Limites da impenhorabilidade do bem de família em garantia fiduciária para pessoa jurídica
A controvérsia diz respeito à impenhorabilidade do bem de família quando ocorrer a alienação fiduciária de imóvel em operação de empréstimo bancário. Rememora-se que o bem de família e sua impenhorabilidade são regidos pela Lei n. 8.000/1990 (art. 1º). O instituto visa assegurar ao indivíduo um patrimônio mínimo, sendo também, expressão do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1°, III, da Constituição Federal. Antes do advento da Lei n. 9.514/1997 (que criou o Sistema Financeiro Imobiliário e regulou o instituto da alienação fiduciária de imóvel), a principal garantia dos financiamentos envolvendo bens imóveis era a hipoteca. Por tal razão, a Lei n. 8.009/1990 somente dispôs sobre a hipoteca, prevendo a exceção do art. 3º, inciso V, que permitia a penhora de bem dado em hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar. Esta Corte Superior, ao interpretar referida norma, concluiu que, na hipótese de oferecimento de imóvel em garantia hipotecária, a impenhorabilidade do bem de família somente estará comprometida se a dívida objeto dessa garantia tiver sido assumida em benefício da própria entidade familiar (EAREsp 848.498/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, DJe de 7/6/2018). Por sua vez, o instituto da alienação fiduciária foi introduzido na legislação brasileira pela necessidade de superar a inadequação da garantia hipotecária, que depende do Poder Judiciário para a sua execução. Com o intuito de permitir maior celeridade no recebimento do crédito, ampliando a circulação de recursos e a realização de negócios, a Lei n. 9.514/1997 dispensou o ajuizamento de ação judicial, prevendo a consolidação da propriedade perante o oficial do Registro de Imóveis. Segundo o rito previsto para o instituto, o devedor poderá purgar a mora no prazo fixado, convalescendo o contrato de alienação fiduciária (art. 25, § 5º, da Lei n. 9.514/1997), caso em que não se consolida a propriedade em favor do credor. Já na alienação fiduciária, não se discute a "impenhorabilidade" do bem, uma vez que a propriedade foi transmitida, ainda que em caráter resolúvel, pelos devedores. Cumpre-se verificar, isto sim, a "alienabilidade" do bem. Nesse sentido, a Terceira Turma ao distinguir o bem de família legal (disciplinado na Lei n. 8.009/1990) e o bem de família voluntário (estabelecido pelo Código Civil, nos arts. 1.711 a 1.722), concluiu pela possibilidade de alienação fiduciária do bem de família legal: "a própria Lei n. 8.009/1990, com o escopo de proteger o bem destinado à residência familiar, aduz que o imóvel assim categorizado não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, mas em nenhuma passagem dispõe que tal bem não possa ser alienado pelo seu proprietário" (REsp 1.560.562/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/4/2019, DJe de 4/4/2019). Desse modo, não se afigura possível beneficiar aquele que, com reserva mental, ofereceu em garantia imóvel de sua propriedade, por meio de alienação fiduciária, a fim de obter recursos em contrato de mútuo sob condições mais favoráveis e, em momento posterior, após o inadimplemento da dívida, alega a invalidade do ato de disposição em razão da proteção conferida ao bem de família.
Avaliação do requisito subjetivo do livramento condicional exige histórico prisional integral
Com o advento da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), foram acrescentados no art. 83 do Código Penal novos requisitos para o livramento condicional. A primeira mudança diz respeito à necessidade de se comprovar bom comportamento durante a execução da pena, e o outro é o de não cometimento de falta grave nos últimos 12 meses da data da concessão do benefício. A inclusão da alínea b no inciso III do art. 83 do Código Penal teve como objetivo impedir a concessão do livramento condicional ao apenado que tenha cometido falta grave nos últimos 12 meses, o que não significa, todavia, que "a ausência de falta grave no mencionado período seja suficiente para satisfazer o requisito subjetivo exigido para a concessão do livramento condicional" (AgRg no HC 730.327/RS, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe de 2/12/2022). A determinação incluída pela referida alínea b é um acréscimo ao bom comportamento carcerário exigido na alínea a do mesmo dispositivo, cuja análise deve considerar todo o histórico prisional do apenado. Trata-se de requisitos cumulativos, pois, além de ostentar bom comportamento durante todo o período de cumprimento da pena, o apenado não pode ter incorrido em nenhuma falta grave nos últimos 12 meses da data da análise da concessão do benefício. Quanto ao tema, esta Corte já se pronunciou a respeito, firmando o entendimento de que "[p]ara fins de bom comportamento carcerário, considera-se todo o período da execução penal." (AgRg no HC 728.715/SP, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 10/6/2022). Em outras palavras, "não se aplica limite temporal para aferição de requisito subjetivo com escopo na concessão do livramento condicional, que deve necessariamente considerar todo o período da execução da pena [...]" (AgRg no REsp 1.961.829/MG, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 19/11/2021). Portanto, o requisito previsto no art. 83, inciso III, alínea b, do Código Penal, de ausência de prática de falta grave nos últimos 12 meses, é pressuposto objetivo para a concessão do livramento condicional e não limita a análise do requisito subjetivo.
