Legalidade tributária violada na base de cálculo da Taxa de Saúde Suplementar por resolução
Cinge-se a controvérsia a determinar se a base de cálculo da Taxa de Saúde Suplementar foi concretamente estabelecida apenas por meio do art. 3º da Resolução RDC n. 10/2000, afrontando o princípio da legalidade estrita, fixado no art. 97, IV, do CTN. Alega-se, no caso, que "é ilegal a cobrança da Taxa de Saúde Suplementar prevista no art. 20, I, da Lei n. 9.961/2000, tendo em vista que a definição de sua base de cálculo através da Resolução RDC n. 10/2000 (art. 3º) e, posteriormente, pelas Resoluções Normativas n. 7, de 2002, e n. 89, de 2005, implica desrespeito ao princípio da legalidade estrita positivado no art. 97, IV, do Código Tributário Nacional - CTN". Sustenta, em síntese, que "a referência 'número médio de seus usuários de cada plano' não permite quantificar objetivamente o critério quantitativo da hipótese de incidência tributária da Taxa de Saúde Suplementar - TPS". Todavia, no STJ, está pacificado o entendimento de que apenas com o art. 3º da Resolução RDC n. 10/2000 é que se veio a estabelecer a base de cálculo da Taxa de Saúde Suplementar - TSS, não sendo possível admitir a fixação de base de cálculo por outro instrumento normativo que não a lei em seu sentido formal, sob pena de infringência à norma do art. 97, IV, do CTN. Neste sentido: "Conforme jurisprudência pacífica do STJ, é ilegal a cobrança da Taxa de Saúde Suplementar (art. 20, I, da Lei 9.961/2000), tendo em vista que a definição de sua base de cálculo pelo art. 3º da Resolução RDC 10/2000 implica desrespeito ao princípio da legalidade (art. 97, IV, do CTN)". AREsp 1.551.000/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 19/12/2019; bem como em outros julgados: AREsp 1.507.963/RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, DJe 16/09/2019; AgInt no REsp 1.276.788/RS, Rel. Min. Regina Helena Costa, DJe 30/03/2017; AgRg no REsp 1.231.080/RJ, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJe 31/08/2015; AgRg no AgRg no AREsp 616.262/PE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 12/05/2015; AgRg no AREsp 608.001/RS, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 04/02/2015; AgRg no AREsp 552.433/RS, Rel. Min. Assusete Magalhães, DJe 11/12/2014; e AgRg no REsp 1.434.606/PB, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 30/09/2014. Não havendo outros elementos valorativos, tampouco argumentação relevante, deve ser preservada a coesão da jurisprudência já estabelecida no STJ (art. 926 do CPC/2015).
Dimensão da propriedade não descaracteriza economia familiar na aposentadoria rural por idade
Cinge-se a controvérsia em definir se o trabalhador rural que possua área superior a 4 (quatro) módulos rurais pode ser qualificado como segurado especial da Previdência Social, após a entrada em vigor da Lei n. 11.718, de 20 de junho de 2008. Até a Lei n. 11.718/2008, o que diferenciava um produtor rural segurado especial de um produtor rural não segurado especial, pela legislação e pela normatização era a contratação de mão-de-obra. A principal mudança operada pela Lei n. 11.718/2008 diz respeito à limitação do tamanho da propriedade do produtor rural que explora atividade agropecuária. Essa lei teve por origem a Medida Provisória n. 410/2007, que apenas prorrogou o prazo do art. 143 da Lei n. 8.213/1991. Somou-se ao texto da Medida Provisória, o Projeto de Lei n. 6.548/2002, procurando aproximar o conceito do segurado especial ao de agricultor familiar, para fins de concessão de políticas públicas, nos termos da Lei n. 11.326/2006. Embora seja um critério restritivo, uma vez que até a Lei n. 11.718/2008 não se cogitava o tamanho da terra como elemento caracterizador do segurado especial, o referido normativo teve por propósito introduzir uma regra objetiva que viesse a ser coerente com as políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. Nos termos da Lei n. 4.504/1964 (art. 4º, II e III), módulo fiscal é uma unidade de medida expressa em hectares que indica o tamanho mínimo de uma propriedade rural capaz de garantir o sustento de uma família que exerce atividade rural em determinado município. O tamanho do módulo fiscal não é linear no país, tendo por limite