Negativa de prestação jurisdicional por princípios sem densificação e conceitos jurídicos indeterminados sem motivação concreta
O caso concreto trata de concurso público para o ingresso na carreira policial militar do Estado do Amapá, havendo previsão de avaliação da altura do candidato, que tinha de observar estatura mínima prevista em lei e no edital do certame. Para a concorrência feminina o estipulado era 1,60m, mas as recorridas tinham 1,57m, ou seja, três centímetros a menos do que o exigido de todas as demais candidatas. Apesar disso, o Tribunal da origem consentiu com a concorrência das recorridas, pontuando que, a despeito de restar pacificado o entendimento no sentido de observar as regras editalícias e a legislação estadual específica da categoria, em obediência ao posicionamento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, diante das particularidades da causa, o lapso de tempo de mais de 3 (três) anos da data da concessão do pedido liminar e as informações prestadas pela autoridade coatora, de que as impetrantes teriam sido inseridas no curso de formação como alunos soldados com rubrica, sem nenhuma mácula que pudesse comprometer-lhes a carreira, demonstrando a eficiência no exercício do cargo público, a eliminação das recorridas, em razão de alguns centímetros de diferença do mínimo exigido em edital constituiria medida desarrazoada, eis que teria ocorrido a solidificação da situação fática, diante do decurso de tempo entre a liminar concedida no ano de 2018 e os dias atuais. A argumentação é em parte metajurídica e em parte fundada em princípios os quais não chegam a ser densificados, a ser explicitados nem o conceito tampouco o modo como se aplicam ao caso concreto, sendo certo que a segurança jurídica, a razoabilidade e a proporcionalidade são valores que não se confundem entre si e que orientam não apenas a atividade de aplicação de lei, mas a sua elaboração, o que significa a necessidade de ponderar se esses vetores já não foram observados no processo legislativo. Pesa assinalar ainda que a despeito de afirmar não ocorrer o julgamento pela inconstitucionalidade da lei estadual, a interpretação de normativo com o fim de não se aplicar no caso concreto afasta por via oblíqua a norma e, por isso, é realmente imperioso que se esclareça o amparo constitucional para tanto. Por fim, o acórdão é inapelavelmente nulo ao deixar de aplicar precedente vinculativo do Supremo Tribunal Federal que trata justamente da impossibilidade de o candidato permanecer investido em função pública por mera aplicação de medida liminar cuja confirmação, aliás, é fundada em absolutamente nenhum argumento fora o transcurso do tempo, no caso, de três anos, ou seja, o Tribunal deferiu o direito sem examinar absolutamente nada, o que, por conseguinte, conduz ao reconhecimento da negativa de prestação jurisdicional.
Responsabilidade do possuidor-explorador de aeronave por danos a terceiros em superfície decorrentes de queda
A controvérsia consiste em definir a responsabilidade pelos danos morais causados pela queda de aeronave às vítimas em superfície, tendo em vista que o acidente com o avião danificou imóveis na área do choque com o solo, feriu e causou a morte de pessoas. A ação foi ajuizada em face indicados como proprietários da aeronave, cuja queda causou os danos que se pretende sejam ressarcidos. Em contestação, os réus alegaram sua ilegitimidade passiva, negando a qualidade de proprietários ou exploradores/operadores da aeronave. Ademais, requereram a denunciação à lide da empresa exploradora do serviço de transporte aéreo. Todavia, os julgados ordinários chegaram às seguintes constatações: 1) a aeronave foi objeto de um contrato arrendamento mercantil; 2) os réus deste recurso tinham a posse da aeronave, quando do acidente, na qualidade de cessionários de direitos do arrendamento, não formalizado à época do acontecimento. No que diz respeito ao transporte de pessoas, é certo que a teoria objetiva foi a eleita pelo ordenamento jurídico brasileiro, ao documentar no art. 734 do CC/2002 que o "transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Nesse particular, é manifesto: a responsabilidade objetiva imposta ao transportador tem fundamento no risco da atividade. O Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) não evidencia de forma expressa a teoria objetiva como fundamento das responsabilidades que prevê. Todavia, a jurisprudência desta Casa há muito reconheceu aquele embasamento para a responsabilidade atribuída às ocorrências do transporte aeroviário. Outrossim, importante referir ainda que, no recente julgamento do REsp n. 1.414.803/SC, já foi definido por esta Corte que "o Código Brasileiro de Aeronáutica não se limita a regulamentar apenas o transporte aéreo regular de passageiros, realizado por quem detém a respectiva concessão, mas todo serviço de exploração de aeronave, operado por pessoa física ou jurídica, proprietária ou não, com ou sem fins lucrativos, de forma que [...] será plenamente