Legalidade e razoabilidade do limite de 1% na rotulagem de organismos geneticamente modificados
Cinge-se a controvérsia acerca da legalidade e compatibilidade com o ordenamento jurídico do Decreto n. 4.680/2003, na parte que estabelece o limite de 1 (um) por cento, acima do qual se torna obrigatória a informação expressa nos rótulos dos produtos comercializados a respeito da presença de organismos geneticamente modificados (OGM). No Brasil, o início do plantio de transgênicos somente ocorreu em 1999/2000. Naquele momento era compreensível, diante da novidade, a preocupação com a informação absoluta nos rótulos dos produtos. Passados quase vinte e cinco anos, hoje já se sabe que os alimentos cem por cento transgênicos não representam risco comprovado à saúde, como se imaginava pudessem vir a se mostrar nocivos, muito menos em proporções ínfimas, abaixo de um por cento. Considerando a proliferação do uso dos transgênicos em inúmeros setores da indústria alimentícia, dificilmente se poderia identificar algum produto que fosse cem por cento isento de alguma partícula de alimentos transgênicos, já que o próprio processo produtivo ou a mera armazenagem dos grãos, por exemplo, pode implicar a presença de algum percentual mínimo de OGM nos produtos finais. O entendimento no sentido de impedir a comercialização de qualquer alimento que contenha OGM, independentemente do percentual, sem a expressa referência em sua rotulagem, ultrapassa os limites da razoabilidade e proporcionalidade, mostrando-se contrário ao ordenamento vigente, mormente no que concerne aos parâmetros de necessidade e adequação, tendo em vista o atual estado da técnica e a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo em face do necessário desenvolvimento econômico e tecnológico, a fim de viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal). Para aqueles que, por questões pessoais de cunho individual, seja insuportável a possibilidade de que algum alimento contenha ínfimas partículas de OGMs, podem buscar no mercado alimentos produzidos com extremo cuidado ascético que lhes garanta que sejam cem porcento livres de quaisquer resquícios de OGM, como ocorre em outros nichos, que oferecem alimentos cem por cento orgânicos, cem por cento livres de agrotóxicos, cem por cento veganos, e outros similares. Todavia, exigir de toda a indústria que submeta todos os produtos a rigorosos testes, de alto custo, para garantir a informação específica de qualquer ínfimo resquício de OGM, em toda a cadeia produtiva, é providencia exagerada, assaz desproporcional, que afronta a razoabilidade e a proporcionalidade, e impede a convivência harmoniosa dos interesses dos participantes do mercado, a fim de compatibilizar a proteção do consumidor com os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal) e viabilizar o desenvolvimento econômico e tecnológico sustentável, em prol de toda a sociedade. Nesse sentido, o Decreto n. 4.680/2003 obedece aos ditames legais, no tocante ao limite de tolerância dos OGMs, dispensando a rotulagem em 1% (um por cento), porcentagem que não afronta a razoabilidade e a proporcionalidade, em vista ao desenvolvimento econômico sustentável, sem qualquer risco conhecido aos consumidores e à saúde pública.
Nulidade absoluta por atuação extraprocessual do juiz que influencia o depoimento do acusado
O Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado acerca da relevância e do caráter fundamental das garantias inerentes ao devido processo legal, cuja envergadura vem impressa, de maneira indelével, no art. 5º, LIV, da Constituição Federal, que assegura que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Dentro do conjunto de garantias conferido aos litigantes, "o processo penal, além de instrumento de legitimação do poder punitivo estatal e de proteção dos bens jurídicos mais caros à sociedade, ao fixar arquétipos normativos rígidos, constitui significativo meio de limitação do arbítrio estatal e de salvaguarda dos direitos fundamentais dos investigados, acusados e réus." (STF, RE 1.301.250-RJ, relatora Ministra Rosa Weber). No caso, o Tribunal de origem entendeu não ter havido nulidade pelo motivo de o magistrado responsável pela instrução realizar oitivas informais dos acusados acerca dos fatos antes da audiência em continuação. Contudo, tal entendimento vai de encontro ao que vem sendo decidido por esta Corte Superior. Acerca da confissão informal, mutatis mutandis, vale lembrar que recentemente a Terceira Seção do STJ firmou a seguinte tese: "11.1: A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu)..." (AREsp 2.123.334-MG, Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, DJe 2/7/2024). Ou seja, se a confissão informal já merece profundo escrutínio quando suscitada em fase extrajudicial e para acusado maior de idade, com maior razão há de se acautelar em garantia do devido processo legal quando tais diálogos informais são travados pelo magistrado que preside o ato e com menor acusado de ato infracional. Na situação em análise, apurado que o magistrado responsável por presidir a audiência em continuação, onde as provas judiciais orais seriam colhidas sob contraditório, atuou de maneira direta e fora da solenidade, "no corredor" das dependências do fórum, tendo mencionado tal fato a pretexto de influenciar no depoimento da parte já durante a audiência, observa-se flagrante descumprimento dos deveres de prudência, imparcialidade e transparência, a indicar a nulidade do ato. Portanto, verificada a atuação extra autos do magistrado que influenciou no depoimento do adolescente infrator, não se pode cogitar da validade do ato, nem sequer a pretexto de ausência de prejuízo, uma vez que o entendimento pacífico do STJ é no sentido de que quebra de imparcialidade do magistrado é causa de nulidade absoluta.