Teto remuneratório nos jetons de Ministros em conselhos de empresas estatais
Cinge-se a controvérsia a duas questões centrais, em resumo: o reconhecimento da inconstitucionalidade da acumulação dos cargos indicados ou, se possível tal acumulação, a limitação ao teto remuneratório constitucional. Em relação à primeira questão, assim ficou redigida a Ementa do julgamento da ADI 1485, que teve como Relatora a Exma. Sra. Ministra Rosa Weber, cujo acórdão foi publicado em 9/6/2020: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVIDORES PÚBLICOS. ATUAÇÃO REMUNERADA EM CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO E FISCAL DE EMPRESAS ESTATAIS. CONSTITUCIONALIDADE. 1. A autorização dada pela Lei n. 9.292/1996 para que servidores públicos participem de conselhos de administração e fiscal das empresas públicas e sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas, bem como entidades sob controle direto ou indireto da União não contraria a vedação à acumulação remunerada de cargos, empregos e funções públicas trazida nos incisos XVI e XVII do artigo 37 da Constituição Federal, uma vez que essa atuação como conselheiro não representa exercício de cargo ou função pública em sentido estrito. 2. Não é objeto da ação saber se a remuneração por esse exercício poderia ser recebida por servidores remunerados em regime de subsídio ou estaria sujeita ao teto remuneratório constitucional. 3. Ação direta julgada improcedente, mantido o entendimento ensejador do indeferimento da medida cautelar (Rel. Ministro José Néri da Silveira, 7/8/1996, DJ de 5/11/1999). Por seu turno, no tocante à aplicação do teto remuneratório, em primeiro lugar, relembra-se que a fixação de um limite para a remuneração paga aos agentes públicos foi um importante marco na história do país, fazendo prevalecer o interesse público e o controle das contas públicas. Essa preocupação ficou reforçada com a previsão de que, mesmo no caso das empresas públicas e das sociedades de economia mista, além de suas subsidiárias, pessoas jurídicas que têm natureza privada, passa a haver submissão ao teto para todas as que receberem recursos públicos para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral. Assim, verifica-se que a matéria em debate tem amplo regramento constitucional e legal expresso, como se observa da leitura do atual art. 37 da Constituição Federal e das Leis n. 8.112/1990 e 9.292/1996. O argumento dos partidos autores é, em brevíssima síntese, de que a atuação em conselhos das empresas estatais seria uma função pública, razão pela qual claramente incidiria a vedação constitucional à acumulação de cargos públicos, que se estende a empregos e funções públicas, inclusive em empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público (incisos XVI e XVII do artigo 37 da Constituição Federal). A tese é improcedente pelo fundamento acolhido pelo Plenário quando do julgamento da liminar, também defendido pelo Advogado Geral da União e pelo Procurador-Geral da República: o exercício pelo servidor público de mandato como membro de Conselho Fiscal ou de Administração de empresa estatal não representa exercício de cargo ou função pública stricto sensu, de forma a atrair a vedação constitucional. A vedação constitucional à acumulação remunerada não impede, assim, que determinado servidor público seja nomeado para uma função gratificada. Embora o servidor tenha um cargo efetivo e passe a ocupar determinado "cargo comissionado", não existe acumulação ilícita, pois esse segundo não é cargo em sentido estrito. O mesmo acontece com a atuação nos conselhos de administração e fiscal das empresas estatais. Embora usualmente designados "cargo de conselheiro" ou "função de conselheiro", a atuação como conselheiro pelo servidor público não significa exercício de novo cargo, emprego ou função pública em sentido estrito. A nomeação para conselheiro assemelha-se mais à nomeação para um "cargo comissionado", constitucionalmente lícita. Como se nota, a expressão "função pública" tem múltiplas definições e, nesse particular, como bem apontado pela ilustre Ministra Relatora da ADI 1485, "o exercício pelo servidor público de mandato como membro de Conselho Fiscal ou de Administração de empresa estatal não representa exercício de cargo ou função pública stricto sensu" para fins de acumulação, como já reconhecido pelo e. STF. O mesmo raciocínio se aplica para os fins de teto remuneratório constitucional. Quando a norma Constitucional estabelece que o valor recebido por Ministros de Estado não poderá exceder o subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal, está a se referir à parcela especificamente vinculada ao cargo de Ministro de Estado, não englobando o valor relativo à atividade sui generis e autônoma de membro de Conselho. Tal função inegavelmente gera carga de trabalho extra, cuja retribuição pecuniária passou a ser devida com a promulgação da Lei n. 9.292/1996, e não está abarcada pelo teto do inciso XI do art. 37 da Constituição Federal, que se refere inegavelmente às variadas espécies remuneratórias relativas ao cargo de Ministro de Estado e não, repita-se, de outra função, como a de conselheiro, cuja remuneração não possui origem diretamente pública. Noutras palavras, um Ministro de Estado recebe, como contraprestação do exercício de seu cargo, subsídio limitado ao teto. Se, ademais, também estiver ocupando a função, em sentido amplo (portanto não a função em sentido estrito constante do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal), de Conselheiro, receberá outro valor, que não tem origem nos cofres públicos, como contrapartida pelas atividades realizadas perante o Conselho. Frise-se, também, que as empresas estatais têm natureza jurídica privada, sendo também privada, portanto, a verba repassada aos conselheiros. Não é demais repisar que a própria Constituição, em seu art. 37, § 9º, estabelece que o teto remuneratório "aplica-se às empresas públicas e às sociedades de economia mista, e suas subsidiárias, que receberem recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral". A contrario sensu, não se aplica às estatais autossuficientes, que não recebem verbas públicas para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral. Por fim, concluir de forma diversa levaria à injusta criação de duas classes diversas de conselheiros: aqueles que não fossem oriundos da Administração Pública receberiam normalmente o valor aqui em discussão, enquanto que os demais trabalhariam sem essa contraprestação pecuniária.
