Dispensa do esgotamento das instâncias ordinárias para reclamação por descumprimento de acórdão de IAC
A controvérsia consiste em definir se o Juízo reclamado descumpriu acórdão do Superior Tribunal de Justiça proferido no Incidente de Assunção de Competência n. 5 (REsp 1.799.343/SP), ao afastar a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento da ação proposta pelos ora interessados, em que a discussão ressoa na validade de Acordo Coletivo de Trabalho - ACT que alterou os benefícios relativos a auxílio à saúde fornecido anteriormente na modalidade autogestão. Inicialmente cumpre salientar que é cabível a reclamação ajuizada com o propósito de garantir a observância de tese fixada em acórdão prolatado em incidente de assunção de competência, segundo preconiza o art. 988, IV, do CPC/2015. Da mesma forma, prevê o Regimento Interno desta Corte Superior, em seu art. 187, que, "para preservar a competência do Tribunal, garantir a autoridade de suas decisões e a observância de julgamento proferido em incidente de assunção de competência, caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público desde que, na primeira hipótese, haja esgotado a instância ordinária". Além disso, bem se vê dos mencionados dispositivos legal e regimental que não se exige o esgotamento da instância ordinária como pressuposto de conhecimento da reclamação fundamentada em descumprimento de acórdão prolatado em incidente de assunção de competência. Deste modo, o requisito de esgotamento da instância ordinária é exigido apenas quando a reclamação tiver como propósito a preservação da competência do Superior Tribunal de Justiça e a observância a recurso especial repetitivo. No caso, estando os pedidos da ação originária estritamente vinculados a acordos coletivos de trabalho, com pedido primordial de restabelecimento do regramento anterior do benefício de plano de saúde de autogestão fornecido pela empregadora/reclamante, mediante ACT, sobressai competente a Justiça do Trabalho para o julgamento da demanda, tal como definido no IAC 5/STJ.
Extinção de punibilidade por dissolução legal não fraudulenta da pessoa jurídica
Inicialmente, como se extrai dos arts. 1.116 do CC/2002 e 227 da Lei n. 6.404/1976, a sucessão da incorporada pela incorporadora se opera quanto a direitos e obrigações, e mesmo assim somente para aqueles compatíveis com a natureza da incorporação, como aponta a doutrina. Obrigação, não custa lembrar, é instituto com um sentido jurídico próprio, diferente de seu significado popular, "e aí se concebe a obrigação como um vínculo de direito que liga uma pessoa a outra, ou uma relação de caráter patrimonial, que permite exigir de alguém uma prestação". As consequências de uma série de atos ilícitos cabem em tese no conceito de obrigações, e por isso estão abarcadas pela sucessão. É o caso, por exemplo, da reparação in natura do dano ambiental na esfera cível ou administrativa, juntamente da responsabilidade civil por indenizar terceiros eventualmente afetados pela suposta poluição praticada. Em tais relações, de natureza indiscutivelmente patrimonial, é possível identificar todos os elementos que estruturam uma obrigação, a saber: (I) as partes ativa e passiva (elemento subjetivo), (II) o objeto, que consiste em prestações patrimoniais de dar ou fazer, e (III) o vínculo jurídico que os une ( ex lege , nessa situação hipotética). Por conseguinte, possíveis obrigações reparatórias derivadas do ato ilícito descrito na denúncia podem ser redirecionadas (em tese), nos exatos limites dos arts. 1.116 do CC/2002 e 227 da Lei n. 6.404/1976. Já a pretensão punitiva estatal, pela prática do crime tipificado no art. 54 da Lei n. 9.605/1998, não se enquadra em nenhum desses conceitos ora