mínimo 5 hectares e máximo 110 hectares, sendo definido pelo INCRA (art. 50, §2º da Lei n. 4.504/1964) e, conforme dispõe o art. 50, §§ 3º e 4º da Lei n. 4.504/1964, o número de módulos fiscais de um imóvel deve ser calculado apenas sobre a área aproveitável total, considerada esta como a área passível de exploração agrícola, pecuária ou florestal, excluídas as áreas ocupadas por benfeitoria, floresta ou mata de efetiva preservação permanente, ou reflorestada com essências nativas e a área comprovadamente imprestável para qualquer exploração agrícola, pecuária ou florestal. Em prol do segurado especial, a jurisprudência faculta que, mesmo que a propriedade explorada seja superior à 4 módulos fiscais, tal condição não pode ser, por si só, suficiente para descaracterizar a qualidade de segurado especial do trabalhador rural, constituindo apenas mais um fator a ser analisado com o restante do conjunto probatório, não óbice ao reconhecimento da condição de segurado especial. Após a edição da referida lei, a jurisprudência do STJ continuou uníssona no mesmo sentido de que o fato de o imóvel ser superior ao módulo rural não afasta, por si só, a qualificação de seu proprietário como segurado especial. Nesse contexto, apesar de a Lei n. 11.718/2008 ter fixado 4 (quatro) módulos fiscais como limite para o enquadramento do trabalhador rural na qualidade de segurado especial, em um caráter objetivo, foi demonstrado que o entendimento sedimentado na jurisprudência é o de que a circunstância de a propriedade rural ser superior a 4 (quatro) módulos rurais não exclui isoladamente a condição de segurado especial, nem descaracteriza o regime de economia familiar, sendo apenas mais um aspecto a ser considerado juntamente com o restante do conjunto probatório.
Detração penal do recolhimento domiciliar noturno e em folgas como cautelar diversa da prisão
A reflexão sobre o abatimento na pena definitiva do tempo de cumprimento da medida cautelar prevista no art. 319, VII, do Código de Processo Penal (recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga), surge da ausência de previsão legal. Nos termos do art. 42 do Código Penal: "Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior". A cautelar de recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga estabelece que o investigado deverá permanecer recolhido em seu domicílio nesses períodos, desde que possua residência e trabalho fixos. Essa medida não se confunde com a prisão domiciliar, mas diferencia-se de outras cautelares na limitação de direitos, pois atinge diretamente a liberdade de locomoção do investigado, ainda que de forma parcial e/ou momentânea, impondo-lhe a permanência no local em que reside. Nesta Corte, o amadurecimento da questão partiu da interpretação dada ao art. 42 do Código Penal. Concluiu-se que o dispositivo não era numerus clausus e, em uma compreensão extensiva in bonam partem, dever-se-ia permitir que o período de recolhimento noturno, por comprometer o status libertatis, fosse reconhecido como período detraído, em homenagem ao princípio da proporcionalidade e em apreço ao princípio do non bis in idem. A detração penal dá efetividade ao princípio basilar da dignidade da pessoa humana e ao comando máximo do caráter ressocializador das penas, que é um dos principais objetivos da execução da pena no Brasil. Assim, a melhor interpretação a ser dada ao art. 42 do Código Penal é a de que o período em que um investigado/acusado cumprir medida cautelar de recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga (art. 319, V, do CPP) deve ser detraído da pena definitiva a ele imposta pelo Estado. Quanto à necessidade do monitoramento eletrônico estar associado à medida de recolhimento noturno e nos dias de folga para fins da detração da pena de que aqui se cuida, tem-se que o monitoramento eletrônico (ME) é medida de vigilância, que afeta os direitos fundamentais, destacadamente a intangibilidade corporal do acusado. É possível sua aplicação isolada ou cumulativamente com outra medida. Essa medida é pouco difundida no Brasil, em razão do alto custo ou, ainda, de dúvidas quanto a sua efetividade. Outro aspecto importante é o fato de que seu emprego prevalece em fases de execução da pena (80%), ou seja, não se destina primordialmente à substituição da prisão preventiva. Assim, levando em conta a precária utilização do ME como medida cautelar e, considerando que o recolhimento noturno já priva a liberdade de quem a ele se submete, não se vislumbra a necessidade de dupla restrição para que se possa chegar ao grau de certeza do cumprimento efetivo do tempo de custódia cautelar, notadamente tendo em conta que o monitoramento eletrônico é atribuição do Estado. Nesse cenário, não se justifica o investigado que não dispõe do monitoramento receber tratamento não isonômico em relação àquele que cumpre a mesma medida restritiva de liberdade monitorado pelo equipamento. Portanto, deve prevalecer a corrente jurisprudencial inaugurada pela Ministra Laurita Vaz, no RHC 140.214/SC, de que o direito à detração não pode estar atrelado à condição de monitoramento eletrônico, pois seria impor ao investigado excesso de execução, com injustificável aflição de tratamento não isonômico àqueles que cumprem a mesma medida de recolhimento noturno e nos dias de folga monitorados. Ainda, a soma das horas de recolhimento domiciliar a que o réu for submetido devem ser convertidas em dias para contagem da detração da pena. E, se no cômputo total remanescer período menor que vinte e quatro horas, esse tempo deverá ser desconsiderado, em atenção à regra do art. 11 do Código Penal, segundo a qual devem ser desprezadas, nas penas privativas de liberdade e nas restritivas de direito, as frações de dia (HC n. 455.097/PR).
Ação de sonegados dispensa interpelação pessoal com prova de dolo e ciência
A despeito do entendimento de que "somente após a interpelação do herdeiro sobre a existência de bens sonegados é que a recusa ou omissão configura prova suficiente para autorizar a incidência da pena de sonegados", ainda que a interpelação dos herdeiros não tenha ocorrido, é possível aplicar a pena de perdimento da herança quando comprovados o conhecimento dos herdeiros acerca da ocultação de bens da herança (elemento objetivo), e o dolo (má-fé) existente na conduta de sonegação de bens da herança (elemento subjetivo). No caso, é inconteste ter havido doação inoficiosa do patrimônio amealhado na constância do matrimônio do extinto, em prejuízo do acervo hereditário e em benefício de determinados coerdeiros, sem, contudo, a posterior colação no monte inventariado, com o explícito animus de enriquecimento indevido de uns em detrimento de outros e, ainda, com a simples defesa sustentada no argumento de não se ter de colacionar bens desassociados do nome do de cujus. O patrimônio discutido não constava no nome do falecido, pois as coerdeiras comprovaram que os bens compunham o capital imobilizado dos herdeiros beneficiados - os quais foram adquiridos quando ainda em tenra idade e sem produzirem renda alguma -, em clara antecipação de legítima. A inventariante foi devida e oportunamente interpelada acerca da ocultação de determinados bens, no curso do inventário, quando esta era representante do espólio e de coerdeira - e assistente do coerdeiro relativamente capaz - de modo que todos faziam parte do mesmo processo, assim como eram defendidos pelo mesmo advogado, e, ainda sim, mantiveram a omissão do patrimônio. Posteriormente, já após alcançarem a maioridade, os mesmos coerdeiros tornaram censurável a prática, reiterando a mesma postura sonegadora dos bens adotada quando representados e assistidos pela genitora, ao contestarem a presente ação de sonegados contra si manejada. Com isso, associaram-se ao dolo da inventariante, quando os representara e assistira por ocasião da interpelação, em evidente prejuízo às irmãs unilaterais. Como ressaltado pelo Ministro Luis Felipe Salomão: "configurar-se-á o dolo, revelando-se descabido exigir do herdeiro preterido (ou do credor do espólio) uma prova diabólica - impossível ou excessivamente difícil de ser produzida". Sob essa ótica, é inaceitável impor o refazimento de um ato processual já providenciado há muito tempo, exigindo-se uma nova, pessoal e específica interpelação àquele herdeiro silente e renitente em cumprir um dever que é só dele, pois incumbe a quem foi beneficiado com o adiantamento da legítima trazer o patrimônio ao monte do inventário.