aplicado, desde que a relação jurídica não esteja regida pelo CDC, cuja força normativa é extraída diretamente da CF/1988 (5º, XXXII)" (REsp n. 1.414.803/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 4/5/2021, DJe de 4/6/2021.). Nesse passo, especificamente no que diz respeito aos fatos relacionados a terceiros em superfície, prevê o Código Brasileiro de Aeronáutica, em seu art. 268, que os exploradores da aeronave serão os responsáveis pelos danos criados àquelas pessoas. Diante deste cenário, os danos sofridos por terceiros em superfície, causados diretamente pela atividade de transporte aéreo, serão de responsabilidade do explorador. Nesse rumo, é possível extrair outra premissa, no sentido de que a responsabilidade pelo transporte aéreo é objetiva. Ou seja, independentemente de ter havido conduta culposa, se os danos indenizáveis decorrerem da atividade de transporte aéreo, haverá responsabilidade do explorador. Nessa exata linha de ideias vai a legislação pertinente, que se revela no art. 123 do Código Brasileiro da Aeronáutica, na redação vigente à época dos fatos, conceituava operadores ou exploradores nos seguintes termos: "Art. 123. Considera-se operador ou explorador de aeronave: (...); II - o proprietário da aeronave ou quem a use diretamente ou através de seus prepostos, quando se tratar de serviços aéreos privados; III - (...); IV - o arrendatário que adquiriu a condução técnica da aeronave arrendada e a autoridade sobre a tripulação". Em arremate, a doutrina esclarece que a exploração, nos casos acima referenciados, pode ocorrer independente do título de propriedade ou de posse, mediante qualquer forma lícita. Na linha desse entendimento, como já assentado, sentença e acórdão, na descrição dos fatos e personagens neles envolvidos asseveraram de forma coincidente: 1) houve a contratação de arrendamento mercantil; 2) os réus deste recurso tinham a posse da aeronave, fruto da cessão de direitos do arrendamento, ainda não formalizada à época do acidente. Com efeito, as partes na qualidade de possuidores da aeronave acidentada, nos termos do Código Brasileiro de Aeronáutica, são considerados exploradores e, nessa condição, responsáveis pelos danos provocados a terceiros em superfície. O terceiro vítima de acidente aéreo, tripulante ou em superfície, e o transportador são, respectivamente, consumidor por equiparação e fornecedor. Nessa ordem de ideias, acertada a incidência do universo consumerista à hipótese, deve ser invocada, notadamente, a teoria da aparência, pela qual se busca valorizar o estado de fato e reconhecer as circunstâncias efetivamente presentes nas relações jurídicas, concedendo proteção a terceiros de boa-fé (REsp n. 1.358.513/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 12/5/2020, DJe de 4/8/2020.) Dessarte, o raciocínio desenvolvido pretende fundamentar duas modestas assertivas, que conferem ainda mais robustez à solução apresentada: 1ª) a teoria da aparência é fator legitimador do ajuizamento da ação de ressarcimento dos danos pelo defeito do serviço contra o aparente responsável, ainda que outros sujeitos houvessem de ser responsabilizados; 2ª) a responsabilidade pela prestação defeituosa do transporte aéreo, porque ancorada também nas normas de direito consumerista, será solidariamente repartida entre todos os fornecedores do serviço, no caso, todos os que se enquadrarem no conceito de explorador e, desde que tenha sido demandado. Ademais, com base no segundo silogismo apresentado, não compete ao consumidor qualquer providência tendente a elucidar questões tais como a que se coloca sobre o contrato de arrendamento mercantil, se fora oficializado, a que forma e em que tempo. Muito menos caberia às vítimas dos danos provocados pela atividade aérea apurar os titulares da posse direta ou indireta da aeronave, por serem a parte vulnerável da relação jurídica, na acepção jurídica do vocábulo, lição comezinha de direito do consumidor. Seguindo na análise da questão controvertida, defende-se a possibilidade da denunciação à lide, já que, perante os lesados todos devem responder solidariamente pelas consequências do fato. No entanto, observa que o CPC/2015, em seu art. 125, determina a obrigação de denunciação à lide daquele que está obrigado, por força de lei ou contrato, a indenizar o prejuízo do que perder a demanda. Portanto, não procede a alegação, também quanto a esse ponto. Como de conhecimento, a denunciação da lide é intervenção de terceiros com natureza jurídica de ação, cuja pretensão está associada ao direito de regresso, não ensejando, porém, a formação de outro processo, e sim de duas demandas que serão decididas por uma mesma sentença. O mote de sua existência é justamente permitir, com arrimo no princípio da economia processual, que o titular do direito exerça, no mesmo processo em que demandado, a sua pretensão ressarcitória (ação de garantia). Por fim, relembre-se que o art. 88 do CDC veda expressamente a denunciação à lide nas ações derivadas de relações de consumo.
