Taxatividade do rol da ANS e hipóteses de cobertura extra rol na saúde suplementar
É notória a existência de posicionamentos antagônicos entre as duas Turmas integrantes da Segunda Seção: enquanto a Terceira Turma reafirmou ser o rol de procedimentos em Saúde, previsto em lei e editado pela ANS, de caráter meramente exemplificativo (caso ora analisado em julgamento), a Quarta Turma, a partir do julgado apontado como paradigma (REsp 1.733.013/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020), após acurado exame do tema com participação de diversos amici curiae , passou a reconhecer o rol como taxativo, salvo situações excepcionais em que, após devida instrução processual, o Juízo imponha determinada cobertura que se apure ser efetivamente imprescindível a garantir a saúde do beneficiário. Com efeito, resguardado o núcleo essencial do direito fundamental, no tocante à saúde suplementar, são, sobretudo, a Lei n. 9.656/1998, a Lei n. 9.961/2000 e os atos regulamentares infralegais da ANS e do Conselho de Saúde Suplementar, expressamente prestigiados por disposições legais infraconstitucionais, que, representando inequivocamente forte intervenção estatal na relação contratual de direito privado (planos e seguros de saúde), conferem densidade normativa ao direito constitucional à saúde. Cabe menção também ao art. 35-G da Lei n. 9.656/1988, incluído pela MP n. 2.177-44/2001, o qual estabelece que as disposições do CDC se aplicam subsidiariamente aos contratos entre usuários e operadoras de produtos a que se referem o inciso I e o parágrafo 1º do art. 1º da mesma Lei. Nos termos do art. 1º da Lei n. 9.656/1998, os planos privados de assistência à saúde consistem em prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós-estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando à assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor. Destarte, por clara opção do legislador, extrai-se do art. 10, § 4º, da Lei n. 9.656/1998, c/c o art. 4º, III, da Lei n. 9.961/2000, que é atribuição da ANS elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei dos Planos e Seguros de Saúde. A vigente Medida Provisória n. 1.067, de 2 de setembro de 2021, altera o art. 10º da Lei n. 9.656/1998 para, uma vez mais, explicitar que, a amplitude da cobertura legal no âmbito da Saúde Suplementar, será estabelecida em norma editada pela ANS (rol) e sua atualização a cada 120 dias. É importante salientar que, deixando nítido que não há o dever de fornecer toda e quaisquer cobertura vindicada pelos usuários dos planos de saúde, ao encontro das mencionadas Resoluções Normativas ANS, a já mencionada Medida Provisória n. 1.067, de 2 de setembro de 2021, incluiu o art. 10-D, § 3º, I, II e III, na Lei n. 9.656/1998. Por um lado, não se pode deixar de observar que o rol mínimo e obrigatório de procedimentos e eventos em saúde constitui relevante garantia do consumidor para assegurar direito à saúde, em preços acessíveis, contemplando a camada mais ampla e vulnerável da população. Por conseguinte, considerar esse mesmo rol meramente exemplificativo representaria, na verdade, negar a própria existência do "rol mínimo" e, reflexamente, negar acesso à saúde suplementar à mais extensa faixa da população. Lamentavelmente, salvo os planos de saúde coletivo empresariais, subvencionados pelo próprio empregador, em regra, os planos de saúde, hoje em dia, são acessíveis apenas às classes média alta e alta da população. Por outro lado, esse entendimento de que o rol (ato estatal, com expressa previsão legal e imperatividade inerente, que vincula fornecedores e consumidores) é meramente exemplificativo, malgrado, a toda evidência, seja ato de direito administrativo, e não do fornecedor de serviços - devendo, ademais, a cobertura mínima, paradoxalmente, não ter limitações definidas -, tem o condão de efetivamente padronizar todos planos de saúde, obrigando-lhes, tacitamente, a fornecer qualquer tratamento prescrito para garantir a saúde ou a vida do segurado. A submissão ao rol da ANS, a toda evidência, não privilegia nenhuma das partes da relação contratual, pois é solução concebida e estabelecida pelo próprio legislador para harmonização da relação contratual. É importante pontuar que não cabe ao Judiciário se substituir ao legislador, violando a tripartição de poderes e suprimindo a atribuição legal da ANS ou mesmo efetuando juízos morais e éticos, não competindo ao magistrado a imposição dos próprios valores de modo a submeter o jurisdicionado a amplo subjetivismo. Observa-se que as técnicas de interpretação do Código de Defesa do Consumidor devem levar em conta o art. 4º daquele diploma, que contém uma espécie de lente através da qual devem ser examinados os demais dispositivos, notadamente por estabelecer os objetivos da Política Nacional das Relações de Consumo e os princípios que devem ser respeitados, entre os quais se destacam, no que interessa ao caso concreto, a "harmonia das relações de consumo" e o "equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores". Na verdade, o contrato de assistência à saúde põe em confronto dois valores antagônicos. De um lado, a operação econômica, cujo equilíbrio deve ser preservado como meio de assegurar a utilidade do contrato (a assistência prometida). De outro lado, o interesse material do consumidor na preservação da sua saúde Nesse rumo, é digno de registro que a uníssona doutrina especializada e a majoritária consumerista alertam para a necessidade de não se inviabilizar a saúde suplementar, realçando que "uma das grandes dificuldades em relação ao contrato de seguro e planos de assistência à saúde diz respeito à manutenção do equilíbrio das prestações no tempo". A disciplina contratual "exige uma adequada divisão de ônus e benefícios, na linha de que os estudos sobre contratos relacionais no Brasil vêm desenvolvendo, dos sujeitos como parte de uma mesma comunidade de interesses, objetivos e padrões. Isso terá de ser observado tanto em relação à transferência e distribuição adequada dos riscos quanto na identificação de deveres específicos ao fornecedor para assegurar a sustentabilidade, gerindo custos de forma racional e prudente". Conclui-se que, se fosse o rol da ANS meramente exemplificativo, desvirtuar-se-ia sua função precípua, não se podendo definir o preço da cobertura diante de lista de procedimentos indefinida ou flexível. O prejuízo para o consumidor seria inevitável, já que, caso desrespeitada a regulação incidente, de duas uma: ou sobrecarregam-se os usuários com o consequente repasse dos custos ao preço final do serviço, impedindo maior acesso da população - sobretudo os mais vulneráveis economicamente - ao Sistema de Saúde Suplementar, ou inviabiliza-se a atividade econômica desenvolvida pelas operadoras e seguradoras. Logo, propõem-se, para a matéria controvertida sob exame, os seguintes critérios: 1 - o rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo; 2 - a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol; 3 - é possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol; 4 - não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da Saúde Suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como CONITEC e NATJUS) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.
Termo inicial dos encargos moratórios da ANP após prazo de pagamento de 30 dias
A Lei n. 9.847/1999, que cuida da fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis, estabelece, de forma expressa, que os juros e a multa moratória eventualmente incidentes sobre as multas impostas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP devem fluir após o término do prazo de trinta dias de que dispõe o autuado para efetuar o pagamento, contados da decisão administrativa definitiva (art. 4º, § 1º). Por outro lado, a Lei n. 10.522/2001, que disciplina o Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais - CADIN, adota, como dies a quo , por remissão à Lei n. 9.430/1996, o dia seguinte ao vencimento da obrigação, no caso da multa, e o primeiro dia do mês subsequente ao vencimento, no caso dos juros (art. 37-A), traduzindo, no ponto, antinomia aparente entre as normas. Isso porque, enquanto o diploma de 1999 prescreve que o valor originário da multa sofrerá a incidência dos encargos somente após ultimada a instância administrativa, o diploma de 2001 permite a sua fluência em momento anterior, quando esgotado o trintídio para pagamento fixado na decisão de primeira instância confirmatória da autuação, vale dizer, quando ainda não finalizado o procedimento administrativo. Todavia, verifica-se que a Lei n. 10.522/2001 disciplina, original e particularmente, a inscrição de créditos não pagos no CADIN, revelando, por conseguinte, objeto genérico e distinto do regramento acerca da incidência dos apontados encargos, foco da presente controvérsia. Já a Lei n. 9.847/1999, diferentemente, contém disciplina especial quanto ao procedimento, forma de pagamento e consectários das multas aplicadas especificamente pela ANP, como resultado da sua ação fiscalizadora sobre as atividades do abastecimento nacional de combustíveis. Segue-se, portanto, que estão presentes os elementos especializantes objetivo (processo administrativo com disciplina própria para apuração de infração praticada no mercado de combustíveis) e subjetivo (autuação promovida pela ANP). Assim, embora cronologicamente ulterior, a previsão inserida na Lei n. 10.522/2001 não tem o condão de afastar a aplicação do preceito específico, pois, conforme advertiu a doutrina, "não pode o aparecimento da norma ampla causar, só por si, sem mais nada, a queda da autoridade da prescrição especial vigente". Fato é que, quando ausente disposição legal específica quanto à forma de contagem dos acréscimos moratórios - o que não ocorre na espécie -, a legislação de regência de algumas agências reguladoras remete a atualização da multa para outros diplomas, a exemplo da Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, cujo decreto