Inaplicabilidade da continuidade delitiva específica ao estupro com violência presumida
O crime continuado é benefício penal, modalidade de concurso de crimes, que, por ficção legal, consagra unidade incindível entre os crimes que o formam, para fins específicos de aplicação da pena. Para a sua aplicação, o art. 71, caput, do CP, exige, concomitantemente, três requisitos objetivos: pluralidade de condutas, pluralidade de crime da mesma espécie e condições semelhantes de tempo lugar, maneira de execução e outras semelhantes. Quanto à continuidade delitiva específica, descrita no art. 71, parágrafo único, do Código Penal, são acrescidos os seguintes requisitos: sejam dolosos, realizados contra vítimas diferentes e cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. No caso, a instância a quo não aplicou a regra continuidade delitiva específica porque não empregada violência real contra as vítimas. De fato, "A violência de que trata a continuidade delitiva especial (art. 71, parágrafo único, do Código Penal) é real, sendo inviável aplicar limites mais gravosos do benefício penal da continuidade delitiva com base, exclusivamente, na ficção jurídica de violência do legislador utilizada para criar o tipo penal de estupro de vulnerável, se efetivamente a conjunção carnal ou ato libidinoso executado contra vulnerável foi desprovido de qualquer violência real." (PET no REsp 1.659.662/CE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe de 14/5/2021). Nesse sentido, "A jurisprudência desta Corte Superior decidiu que, nas hipóteses de crimes de estupro ou de atentado violento ao pudor praticados com violência presumida, não incide a regra do concurso material nem da continuidade delitiva específica. (REsp 1.602.771/MG, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 27/10/2017).
Plenitude de defesa no Tribunal do Júri e controle judicial da pertinência da prova
A Constituição prescreve a plenitude de defesa como postulado fundamental do Tribunal do Júri, nos termos de seu art. 5º, inciso XXXVIII, alínea a. E não há dúvida de que o direito à prova é instrumento para o exercício adequado daquele princípio. Todavia, o direito à produção de provas não é absoluto. Ao magistrado é conferida discricionariedade para indeferir, em decisão fundamentada, as provas que reputar protelatórias, irrelevantes ou impertinentes. A discricionariedade judicial é balizada pela avaliação dos critérios da objetividade e da pertinência da prova. No caso em análise, nada obstante a prova pretendida ter sido, inicialmente, deferida pelo magistrado de primeiro grau, a renovação da perícia no celular da vítima por meio do software da Cellebrite não denota pertinência e objetividade para o deferimento. A perícia foi devidamente realizada no telefone do acusado. Não parece lógico, portanto, o pedido de exame no celular da vítima para apuração de comunicação com o paciente. Isso porque, necessariamente, qualquer interlocução entre acusado e vítima, mesmo apagada, estaria registrada nos dois aparelhos. Ademais, não há fundamento constitucional ou legal para que se promova investigação inespecífica no celular da vítima, uma vez que não é papel do Estado procurar provas que se supõe que possam existir sem qualquer delimitação, especialmente, envolvendo cooperação com outros Estados da Federação. A prova deve se destinar a um objetivo certo e delimitado, sob pena, inclusive, de violação da garantia constitucional da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, Constituição da República). Logo, não se pode deferir investigação de conversas da vítima com terceiros com base em mera suposição da existência de informações relevantes. Tal provimento constituiria, por certo, providência especulativa, visto que inexistente qualquer outro elemento de prova, ainda que indiciário, que indique sua pertinência. Frise-se que o critério judicial para o deferimento de provas é mecanismo que visa assegurar a tutela dos direitos e garantias individuais daqueles que são submetidos à jurisdição. Assim, o magistrado deve atenção aos limites constitucionais na produção da prova, de modo que tem o dever de evitar provas impertinentes e que se mostrem meramente especulativas.
Dedutibilidade de contribuição extraordinária à previdência complementar na base de cálculo do IRPF
Da dicção dos arts. 19 e 21 da Lei Complementar n. 109/2001, extrai-se que todas as contribuições destinadas à constituição de reservas, sejam elas classificadas como contribuição normal ou extraordinária, têm como objetivo final o pagamento dos benefícios de caráter previdenciário. Assim, é inviável concluir que os valores vertidos pelo participante, em razão da constatação de que as reservas financeiras do fundo estão deficitárias e devem ser recompostas, possam ter função outra se não a garantia de que o benefício acordado será devidamente adimplido. Nesse sentido, os arts. 8º, II, e, da Lei n. 9.250/1995 e 11 da Lei n. 9.532/1999, explicitam regras para dedução das contribuições feitas aos planos de previdência privada da base de cálculo do imposto de renda, as quais são consideradas despesas dedutíveis até o limite de 12% do total dos rendimentos computados da base de incidência do referido tributo. De fato, esses dispositivos não trazem qualquer diferenciação entre as espécies de contribuições pagas pelos participantes ao plano de previdência privada - normais ou extraordinárias. A única exigência legal é de que essas sejam "destinadas a custear benefícios complementares assemelhados aos da Previdência Social", redação bastante similar àquela adotada no caput do art. 19 da Lei Complementar n. 109/2001. Não é demais reiterar que as contribuições pagas pelo participante para custear déficit do plano de previdência privada também servem para garantir o cumprimento do objetivo principal almejado por quem adere ao plano, ou seja, de manter o recebimento dos benefícios acordados, na forma como estipulado à época da inscrição. Assim, as contribuições extraordinárias pagas para equacionar o resultado deficitário nos planos de previdência privada podem ser deduzidas da base de cálculo do imposto de renda, observado o limite de 12% do total dos rendimentos computados na determinação da base de cálculo do imposto devido na declaração de rendimentos.