analisados. É verdade que, como diz o Parquet , as sanções passíveis de imposição à pessoa jurídica, previstas nos arts. 21 a 24 da Lei n. 9.605/1998, assemelham-se a obrigações de dar, fazer e não fazer, o que poderia induzir o intérprete a acreditar numa possível transmissibilidade à sociedade incorporadora. Afinal, há uma inegável similitude entre os efeitos práticos da obrigação civil de reparar o dano causado e, exemplificativamente, a imposição da pena de executar obras de recuperação do meio ambiente degradado, modalidade de reprimenda restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade) tratada no art. 23, II, da Lei n. 9.605/1998. As sanções criminais, entretanto, não se equiparam a obrigações cíveis, porque o fundamento jurídico de sua incidência é em todo distinto. Na relação entre o Ministério Público e o réu em uma ação penal, inexistem os três elementos obrigacionais há pouco referenciados, justamente porque a pretensão punitiva criminal não é uma obrigação, dela divergindo em suas fontes, estruturas e consequências. No aspecto estrutural, o vínculo das obrigações recai sobre o patrimônio do devedor (art. 798 do CPC), enquanto a pretensão punitiva sujeita não só os bens do acusado, mas também sua liberdade e, em casos extremos, sua própria vida (art. 5º, XLVII, "a", da CR/1988) à potestade estatal. Essa severidade adicional do braço sancionador do Estado justifica outra diferença nas estruturas da obrigação e da pretensão punitiva: enquanto a obrigação, sem atravessar a crise do inadimplemento, pode ser espontaneamente cumprida pelo devedor, a pretensão punitiva sequer é tecnicamente adimplível. O autor de um delito não pode, ele próprio, reconhecer a prática do crime e privar-se de sua liberdade com uma pena reclusiva, sendo imprescindível a intermediação do Poder Judiciário para a imposição de sanções criminais - e isso mesmo nos casos em que o sistema jurídico permite negociações entre acusação e defesa a seu respeito, como nos acordos de colaboração premiada, regidos pela Lei n. 12.850/2013. Por fim, as consequências jurídicas da obrigação e da pretensão punitiva são também distintas. Se de um lado a obrigação reclama adimplemento (espontâneo ou forçado) ou resolução em perdas e danos, a pretensão punitiva, de outro, gera a aplicação de pena quando julgada procedente pelo Poder Judiciário. Todas essas diferenciações demonstram que não é possível enquadrar a pretensão punitiva na transmissibilidade regida pelos arts. 1.116 do CC/2002 e 227 da Lei n. 6.404/1976, o que nos traz a uma conclusão intermediária: não há, no regramento jurídico da incorporação, norma autorizadora da extensão da responsabilidade penal à incorporadora por ato praticado pela incorporada. Pensando ainda no aspecto consequencial, a pena é disciplinada por um plexo normativo próprio, com matizes garantistas que delimitam sua extensão e também não têm correspondência no campo das obrigações. Para os fins deste voto, o mais relevante deles é o princípio da pessoalidade ou intranscendência, insculpido no art. 5º, XLV, da CR/1988. Para o Parquet , referido princípio não teria aplicação às pessoas jurídicas, destinando-se exclusivamente às pessoas naturais. A compreensão sistemática da norma constitucional também aponta nessa direção: se o sistema criminal admite a punição de pessoas jurídicas, em que pesem as peculiaridades que derivam da ausência de um corpo físico, não pode o sistema valer-se dessas mesmas peculiaridades como fundamento para restringir garantias penais cujo exercício pela pessoa jurídica é, na prática, possível. É distinta a hipótese da incorporação realizada para escapar ao cumprimento de uma pena já aplicada à sociedade incorporada em sentença