Tema 1199/STF: retroatividade restrita da Lei 14.230/2021 à improbidade culposa sem trânsito em julgado
Cinge-se a controvérsia a respeito da possibilidade de aplicação retroativa da Lei n. 14.230/2021 na hipótese de recurso que não ultrapassou o juízo de admissibilidade. O Supremo Tribunal Federal, em 18 de agosto de 2022, concluiu o julgamento do ARE 843.989 (Tema 1.199), DJe 12/12/2022, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, relativo à controvérsia acerca da definição de eventual (ir)retroatividade das disposições da referida Lei n. 14.230/2021, em especial, acerca da necessidade da presença do elemento subjetivo dolo para a configuração do ato ímprobo, inclusive no art. 10 da LIA, e da aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente, fixando as seguintes teses: 1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - dolo; 2) A norma benéfica da Lei n. 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei n. 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei n. 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei. Em relação aos pedidos de aplicação da Lei n. 14.230/2021 a recursos que não ultrapassaram o juízo de admissibilidade, a Segunda Turma do STJ, no julgamento dos EDcl nos EDcl nos EDcl no AgInt no AREsp 1.706.946/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, realizado em 22/11/2022, DJe de 19/12/2022, flexibilizou o seu entendimento ao decidir pela possibilidade de retroação da aludida Lei a ato ímprobo culposo não transitado em julgado, ainda que não conhecido o recurso, por força do Tema 1.199/STF. Recentemente, a Primeira Turma do STJ, por maioria, no julgamento do AREsp 2.031.414/MG, Rel. Ministro Gurgel de Faria, realizado em 9/5/2023, o qual discutia a aplicabilidade dos §§ 1º e 2º do art. 21 da Lei n. 8.429/1992, introduzidos pela Lei n. 14.230/2021, aos processos de improbidade administrativa em curso, seguindo a divergência apresentada pela Ministra Regina Helena Costa, firmou orientação no sentido de conferir interpretação restritiva às hipóteses de aplicação retroativa da Lei n. 14.230/2021, se aplicando apenas aos atos ímprobos culposos não transitados em julgado.
Plano de saúde deve inscrever menor sob guarda como dependente natural equiparado a filho
O art. 2º, I, b, da Resolução Normativa da Agência Nacional de Saúde (ANS) n. 295/2012 estabelece que é dependente "o beneficiário de plano privado de assistência à saúde cujo vínculo contratual com a operadora depende da existência de relação de dependência ou de agregado a um beneficiário titular". A jurisprudência desta Corte, por sua vez, se consolidou no sentido de que o menor sob guarda é tido como dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários, consoante estabelece o § 3º do art. 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Inclusive, sob essa perspectiva, a Primeira Seção do STJ, ao julgar o REsp 1.411.258/RS, pela sistemática dos recursos repetitivos (julgado em 11/10/2017, DJe 21/2/2018 - Tema 732), fixou a tese de que "o menor sob guarda tem direito à concessão do benefício de pensão por morte do seu mantenedor, comprovada a sua dependência econômica, nos termos do art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda que o óbito do instituidor da pensão seja posterior à vigência da Medida Provisória n. 1.523/1996, reeditada e convertida na Lei n. 9.528/1997". Sob essa perspectiva, a Terceira Turma, ao analisar situação análoga à dos autos, equiparou o menor sob guarda judicial ao filho natural, impondo à operadora, por conseguinte, a obrigação de inscrevê-lo como dependente natural - e não como agregado - do guardião, titular do plano de saúde.