Constituição da mora em alienação fiduciária por notificação ao endereço contratual sem comprovação do recebimento
A controvérsia cinge-se a definir se, para a comprovação da mora nos contratos garantidos por alienação fiduciária, é suficiente, ou não, o envio de notificação extrajudicial ao endereço do devedor indicado no instrumento contratual e se é dispensável, por conseguinte, a prova de que a assinatura do Aviso de Recebimento (AR) seja do próprio destinatário. O art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/1969 é expresso ao prever que a mora nos contratos de alienação fiduciária decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com Aviso de Recebimento, não exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário. Consequentemente, uma interpretação literal do dispositivo enseja a conclusão de que, para a constituição do devedor em mora, exige-se tão somente o vencimento do prazo para pagamento, não havendo dúvida sobre isso, porquanto o texto da lei utiliza a expressão "simples vencimento", que, nesse caso, quer literalmente dizer tão somente ou nada mais que o vencimento do prazo para pagamento. Com efeito, ao dispensar a interpelação do devedor para sua constituição em mora, o legislador estabelece regra que a doutrina denomina de dies interpellat pro homine, ou seja, a chegada do dia do vencimento da obrigação corresponde a uma interpelação, de modo que, não pagando a prestação no momento ajustado, encontra-se em mora o devedor. Assim, se a mora decorre do mero inadimplemento, prescinde de qualquer atitude do credor, já que advém automaticamente do atraso. Após dispor que a mora decorre do simples vencimento do prazo, o legislador estabeleceu, ainda, que a mora poderá ser comprovada por "carta registrada com Aviso de Recebimento", dispondo expressamente que não se exige "que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário". Nesse contexto, a literalidade da lei, que escolheu o vocábulo "poderá" em vez de "deverá", e os conceitos jurídicos que ela exprime, por si sós, já são elementos suficientes para dirimir a controvérsia. Verifica-se, portanto, que a lei estabeleceu que a comprovação é mera formalidade, pois primeiro usa o termo "poderá" e, na sequência, dispensa que a assinatura seja do próprio destinatário. Se é a própria lei que torna não exigível a demonstração cabal de ciência do próprio devedor, não pode ser outra a interpretação do Tribunal de origem e, menos ainda, a do STJ, cuja responsabilidade não se limita à análise do caso concreto, mas vincula, de forma transcendental, as relações contratuais à sua decisão. Além dessa interpretação literal do dispositivo, da análise sistemática ressai a conclusão de que pretendeu a lei tão somente estabelecer a forma do processo nas hipóteses em que a garantia do crédito deu-se por alienação fiduciária, na medida em que não se pode ignorar que a cláusula de alienação fiduciária nos contratos caracteriza-se por uma via de mão dupla, ou seja, é uma garantia bilateral, uma vez que a vantagem econômica do contrato é buscada por ambas as partes, não somente pelo credor. Assim, se, na origem, o contrato é um negócio jurídico bilateral, em que se estabelece a alienação fiduciária em garantia e cujo objetivo é a vantagem econômica e o equilíbrio das relações entre as partes, não se pode permitir que, na conclusão desse mesmo negócio, ocorra um desequilíbrio, ou seja, as regras sejam tendenciosas e, portanto, tragam mais ônus ao credor em benefício exclusivo do devedor. Também, uma análise teleológica do dispositivo legal enseja inafastável a conclusão de que a lei, ao assim dispor, pretendeu trazer elementos de estabilidade, equilíbrio, segurança e facilidade para os negócios jurídicos, de modo que é incompatível com o espírito da lei interpretação diversa, que enseja maior ônus ao credor, em benefício exclusivo do devedor fiduciante. Observa-se, ainda, que o entendimento pacífico da Segunda Seção já é no sentido de que, na alienação fiduciária, a mora constitui-se ex re, isto é, decorre automaticamente do vencimento do prazo para pagamento. Ou seja, a mora decorre do simples vencimento do prazo. Naturalmente, tal particularidade significa que o devedor estará em mora quando deixar de efetuar o pagamento no tempo, lugar e forma contratados (arts. 394 e 396 do Código Civil). Então, se o objetivo da lei é meramente formal, deve ser igualmente formal o raciocínio sobre as exigências e, portanto, sobre a própria sistemática da lei, concluindo-se que, para ajuizar a ação de busca e apreensão, basta que o credor comprove o envio de notificação por via postal ao endereço indicado no contrato, não sendo imprescindível seu recebimento pessoal pelo devedor. Por fim, frisa-se que essa conclusão abarca como consectário lógico situações outras igualmente submetidas à apreciação deste Tribunal, tais como quando a notificação enviada ao endereço do devedor retorna com aviso de "ausente", de "mudou-se", de "insuficiência do endereço do devedor" ou de "extravio do aviso de recebimento", reconhecendo-se que cumpre ao credor demonstrar tão somente o comprovante do envio da notificação com Aviso de Recebimento ao endereço do devedor indicado no contrato.