definitiva, ainda que não exista fraude. Afinal, no presente caso, não chegou a ocorrer a prolação de sentença condenatória, porque a ação penal foi trancada em seu nascedouro: o que se julgou neste recurso especial foi a possibilidade de a incorporadora suceder a incorporada para responder a ação penal ainda em tramitação. A situação seria diferente se já houvesse sentença definitiva impondo alguma pena à sociedade e esta, sentindo-se onerada pela reprimenda, aceitasse ser incorporada por outra, a fim de não arcar com os efeitos da sanção penal. Para esses dois casos (tanto a ocorrência de fraude como a incorporação realizada após sentença condenatória transitada em julgado), pode-se pensar na desconsideração da incorporação, ou mesmo da personalidade jurídica da incorporadora, a fim de manter viva a sociedade incorporada até que a pena seja cumprida. Ou, no caso da pena mais gravosa do catálogo legal (a liquidação forçada, prevista no art. 24 da Lei n. 9.605/1998), é viável declarar a ineficácia da operação de incorporação em face do Poder Público, de modo a garantir que a parcela de patrimônio incorporada seja alcançada pela pena definitiva. Trata-se de soluções em tese possíveis para evitar o esvaziamento da pretensão punitiva estatal, a serem aprofundadas pelo Judiciário nas hipóteses sobreditas. O fundamental, neste julgamento, é compreender que a situação dos autos não abrange fraude ou incorporação com o fim de escapar a uma pena já aplicada, mesmo porque, repito, a ação penal foi trancada pouco após o recebimento da denúncia. Se configurada alguma dessas outras hipóteses, haverá distinção em relação ao precedente ora firmado, com a necessária aplicação de consequência jurídica diversa.
Prisão preventiva para interromper ciclo delitivo de associações e organizações criminosas garantindo a ordem pública
O caso trata de um paciente apontado como um dos principais beneficiários finais dos desvios de recursos públicos (cerca de 18 milhões de reais) e médico com posição de liderança na organização criminosa constituída para fraudar licitações e contratações públicas realizadas por diversos municípios do Estado de São Paulo, por intermédio, desde 2018, de associação relacionada ao serviço de saúde, inclusive com a instalação e administração de hospitais de campanha destinados ao enfrentamento da pandemia de Covid-19. Tudo num complexo e estruturado esquema criminoso, voltado à prática de lavagem de capitais, de peculato, falsidade ideológica e uso de documento falso. Mesmo depois da deflagração da Operação Contágio, em 20/04/2021, teria havido distribuição de dinheiro pela organização criminosa, com armazenamento de valores em local tido como bunker (a Polícia Federal chegou a apreender mais de 463 mil reais); teria ocorrido a orientação pelos líderes da organização para que os sócios formais das empresas de fachada se ocultassem. Os desvios de recursos públicos estariam continuando mesmo após a nomeação de interventor judicial na associação. O paciente e outro investigado teriam tentado a destruição ou ocultação de provas, ao apagarem todos os registros de conversas do aplicativo Whatsapp com o intuito de destruir evidências. Nesse sentido, estão presentes indícios suficientes de autoria e de materialidade delitiva e há motivação idônea, concreta e contemporânea, para o decreto prisional, seja pela necessidade de interromper o ciclo delitivo da organização criminosa, seja para evitar a reiteração delitiva, ou mesmo a fim de assegurar a conveniência da instrução criminal. Tais particularidades demonstram a gravidade real dos fatos, a periculosidade social do paciente e a reiteração delitiva, havendo, portanto, motivação idônea e contemporânea para o decreto prisional.