regulamentador dispõe que a autarquia "atualizará os valores das multas segundo os critérios fixados pela legislação federal específica" (art. 17, § 5º, do Decreto n. 2.335/1997), e da Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC, que alude à legislação dos tributos federais (art. 29-A da Lei n. 11.182/2005). Por conseguinte, trata-se de opção legislativa que estabelece o termo inicial da fluência dos juros e da multa moratória para depois do epílogo da instância administrativa, ainda que o sujeito autuado não apresente defesa nem alegações finais, porquanto, considerando a ausência de data de vencimento da obrigação no auto de infração, somente se imporá o prazo de trinta dias para recolher o valor após decorridos, ao menos, os lapsos temporais para tais manifestações. Noutro giro, será apenas na decisão administrativa de procedência da autuação que se determinará o pagamento da multa com vencimento em trinta dias, esgotados os quais o montante poderá sofrer a incidência dos encargos (arts. 26 e 27 do Decreto n. 2.953/1999). Até aqui, portanto, não há, a rigor, conflito entre os diplomas legais envolvidos, uma vez que, tanto a lei específica, quanto a geral, prescrevem a fluência dos acréscimos tomando como baliza para o marco inicial o vencimento da obrigação encartado na decisão confirmatória irrecorrida. O dissenso desponta, efetivamente, quando o autuado recorre do pronunciamento administrativo de primeiro grau decisório, o que faz deslocar o termo inicial da fluência dos encargos do dia seguinte ao vencimento do trintídio fixado no pronunciamento para o dia subsequente ao trânsito em julgado da decisão do recurso, vale dizer, da decisão final ou definitiva. Cuida-se, no entanto, de marco legitimamente eleito pela lei especial e previsto na norma regulamentadora, dos quais defluem a prioridade do exercício de defesa pelo agente autuado em detrimento da satisfação adiantada da sanção pecuniária. No ponto, oportuno registrar que a Lei n. 9.847/1999 desestimula eventual conduta protelatória do infrator, ao lhe conferir a significativa redução de trinta por cento do valor da multa, caso renuncie expressamente ao direito de recorrer da decisão confirmatória da autuação, no prazo disponível para a interposição do recurso. Nesse cenário, o art. 4º, § 1º, da Lei n. 9.847/1999, pela especialidade que ostenta, afasta a incidência dos arts. 37-A da Lei n. 10.522/2001, e 61, §§ 1º e 3º, da Lei n. 9.430/1996, relativamente ao termo inicial da incidência dos juros e da multa moratória de multa administrativa imposta pela ANP.
Efeitos do parcelamento na penhora online via BacenJud: manutenção ou levantamento
A jurisprudência consolidada desta Corte, a qual se pretende reafirmar, mantendo-a estável, íntegra e coerente, na forma do art. 926 do CPC/2015, admite a manutenção do bloqueio de valores via sistema BACENJUD realizado em momento anterior à concessão de parcelamento fiscal, seja em razão de expressa previsão, na legislação do parcelamento, de manutenção das garantias já prestadas, seja porque, ainda que não haja tal previsão na legislação do benefício, o parcelamento, a teor do art. 151, VI, do CTN, não extingue a obrigação, apenas suspende a exigibilidade do crédito tributário, mantendo a relação jurídica processual no estado em que ela se encontra, cuja execução fiscal poderá ser retomada, com a execução da garantia, em caso de eventual exclusão do contribuinte do programa de parcelamento fiscal. Não prospera o argumento levado a efeito pelo Tribunal de origem, bem como pela Defensoria Pública da União em sua manifestação como amicus curiae, no sentido de diferenciar o dinheiro em depósito ou aplicação financeira, bloqueado via sistema BACENJUD, dos demais bens passíveis de penhora ou constrição, visto que não há diferenciação em relação ao bem dado em garantia na legislação que trata da manutenção das garantias do débito objeto do parcelamento fiscal, não cabendo ao intérprete fazê-lo, sob pena de atuar como legislador positivo em violação ao princípio da separação dos poderes. Se o bloqueio de valores do executado via sistema BACENJUD ocorre em momento posterior à concessão de parcelamento fiscal, não se justifica a manutenção da constrição, devendo ser levantado o bloqueio, visto que: (i) se o parcelamento for daqueles cuja adesão exige, como um dos requisitos, a apresentação de garantias do débito, tais requisitos serão analisados pelo Fisco no âmbito administrativo e na forma da legislação pertinente para fins de inclusão do contribuinte no programa; e (ii) a suspensão da exigibilidade do crédito fiscal pelo parcelamento (já concedido) obsta sejam levadas a efeito medidas constritivas enquanto durar a suspensão da exigibilidade do crédito, no caso, na vigência do parcelamento fiscal. Tal orientação já foi consolidada pela Primeira Seção desta Corte, em sede de recurso especial repetitivo, nos autos do REsp 1.140.956/SP, de relatoria do eminente Ministro Luiz Fux, DJe 3/12/2010.