Presunção de filiação e dupla maternidade em uniões homoafetivas com inseminação artificial caseira
Para que se verifique a presunção de filiação prevista no art. 1.597, V, do CC/2002, é necessário que estejam presentes os seguintes requisitos: (I) a concepção da criança na constância do casamento; (II) a utilização da técnica de inseminação artificial heteróloga; e (III) a prévia autorização do marido. Verificada a concepção de filho no curso de convivência pública, contínua e duradoura, com intenção de constituição de família, viável a aplicação análoga do disposto no art. 1.597, do Código Civil, às uniões estáveis hétero e homoafetivas, em atenção à equiparação promovida pelo julgamento conjunto da ADI 4.277 e ADPF 132 pelo Supremo Tribunal Federal. Conquanto o acompanhamento médico e de clínicas especializadas seja de extrema relevância para o planejamento da concepção por meio de técnicas de reprodução assistida, não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao registro de filiação realizada por meio de inseminação artificial "caseira", também denominada "autoinseminação". Ao contrário, a interpretação do art. 1.597, V, do CC/2002, à luz dos princípios que norteiam o livre planejamento familiar e o melhor interesse da criança, indica que a inseminação artificial "caseira" é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro. No caso, preenchidos, simultaneamente, todos os requisitos do art. 1.597, V, do Código Civil, presume-se a maternidade.
Devolução de valores de benefícios previdenciários e assistenciais pagos por tutela antecipada reformada
Cinge-se a controvérsia a respeito da possibilidade de complementar o entendimento firmado no tema repetitivo 692/STJ (REsp 1.401.560/MT, julgado em 12/2/2014), que continha a seguinte redação: "a reforma da decisão que antecipa a tutela obriga o autor da ação a devolver os benefícios previdenciários indevidamente recebidos". Em 11/5/2022, no julgamento da Questão de Ordem na Pet 12.482/DF, proposta para revisar o entendimento do Tema 692/STJ, a Primeira Seção esclareceu que "a tutela de urgência não deixa de ser precária e passível de modificação ou revogação a qualquer tempo, o que implicará o retorno ao estado anterior à sua concessão". Além disso, aduziu que a maioria dos precedentes contrários ao Tema 692/STJ não diziam respeito a lides previdenciárias e que todos seriam anteriores às alterações inseridas pela Lei 13.846/2019, no art. 115, II, da Lei 8.213/1991. Dessa forma, a Primeira Seção decidiu por julgar a questão de ordem no sentido da reafirmação da tese jurídica contida no Tema Repetitivo 692/STJ, com acréscimo redacional para ajuste à nova legislação de regência (art. 115, II, da Lei n. 8.213/1991). O INSS indaga, nos presentes embargos de declaração, sobre a possibilidade de cobrança dos valores pagos por força de decisão precária nos próprios autos ou em autos apartados e a necessidade de complementação da redação da tese jurídica firmada no Tema 692/STJ. Nesse sentido, não obstante o voto proferido na Questão de Ordem na Pet 12.482/DF tenha sido claro quanto à possibilidade de liquidação nos próprios autos, quando reformada a decisão que lastreava a execução provisória, com base no art. 520, I e II, do CPC/2015 (art. 475-O, I e II, do CPC/1973), observa-se que a tese jurídica firmada não fez nenhuma referência a esse posicionamento. Por essa razão, a fim de evitar desnecessárias controvérsias derivadas do julgamento da Questão de Ordem na Pet 12.482/DF, se faz necessária uma complementação no conteúdo da tese jurídica consagrada no Tema 692/STJ, para incluir, expressamente, a possibilidade de liquidação nos próprios autos, na forma do art. 520, I e II, do CPC/2015 (art. 475-O, I e II, do CPC/1973). Fixa, assim, a seguinte tese jurídica: "a reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos, na forma do art. 520, II, do CPC/2015 (art. 475- O, II, do CPC/1973)".
Competência originária do STJ para julgar desembargadores independentemente de nexo funcional
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ, estabeleceu que o foro por prerrogativa de função deve limitar-se aos crimes praticados no cargo e em sua função, não se estendendo aos delitos praticados por autoridades, ainda que durante o exercício do cargo, mas que com ele não tenham relação alguma. Assim, ao restabelecer o critério da contemporaneidade, o Supremo Tribunal Federal procurou manter o foro por prerrogativa de função circunscrito àquelas hipóteses em que o crime, além de ser praticado durante o exercício do cargo, tenha relação com o exercício das funções desempenhadas. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça passou a reconhecer que, em se tratando de delitos praticados por desembargadores, a competência se mantém no STJ, ainda que os fatos não tenham relação com o exercício do cargo, considerando que o processamento e o julgamento do feito por magistrado de primeiro grau de jurisdição vinculado ao mesmo Tribunal poderiam afetar a independência e a imparcialidade que orientam a atividade jurisdicional. Ademais, a Corte Especial do STJ tem entendimento de que "a necessidade de que o julgador possa reunir as condições para o desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial não se revela como um privilégio do julgador ou do acusado, mas como uma condição para que se realize justiça criminal de forma isonômica e republicana" (QO na APn n. 878/DF, relator Ministro Benedito Gonçalves, Corte Especial, julgado em 21/11/2018, DJe 19/12/2018).