Presunção absoluta de fraude à execução fiscal na alienação pós-inscrição em dívida ativa
No caso, discute-se a ineficácia da alienação sucessiva de imóvel. Conforme assentado no acórdão recorrido, incialmente, no ano de 2007, a executada em execução fiscal ajuizada pela Fazenda de Estado alienou imóvel de sua propriedade ao filho de um dos seus sócios - venda que fora considerada ineficaz em processo judicial transitado em julgado em 2009. Nesse interregno, no ano de 2008, esse mesmo imóvel foi alienado pelo filho do sócio, que o havia adquirido em 2007. Discute-se a presença de boa fé dos adquirentes em relação a essa alienação ocorrida em 2008, considerando que o filho do sócio da empresa executada não figurava no polo passivo da execução fiscal. Nesse sentido, a Primeira Seção desta Corte, ao julgar o REsp. n. 1.141.990/PR, representativo de controvérsia, da relatoria do eminente Ministro Luiz Fux (DJe 19.11.2010), consolidou o entendimento de que não incide a Súmula n. 375/STJ em sede de Execução Fiscal. Naquela oportunidade, ficou assentado que o art. 185 do CTN, seja em sua escrita original ou na redação dada pela LC n. 118/2005, não prevê, como condição de presunção da fraude à execução fiscal, a prova do elemento subjetivo da fraude perpetrada, qual seja, o consilium fraudis. Ao contrário, estabeleceu-se que a constatação da fraude deve se dar objetivamente, sem se indagar da intenção dos partícipes do negócio jurídico. Assim, "considera-se fraudulenta a alienação, mesmo quando há transferências sucessivas do bem, feita após a inscrição do débito em dívida ativa, sendo desnecessário comprovar a má-fé do terceiro adquirente" (AgInt no REsp n. 1.820.873/RS, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 23/5/2023).
Licitude da cobrança de tarifa por medição individualizada de gás
No fornecimento de gás a condomínios residenciais, as empresas distribuidoras de GLP disponibilizam duas formas de contratação, quais sejam, a modalidade medição coletiva e a de fornecimento com leitura individualizada, cabendo a escolha à assembleia condominial de acordo com seus interesses. Na segunda modalidade, adotada na hipótese vertente, há o fornecimento de gás a granel, mas com medição e gestão individualizada do consumo de cada unidade autônoma do condomínio - serviço executado pelo fornecedor do produto, que, em razão disso, cobra um preço previsto no respectivo contrato. Não se mostra abusiva a cobrança de tarifa para medição individualizada quando assegurada a livre escolha dos consumidores na contratação, com liberdade na formação do preço, de acordo com seus custos e em atenção às características da atividade realizada, respeitando-se a equivalência material das prestações e demonstrada a correspondente vantagem do consumidor no caso. Portanto, indiscutivelmente cada uma das modalidades colocadas à disposição gera riscos e custos diversos, tanto para a fornecedora como para os consumidores, cabendo a estes ponderarem quais delas melhor lhes atendem diante dos benefícios proporcionados e os custos por estes gerados. É incontroverso que, na modalidade de contratação por medição individualizada, a distribuidora passa a ter inúmeros contratos em um mesmo condomínio, de modo que as diferentes