Estupro de vulnerável por ato libidinoso com menor de 14 anos e dolo específico
O abuso sexual contra o público infantojuvenil é uma realidade que insiste em perdurar ao longo do tempo. A grande dificuldade desse problema, porém, é dimensioná-lo, pois uma parte considerável dos delitos, conforme a doutrina, "ocorrem no interior dos lares, que permanecem recobertos pelo silêncio das vítimas". Há uma elevada taxa de cifra negra nas estatísticas. Além do natural medo de contar para os pais (quando estes não são os próprios agressores), não raro essas vítimas sequer, como alerta a doutrina, "possuem a compreensão adequada da anormalidade da situação vivenciada". Nessa senda, revela-se importante observar que nem sempre se entendeu a criança e o adolescente como sujeito histórico e de direitos. Em verdade, a proteção às crianças e aos adolescentes é fenômeno histórico recente. Nesse passo, a doutrina lembra que "vivemos um momento sem igual no plano do direito infantojuvenil. Crianças e adolescentes ultrapassam a esfera de meros objetos de "proteção" e "tutela" pela família e pelo Estado e passam à condição de sujeitos de direito, beneficiários e destinatários imediatos da doutrina da proteção integral." Este Superior Tribunal de Justiça, em várias oportunidades, já se manifestou no sentido de que a prática de qualquer ato libidinoso, compreendido como aquele destinado à satisfação da lascívia, com menor de 14 anos, configura o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP). Não se prescinde do especial fim de agir: "para satisfazer à lascívia". Porém, não se tolera as atitudes voluptuosas, por mais ligeiras que possam parecer. Em alguns precedentes, ressaltou-se até mesmo que o delito prescinde inclusive de contato físico entre vítima e agressor. Nesse passo, é possível observar que a maior ou menor superficialidade dos atos libidinosos, a intensidade do contato ou a virulência da ação criminosa não são critérios relevantes para a tipificação do delito em questão. Além disso, é válido lembrar que outras circunstâncias incidentais, como o consentimento da vítima, sua experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre vítima e agente delitivo, igualmente, não se revelam capazes de excluir o crime ou modificar a figura típica. Parcela da doutrina, já há muito, desde antes da reforma de 2009 que unificou em um só tipo penal o estupro e o atentado violento ao pudor, criticava o rigor legal com atos considerados fugazes. Assim, sugeria fossem essas condutas desclassificadas para a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor. Com efeito, a pretensão de se desclassificar a conduta de violar a dignidade sexual de pessoa menor de 14 anos para uma contravenção penal (punida, no máximo, com pena de prisão simples) já foi reiteradamente rechaçada pela jurisprudência desta Corte. A superveniência do art. 215-A do CP (crime de importunação sexual) trouxe novamente a discussão à tona, mas o conflito aparente de normas é resolvido pelo princípio da especialidade do art. 217-A do CP, que possui o elemento especializante "menor de 14 anos", e também pelo princípio da subsidiariedade expressa do art. 215-A do CP, conforme se verifica de seu preceito secundário in fine . Estudando a nova figura típica, e cotejando com as outras então existentes, a doutrina observa que, na importunação sexual, a falta de anuência da vítima não pode consistir em nenhuma forma de constrangimento. Se houver constrangimento no sentido de "obrigar" alguém à prática de ato de libidinagem, estará configurado o crime de estupro, ante a presença do verbo nuclear do tipo do art. 213 do CP. Nos casos de estupro de vulnerável, por outro lado, foi necessário advertir que não há propriamente um constrangimento à prática de atos sexuais. Não existe sequer presunção de constrangimento ou de violência. Na figura típica do art. 217-A do CP, pune-se simplesmente a prática de atos de libidinagem com alguém menor de catorze anos ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Por isso, ao contrário do que ocorre no cotejo entre os arts. 213 e 215-A, ambos do CP, o constrangimento não é elemento especializante do estupro de vulnerável. O fator especializante do art. 217-A do CP, na sistemática da Lei n. 12.015/2009, é simplesmente a idade da vítima: "vítima menor de 14 (catorze) anos". Além disso, a cogência do art. 217-A do CP não pode ser afastada sem a observância do princípio da reserva de plenário pelos tribunais (art. 97 da CRFB). Não é só. Desclassificar a prática de ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o delito do art. 215-A do CP, crime de médio potencial ofensivo que admite a suspensão condicional do processo, desrespeitaria ao mandamento constitucional de criminalização do art. 