Judiciário, e confere-lhe real proteção (RHC n. 100.446, Rel. Ministro Marco Aurélio Belizze, DJe 27/11/2018). Em relação à Justiça do Trabalho, o art. 114, I, da Constituição Federal prevê sua competência para processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho. No entanto, no caso, o pedido sobre o reconhecimento do afastamento do trabalho advém de ameaças de morte sofridas, reconhecidas pelo juiz criminal, que fixou as medidas protetivas de urgência de proibição de aproximação da ofendida e de estabelecimento de contato com ela por qualquer meio de comunicação, conforme previsto no art. 22 da Lei Maria da Penha, circunstâncias alheias ao contrato de trabalho. O inciso II do § 2º do art. 9º da Lei n. 11.340/2006 prevê que o juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica, a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses. A referida lei prevê, em seu art. 14, a competência da vara especializada para execução das causas decorrentes de violência doméstica. Logo, no que concerne à competência para apreciação do pedido de imposição da medida de afastamento do local de trabalho, cabe ao juiz que reconheceu a necessidade anterior de imposição de medidas protetivas apreciar o pleito.