Protagonismo judicial na inquirição de testemunhas e violação do artigo 212 do CPP
Inicialmente, registre-se que, conforme reiterada jurisprudência dos Tribunais Superiores, o reconhecimento de vício que possibilite a anulação de ato processual exige a efetiva demonstração de prejuízo ao acusado, consoante o previsto no art. 563 do Código de Processo Penal ( pas de nullité sans grief ) - (RHC n. 154.359/RJ, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 07/06/2022, DJe de 23/06/2022). Na instrução processual, a inquirição da testemunha deverá ser feita a partir de perguntas formuladas diretamente pelas partes, podendo o Juiz completar a inquirição, em relação aos pontos não esclarecidos (art. 212 do CPP). No caso, verifica-se que, na audiência de instrução de julgamento, a inquirição das testemunhas foi protagonizada pela magistrada, que formulou a maioria das perguntas, tendo a defesa realizado questionamentos e a representante do Ministério Público abstendo-se de inquirir as testemunhas, vítima ou acusado, mesmo diante da impugnação da defesa. Assim, evidenciado que a magistrada assumiu o protagonismo na inquirição de testemunhas e, por consequência, patente a violação ao art. 212 do CPP. Tendo a prova sido produzida irregularmente, presumido o prejuízo sofrido pela defesa do paciente, uma vez que é inviável avaliar a instrução processual se o juízo de origem tivesse obedecido ao dispositivo tido por violado.
Revisão judicial de locação comercial por fato superveniente pandêmico com redução proporcional dos aluguéis
A controvérsia consiste em analisar se a situação decorrente da pandemia pela Covid-19 constitui fato superveniente apto à revisão judicial de contrato de locação não residencial, especialmente quanto a redução proporcional do valor dos alugueis, sendo a locatária uma empresa de coworking. Deve-se ponderar, para a análise, sobretudo, os limites em torno da "onerosidade excessiva", concluindo-se que a onerosidade apta à revisão contratual deve ser relevante, de maneira a atingir a estrutura do negócio jurídico, ainda que nos contratos regidos pela legislação consumerista. Há consenso doutrinário de que as relações contratuais privadas são regidas, em linha de princípio, por três vertentes revisionistas, quais sejam: a) teoria da base objetiva do contrato, aplicável, em regra às relações de consumo (art. 6º, inciso V, do CDC); b) a teoria da imprevisão (art. 317 do CC/2002); e c) a teoria da onerosidade excessiva (art. 478 do CC/2002). Tais hipóteses, embora encontrem fundamento em contextos normativos diversos, estão vinculadas aos princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, diretrizes que ganham relevo, sobretudo, com as recentes alterações promovidas pela Lei de Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019), ainda que, quanto às normas do CDC, haja certa divergência para sua aplicação. É, portanto, a liberdade de contratar a regra, tendo a intervenção judicial cabimento apenas quando imprescindível ao restabelecimento do equilíbrio entre as partes. Nesse rumo, cumpre traçar as principais distinções entre o instituto da quebra da base objetiva do negócio jurídico, aplicável sobretudo às relações de consumo (art. 6º, inciso V, do CDC), e os da imprevisão e da onerosidade excessiva, extraídos, respectivamente, dos arts. 317 e 478 do Código Civil. Como requisito comum, sobressai a ocorrência de fato superveniente capaz de alterar, de maneira significativa (ou estrutural), o equilíbrio econômico e financeiro da avença, dela decorrendo situação de onerosidade excessiva. São essas, em linha de princípio, as características da quebra da base objetiva do contrato, prevista no CDC, que destaca o