Quesito do júri além da pronúncia gera nulidade absoluta e afasta a preclusão
No que tange à disciplina das nulidades atinentes à quesitação ofertada aos jurados, as eventuais irregularidades que caracterizam nulidade relativa, ensejam a sua imediata contestação e a prova do prejuízo para a parte a quem aproveita a nulidade. Nesse contexto, segundo a dicção do art. 484 do Código de Processo Penal, após formular os quesitos o juiz-presidente os lerá, indagando às partes se têm qualquer objeção a fazer, o que deverá constar obrigatoriamente em ata. E, nos termos do art. 571, VIII, do diploma mencionado, as nulidades deverão ser arguidas, no caso de julgamento em Plenário, tão logo ocorram. Entretanto, essa não é a hipótese. Isso porque, nas particularidades do caso concreto, a má formulação do quesito de n. 2 deve ser considerada como causa de nulidade absoluta e sua elevada gravidade justifica excepcionar a regra da impugnação imediata, afastando-se a hipótese de preclusão. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no julgamento do recurso em sentido estrito, para a delimitação da imputação da decisão de pronúncia, determinou a exclusão de parte das condutas atribuídas aos réus. A inserção nos quesitos de imputações que não foram admitidas no julgamento do recurso em sentido estrito ofende a um só tempo o princípio da correlação entre pronúncia e sentença e, ainda, a hierarquia do julgamento colegiado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Há entendimento desta Corte Superior de que as nulidades absolutas, notadamente aquelas capazes de causar perplexidade aos jurados e com evidente violação ao princípio da correlação entre pronúncia e sentença, ensejam a superação do óbice da preclusão.
Dedutibilidade do ágio no IRPJ e CSLL em reorganizações societárias
A controvérsia principal dos autos consiste em saber se agiu bem o Fisco ao promover a glosa de despesa de ágio amortizado pela recorrida com fundamento nos arts. 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997, sob o argumento de não ser possível a dedução do ágio decorrente de operações internas (entre sociedades empresárias dependentes) e mediante o emprego de "empresa-veículo". Ágio, segundo a legislação aplicável na época dos fatos narrados na inicial, consistiria na escrituração da diferença (para mais) entre o custo de aquisição do investimento (compra de participação societária) e o valor do patrimônio líquido na época da aquisição (art. 20 do Decreto-Lei n. 1.598/1977). Em regra, apenas quando há a alienação, liquidação, extinção ou baixa do investimento é que o ágio a elas vinculado pode ser deduzido fiscalmente como custo, para fins de apuração de ganho ou perda de capital. A exceção à regra da indedutibilidade do ágio está inserida nos arts. 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997, os quais passaram a admitir a dedução quando a participação societária é extinta em razão de incorporação, fusão ou cisão de sociedades empresárias. A exposição de motivos da Medida Provisória n. 1.602/1997 (convertida na Lei n. 9.532/1997) visou limitar a dedução do ágio às hipóteses em que fossem acarretados efeitos econômico-tributários que o justificassem. O Código Tributário Nacional autoriza que a autoridade administrativa promova o lançamento de ofício quando "se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação" (art. 149, VII) e também contém norma geral antielisiva (art. 116, parágrafo único), a qual poderia, em última análise, até mesmo justificar a requalificação de negócios jurídicos ilícitos/dissimulados, embora prevaleça a orientação de que a "plena eficácia da norma depende de lei ordinária para estabelecer os procedimentos a serem seguidos" (STF, ADI 2446, rel. Min. Carmen Lúcia). Embora seja justificável a preocupação quanto às organizações societárias exclusivamente artificiais, não é dado à Fazenda, alegando buscar extrair o "propósito negocial" das operações, impedir a dedutibilidade, por si só, do ágio nas hipóteses em que o instituto é decorrente da relação entre "partes dependentes" (ágio interno), ou quando o negócio jurídico é materializado via "empresa-veículo"; ou seja, não é cabível presumir, de maneira absoluta, que esses tipos de organizações são desprovidos de fundamento material/econômico. Do ponto de vista lógico-jurídico, as premissas nas quais assentadas o Fisco não resultam automaticamente na conclusão de que o "ágio interno" ou o ágio resultado de operação com o emprego de "empresa-veículo" impediria a dedução do instituto em exame da base de cálculo do lucro real, especialmente porque, até 2014, a legislação era silente nesse sentido. Quando desejou excluir, de plano, o ágio interno, o legislador o fez expressamente (com a inclusão do art. 22 da Lei n. 12.973/2014), a evidenciar que, anteriormente, não havia vedação. Se a preocupação da autoridade administrativa é quanto à existência de relações exclusivamente artificiais (ex: absolutamente simuladas), compete ao Fisco, caso a caso, demonstrar a artificialidade das operações, mas jamais pressupor que a existência de ágio entre partes dependentes ou com o emprego de empresa-veículo já seria por si só, abusiva.