contratações encerram características específicas para cada caso, justificando a cobrança de uma tarifa para a prestação de um serviço mais eficiente. Portanto, denota-se que a escolha quanto à modalidade de contratação e à distribuidora que irá fornecer o serviço é livre aos condomínios, os quais são previamente informados sobre as características dos serviços prestados e seus custos, notadamente em relação à cobrança da taxa pelo serviço adicional de medição que integra o objeto da contratação por fornecimento com leitura individualizada. Assim, não há uma imposição por parte da distribuidora quanto ao tipo de contratação do serviço, podendo o condomínio exercer sua escolha de forma livre, conforme a percepção do que melhor atenda aos seus interesses e aos dos condôminos, que optaram, por meio de assembleia condominial, pelo serviço proposto. Consoante se depreende do parecer ofertado, a modalidade por medição coletiva gera, na verdade, uma vantagem para a distribuidora e uma desvantagem para o consumidor, visto que o pagamento da integralidade do débito fica a cargo do condomínio, reduzindo as chances de não pagamento, e eventual inadimplemento de algum condômino pode causar o aumento da cota condominial dos demais condôminos adimplentes, assim como gera um custo maior para aqueles condôminos que consomem menor quantidade de GLP, já que serão obrigados a pagar o valor do rateio. Dessarte, o parecer ainda afirma que o exame do valor cobrado dos condôminos para o serviço de medição individual do consumo deve-se realizar em relação às vantagens identificadas na modalidade contratual, que pressupõe esta atividade como meio necessário para determinar certo modo de cobrança do efetivo proveito, assim como desonera o condomínio da responsabilidade pelo rateio entre os condôminos, e de suportar o custo dos inadimplentes. A liberdade de iniciativa econômica consagrada pela ordem constitucional (arts. 1º, IV, e 170 da Constituição Federal) é pautada na livre concorrência, fomentando a competitividade entre os fornecedores em benefício dos consumidores, motivo pelo qual pode haver uma internalização moderada dos custos conforme as características da prestação do serviço. Essa diferenciação será benéfica aos consumidores quando demonstrada a efetiva liberdade de escolha do consumidor quanto às modalidades de serviço com e sem a vantagem específica - com a observância do dever de informação e esclarecimento prévio dos consumidores em relação às opções existentes para sua escolha - e não houver restrições ou barreiras criadas pelo fornecedor com o propósito de desestimular o consumidor a optar pela contratação menos custosa. Diante disso, vê-se que, na hipótese em apreço, o valor da tarifa é proporcional ao serviço prestado; a opção pela medição individualizada foi feita livremente pelo condomínio, sem nenhum constrangimento por parte da fornecedora, estando comprovada a real vantagem para os consumidores, não se tratando da transferência de um custo ordinário do produto ou do seu fornecimento. Isso porque os condôminos pagam exclusivamente pela quantidade de produto efetivamente consumida e evita que o conjunto dos condôminos seja onerado pelos custos da parcela do rateio não paga por eventuais inadimplentes.