desequilíbrio econômico e financeiro como requisito central. Ao contrário, para a revisão do contrato com base nas teorias da imprevisão ou da onerosidade excessiva, previstas no CC/2002, exige-se ainda que o fato (superveniente) seja imprevisível e extraordinário e que dele, além do desequilíbrio econômico e financeiro, decorra situação de vantagem extrema para uma das partes, relacionando-se tal requisito, segundo parte da doutrina, à vedação do enriquecimento ilícito. Em relação ao requisito da superveniência de fato imprevisível ou extraordinário - ponto importante para a distinção na adoção das teorias da imprevisão ou da quebra da base objetiva do negócio -, é inquestionável que a pandemia da Covid-19 adequa-se, com perfeição, às exigências referidas. Nessa linha, para exame do caso em questão, destacam-se os seguintes pontos: a) a impossibilidade do exercício das atividades desenvolvidas pelo locatário em razão das medidas sanitárias do combate ao novo coronavírus; b) a redução do faturamento da locatária e c) a viabilidade da manutenção do contrato. Conforme referido, o ramo empresarial desenvolvido pela locatária era uma empresa de coworking , cujo objetivo, linhas gerais, é o compartilhamento de espaço para empreendedores e empresas de pequeno porte. Ou seja, o coworking é um espaço físico que pode ser compartilhado por várias empresas ou profissionais liberais. Embora não se conteste o efeito negativo decorrente da pandemia nos contratos de locação não residencial para ambas as partes, em que estas são efetivamente privadas, em maior ou menor extensão, seja em relação uso do bem ou mesmo à percepção dos rendimentos sobre o imóvel decorrentes do direito de propriedade, sobreveio desequilíbrio econômico-financeiro imoderado para a locatária. Por certo, a locatária, a qual ficou privada por tempo determinado do exercício de suas atividades, manteve-se obrigada a cumprir a contraprestação pelo uso do imóvel pelo valor integral e originalmente firmado, quando as circunstâncias foram drasticamente alteradas, às quais, inclusive, acaso fossem conhecidas à época da contratação, poderiam levar ao estabelecimento de outros valores ou até mesmo à não contratação - situação que comporta, a intervenção no contrato a fim de que sejam restabelecidos os elementos econômico e financeiros das partes para que se adequem às novas condições. E, nessa linha, a fixação de um período determinado para que as partes possam se adequar às condições (adversas) que lhes foram impostas, constitui medida salutar, capaz de promover a melhor composição para cada caso, especialmente quando a manutenção do contrato é viável, como no caso dos autos. É cediço que a liberdade de contratar, embora exsurja como núcleo fundador das relações privadas, encontra limites nas regras da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, que, por sua vez, devem ser interpretadas de acordo com a natureza da relação jurídica firmada, autorizando-se, assim, em maior ou menor medida, a intervenção do Estado-Juiz como forma de restabelecer o equilíbrio entre as partes. A diretriz da boa-fé, portanto, deveria ser observada, mormente porque os ônus suportados pelo locatário revelaram-se desmesurados. Ademais, a situação da pandemia pode ser enquadrada como fortuito externo ao negócio, circunstância que exige a ponderação dos sacrifícios de cada parte na relação contratual. Por fim, configura-se o desequilíbrio estrutural na relação entre as partes devido aos efeitos da pandemia pela Covid-19, assim como em razão das diretrizes da boa-fé e da função social do contrato, da equivalência material, da moderação e higidez das relações contratuais, impondo, portanto, a revisão do contrato.