Inadmissibilidade de mandado de segurança ante não confirmação da autodeclaração pela heteroidentificação em cotas raciais
A opção pela via corretiva mandamental somente se mostrará procedimentalmente adequada se os fatos que alicerçarem tal direito puderem ser comprovados de plano e de forma incontestável, mediante a apresentação de prova documental trazida já com a petição inicial. No caso, o candidato havia se declarado pardo quando da inscrição no certame. Todavia, consoante o tino dos membros da comissão posteriormente designada para a pessoal conferência dessa informação, a condição de pardo do impetrante restou por eles recusada, mesmo após a apreciação de pertinente recurso administrativo, então instruído com fotografias e laudos emitidos por médicos dermatologistas. Presente esse contexto, emerge a inadequação da via eleita, ao menos por duas fortes razões. Em primeiro lugar, o parecer emitido pela Comissão examinadora, quanto ao fenótipo do candidato, ostenta, em princípio, natureza de declaração oficial, por isso dotada de fé pública, razão pela qual não pode ser infirmada senão mediante qualificada e robusta contraprova. Outrossim, a dilação probatória é providência sabidamente incompatível com a via do mandado de segurança, o que inibe a pretensão autoral de desconstituir, dentro do próprio writ , a conclusão a que chegaram os avaliadores. Em segundo lugar, nas alegações recursais, o impetrante qualifica como "subjetiva" a avaliação levada a efeito pela comissão examinadora, ao argumento de que outras pessoas com características fenotípicas semelhantes à sua tiveram chanceladas semelhantes autodeclarações. Com efeito, alguma razão assiste ao autor no que se refere à natureza relativamente subjetiva da avaliação fenotípica, quando menos porque, no atual estágio tecnológico, não é possível, nessa seara, estabelecer parâmetros absolutos, objetivamente aferíveis ou numericamente mensuráveis. Logo, no contexto assim desenhado, se alguma margem de subjetividade deve mesmo ser tolerada, ante a falta de critérios objetivos seguros, exsurge, então, mais uma forte razão a sinalizar em desfavor do emprego do especialíssimo rito mandamental para se discutir e definir, no caso concreto, o direito do recorrente em se ver enquadrado como pardo, para o fim de concorrer em vagas nesse segmento reservadas.
Inaplicabilidade do princípio da insignificância por multirreincidência e prisão domiciliar descumprida
Sedimentou-se a orientação jurisprudencial nesta Corte Superior no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. No caso, é imputado ao acusado a subtração de 03 (três) desodorantes, cujo valor agregado, segundo a representante da empresa ofendida, é de R$ 38,00 (trinta e oito reais), tendo sido restituídos à vítima. Contudo, o acórdão, ao reformar a sentença de absolvição sumária, destacou que o réu ostenta multirreincidência específica, encontrando-se, à época dos fatos, no gozo de prisão domiciliar, situação que afastaria a incidência do princípio da insignificância. É certo que há precedentes do Supremo Tribunal Federal em que se afasta a tipicidade material da conduta criminosa quando o furto é praticado para subtrair objeto de valor irrelevante, ainda que o paciente seja reincidente na prática delitiva. Entretanto, a Corte também tem precedentes que apontam a relevância da análise da reincidência delitiva para afastar a tipicidade da conduta, conforme se verifica no julgamento do Habeas Corpus 123.108/MG, da Relatoria do Ministro Roberto Barroso, no qual, o Plenário do STF decidiu, por maioria de votos, que a "aplicação do princípio da insignificância envolve um juízo amplo (conglobante), que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados". Após a análise dos precedentes desta Corte Superior e do STF, é razoável concluir que a reincidência não impede, por si só, que se reconheça a insignificância penal da conduta à luz dos elementos do caso concreto, mas pode ser um dos elementos que justificam a tipicidade material da conduta. Extrai-se do caso que, além de estar em prisão domiciliar no momento em que praticou o furto, no dia 7/9/2016, o recorrente também já foi condenado em 20/12/2013 por furto praticado em 24/1/2013; em 18/6/2014, por furto e resistência praticados em 26/11/2013; em 28/2/2008, por tentativa de furto e uso de documento falso praticados em 22/5/2007, e, por fim, condenado em 7/12/2007 por tentativa de furto praticada em 22/8/2007. O entendimento, portanto, encontra-se em consonância com a orientação jurisprudencial da Terceira Seção desta Corte, no julgamento do EAREsp 221.999/RS, da relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, de que a reiteração criminosa inviabiliza a aplicação do princípio da insignificância, ressalvada a possibilidade de, no caso concreto, as instâncias ordinárias verificarem ser a medida socialmente recomendável, o que não se dá no caso.