Atipicidade do cultivo de cannabis para fins medicinais e importação de sementes com salvo-conduto
O tema diz respeito ao direito fundamental à saúde, constante do art. 196 da Carta Magna, que, na hipótese, toca o direito penal, uma vez que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, determina a repressão ao tráfico e ao consumo de substâncias entorpecentes e psicotrópicas, determinando que essas condutas sejam tipificadas como crime inafiançável e insuscetível de graça e de anistia. Diante da determinação constitucional, foi editada mais recentemente a Lei n. 11.343/2006. Pela simples leitura da epígrafe da referida lei, constata-se que, a contrario sensu, ela não proíbe o uso devido e a produção autorizada. Dessa forma, consta do art. 2º, parágrafo único, que "pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas". Os dispositivos da Lei de Drogas que tipificam os crimes, trazem um elemento normativo do tipo redigido nos seguintes termos: "sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Portanto, havendo autorização ou determinação legal ou regulamentar, não há se falar em crime, porquanto não estaria preenchido o elemento normativo do tipo. No entanto até o presente momento, não há qualquer regulamentação da matéria, o que tem ensejado inúmeros pedidos perante Poder Judiciário. Diante da omissão estatal em regulamentar o plantio para uso medicinal da maconha, não é coerente que o mesmo Estado, que preza pela saúde da população e já reconhece os benefícios medicinais da cannabis sativa, condicione o uso da terapia canábica àqueles que possuem dinheiro para aquisição do medicamento, em regra importado, ou à burocracia de se buscar judicialmente seu custeio pela União. Desde 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária vem autorizando o uso medicinal de produtos à base de cannabis sativa, havendo, atualmente, autorização sanitária para o uso de 18 fármacos. De fato, a ANVISA classificou a maconha como planta medicinal (RDC n. 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, de modo que a prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de Termo de Consentimento Informado do Paciente. Trazendo o exame da matéria mais especificamente para o direito penal, tem-se que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública, a qual não é prejudicada pelo uso medicinal da cannabis sativa. Dessa forma, ainda que eventualmente presente a tipicidade formal, não se revelaria presente a tipicidade material ou mesmo a tipicidade conglobante, haja vista ser do interesse do Estado, conforme anteriormente destacado, o cuidado com a saúde da população. Dessa forma, apesar da ausência de regulamentação pela via administrativa, o que tornaria a conduta atípica formalmente - por ausência de elemento normativo do tipo -, tem-se que a conduta de plantar para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se faz mister a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde. Quanto à importação das sementes para o plantio, tem-se que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça sedimentaram o entendimento de que a conduta não tipifica os crimes da Lei de Drogas, porque tais sementes não contêm o princípio ativo inerente à cannabis sativa. Ficou assentado, outrossim, que a conduta não se ajustaria igualmente ao tipo penal de contrabando, em razão do princípio da insignificância. Entretanto, considerado o potencial para tipificar o crime de contrabando, importante deixar consignado que, cuidando-se de importação de sementes para plantio com objetivo de uso medicinal, o salvo-conduto deve abarcar referida conduta, para que não haja restrição, por via transversa do direito à saúde.