Estupro de vulnerável continuado sem número definido com causa de aumento máxima de dois terços
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido e que "nos crimes sexuais envolvendo vulneráveis, é cabível a elevação da pena pela continuidade delitiva no patamar máximo quando restar demonstrado que o acusado praticou o delito por diversas vezes durante determinado período de tempo, não se exigindo a exata quantificação do número de eventos criminosos, sobretudo porque, em casos tais, os abusos são praticados incontáveis e reiteradas vezes, contra vítimas de tenra ou pouca idade" (AgRg no REsp n. 1.717.358/PR, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 29/6/2018). No caso, o Ministério Público argumenta que houve violação do art. 71 do CP e do art. 283 do CPP, pois o Tribunal de origem reconheceu a prática do crime de estupro de vulnerável em continuidade delitiva pelo período de 9 anos e fixou a fração de aumento mínima de 1/6. Entendeu que o aumento da pena pela continuidade delitiva é desproporcional e exacerbado, pois, "das provas carreadas aos autos do processo não restou devidamente delineado o número exato de vezes em que foi a vítima abusada". Já o juiz fundamentou a dosimetria pela aplicação do aumento máximo (2/3) no crime continuado, em virtude das inúmeras vezes que ocorreram os estupros, visto que tais delitos ocorreram em locais variados, como a casa e o escritório do réu, tendo sido este um período tenebroso em que a vítima esteve exposta a ação repugnante e desprezível do agente dos 7 aos 13 anos de idade. Portanto, o Tribunal de origem desrespeitou a regra do art. 71 do CP, devendo ser restabelecida a sentença, pois a dúvida acerca da quantidade de ações não pode levar ao aumento da pena no patamar mínimo, ou inferior ao devido, não sendo razoável nem proporcional. Isso significa que "o julgador está, até mesmo, autorizado a majorar a reprimenda até na fração máxima pela continuidade delitiva nas hipóteses em que ficar inconteste que os abusos faziam parte da rotina familiar" (AgRg no AREsp 1.570.857/PA, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 7/2/2023, DJe de 13/2/2023). Dessa forma, "Nos casos de estupro de vulnerável praticado em continuidade delitiva em que não é possível precisar o número de infrações cometidas, tendo os crimes ocorrido durante longo período de tempo, deve-se aplicar a causa de aumento de pena no patamar máximo de 2/3" (AgRg no HC 609.595/SP, relator Ministro João Otávio Noronha, Quinta Turma, DJe de 30/9/2022).
Preclusão consumativa recursal e inadmissibilidade de novo recurso contra a mesma decisão
A controvérsia visa definir se a interposição do recurso correto antes de decorrido o prazo recursal contra decisão já impugnada anteriormente pela mesma parte, mas por meio de recurso descabido - e que, por isso, não mereceu conhecimento -, teria o condão de suplantar o malferimento ao princípio da unirrecorribilidade. O sistema recursal do ordenamento jurídico pátrio é regido pelo princípio da singularidade (unirrecorribilidade ou unicidade recursal). Por outro lado, a doutrina leciona que há violação ao princípio em voga quando a parte interpõe, sucessiva ou concomitantemente, duas espécies recursais contra a mesma decisão. No âmbito da jurisprudência do STJ, é pacífica a encampação do mencionado princípio, asseverando-se que, havendo a sua violação, pela interposição de dois recursos de natureza diversas contra a mesma decisão e pela mesma parte, ficará caracterizada a preclusão consumativa quanto ao segundo recurso interposto. No caso, o Tribunal de origem consignou que "não há se cogitar de violação ao princípio da unirrecorribilidade, tendo em vista que, conquanto a recorrente tenha anteriormente impugnado a sentença por meio de recurso impróprio (Agravo de Instrumento), que não foi conhecido, o recurso de apelação foi interposto tempestivamente". Todavia, impende destacar que o teor do parágrafo único do art. 932 do CPC/2015 não ampara a interposição de um novo recurso, em substituição ao anterior que se revelou descabido, por inequívoca ocorrência da preclusão consumativa. Os vícios passíveis de saneamento, que se atêm aos aspectos estritamente formais, devem se referir ao mesmo recurso, não possibilitando a interposição de um novo, em substituição ao recurso anterior que tenha se revelado descabido para impugnar a decisão combatida. Nesse contexto, ressai incontestável a inadmissibilidade da apelação interposta no caso. Houve violação ao princípio da unirrecorribilidade pela interposição de agravo de instrumento anterior contra a mesma decisão que extinguiu o cumprimento de sentença, a caracterizar a preclusão consumativa. Portanto, é de se concluir que a antecedente preclusão consumativa proveniente da interposição de um recurso contra determinada decisão enseja a inadmissibilidade do segundo recurso, simultâneo ou subsequente, interposto pela mesma parte e contra o mesmo julgado, haja vista a violação ao princípio da unirrecorribilidade, pouco importando se o recurso posterior seja o adequado para impugnar a decisão e tenha sido interposto antes de decorrido, objetivamente, o prazo recursal.