227, §4º, da CRFB, que determina a punição severa do abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes. Haveria também descumprimento a tratados internacionais. O art. 19 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança é peremptório ao impor aos Estados a adoção de medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra "todas" as formas de abuso. Em verdade, a subsunção no art. 217-A do CP prestigia o princípio da proporcionalidade, notadamente no aspecto da proibição da proteção insuficiente, bem como o princípio da proteção integral, conforme visto. Vale lembrar que a criança e adolescente são indivíduos que possuem uma condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 6º do ECA). Por isso, a proteção especial não se mostra afrontosa ao princípio da isonomia. De fato, o legislador pátrio poderia, ou mesmo deveria, promover uma graduação entre as espécies de condutas sexuais praticadas em face de pessoas vulneráveis, seja por meio de tipos intermediários, o que poderia ser feito através de crimes privilegiados, ou causas especiais de diminuição. De sorte que, assim, tornar-se-ia possível penalizar mais ou menos gravosamente a conduta, conforme a intensidade de contato e os danos (físicos ou psicológicos) provocados. Mas, infelizmente, não foi essa a opção do legislador e, em matéria penal, a estrita legalidade se impõe ao que idealmente desejam os aplicadores da lei criminal. Verifique-se que a opção legislativa é pela absoluta intolerância com atos de conotação sexual com pessoas menores de 14 anos, ainda que superficiais e não invasivos. Toda a exposição até aqui demonstra isso. E, essa opção, embora possa não parecer a melhor, não é de todo censurável, pois, veja-se, como leciona a doutrina, "o abuso sexual contra crianças e adolescentes é problema jurídico, mas sobretudo de saúde pública, não somente pelos números colhidos, mas também pelas graves consequências para o desenvolvimento afetivo, social e cognitivo". Nesse sentido, "não é somente a liberdade sexual da vítima que deve ser protegida, mas igualmente o livre e sadio desenvolvimento da personalidade sexual da criança". Tanto a jurisprudência desta Corte Superior quanto a do Supremo Tribunal Federal são pacíficas em rechaçar a pretensão de desclassificação da conduta de praticar ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o crime de importunação sexual (art. 215-A do CP).
Manutenção de benefício previdenciário administrativo mais vantajoso e execução do judicial até a implantação
O tema ora em discussão consiste em estabelecer a "possibilidade de, em fase de cumprimento de sentença, o segurado do Regime Geral de Previdência Social receber parcelas pretéritas de aposentadoria concedida judicialmente até a data inicial de aposentadoria concedida administrativamente pelo INSS enquanto pendente a mesma ação judicial, com implantação administrativa definitiva dessa última por ser mais vantajosa, sob o enfoque do artigo 18, § 2º, da Lei n. 8.213/1991". A matéria não é pacífica no STJ: a Primeira Turma entende de forma consolidada ser possível o recebimento das duas aposentadorias, enquanto a Segunda Turma, majoritariamente, considera inviável a percepção de ambas, mas atribui ao segurado a opção de escolher uma delas. Nesse ínterim, realinha-se o posicionamento em deferência aos precedentes da Primeira Turma, os quais refletem a orientação predominante desta Corte Superior. O segurado que tenha acionado o Poder Judiciário em busca do reconhecimento do seu direito à concessão de benefício previdenciário faz jus a executar os valores decorrentes da respectiva condenação, ainda que, no curso da ação, o INSS tenha lhe concedido benefício mais vantajoso. Nesse sentido, o segurado poderia receber somente a aposentadoria mais antiga, mas se deve reconhecer que ele não pode ser penalizado ante a peculiaridade do caso concreto, notadamente por ter sido obrigado a esperar, por culpa do INSS, o resultado do pleito da aposentadoria na esfera judicial, incorretamente indeferida pela autarquia. Assim, a boa-fé do segurado e o erro administrativo na análise concessória permitem-lhe a opção por um dos benefícios, o que não seria possível em situação corriqueira de pedido de nova aposentadoria. Se o segurado optar pelo benefício mais antigo, é aquele que deverá ser implantado, e se optar pelo benefício administrativo, mais recente, somente este ele irá receber, não havendo falar em obter parcelas pretéritas do benefício judicial. Com efeito, remanesce o interesse em receber as parcelas relativas ao período compreendido entre o termo inicial fixado em juízo e a data em que o INSS procedeu à efetiva implantação do benefício deferido administrativamente, o que não configura hipótese de desaposentação.