Manutenção da competência da Justiça Estadual em execuções fiscais anteriores à Lei 13.043/2014
A controvérsia consiste em definir se a alteração do art. 109, § 3º, da CF/1988 pela EC 103/2019 implicou a revogação da legislação infraconstitucional que ainda mantinha a competência estadual delegada para processar e julgar as execuções fiscais relativas a entes federais, especialmente do art. 75 da Lei n. 13.043/2014. O art. 15, I, da Lei 5.010/1966 autoriza a propositura da execução fiscal perante o juízo estadual quando não havia vara da Justiça Federal na comarca do domicílio do devedor. No mesmo sentido, a Súmula 40/TFR dispõe que: "A execução fiscal da Fazenda Pública Federal será proposta perante o Juiz de Direito da comarca do domicílio do devedor, desde que não seja ela sede de vara da Justiça Federal". Contudo, o art. 15, I, da Lei 5.010/1966, foi revogado pelo art. 114, IX, da Lei n. 13.043/2014, ou seja, a competência federal delegada foi revogada no âmbito da execução fiscal. No entanto, essa revogação não alcançou as execuções fiscais da União e de suas autarquias e fundações públicas ajuizadas na Justiça Estadual antes da vigência da lei revogadora, em razão da regra de transição prevista no art. 75 da Lei 13.043/2014. Portanto, a competência federal delegada foi suprimida e acompanhada da regra de transição. Nesse cenário, considerando que a edição da Emenda Constitucional n. 103/2019 ocorreu 5 anos após a supressão da hipótese de delegação referente à execução fiscal, fica evidenciado que a intenção do legislador constitucional não era pontual em relação aos processos de execução fiscal. Por conseguinte, o fato de não haver uma regra constitucional transitória - similar ao disposto no art. 75 da Lei 1.043/2014 - não implica a revogação (não recepção) do artigo referido. O simples fato de a EC 103/2019 ter limitado a uma única hipótese a possibilidade de competência federal delegada não demonstra incompatibilidade entre a regra transitória, relativa à execução fiscal, sobretudo porque a respectiva regra era prevista no inciso I do art. 15 da Lei 5.010/1966, cuja revogação ocorreu em 2014. Além disso, o disposto no art. 75 da Lei 13.043/2014 abarca as execuções fiscais da União (e de suas autarquias e fundações públicas) ajuizadas na Justiça Estadual antes da vigência da lei mencionada. Trata-se de execuções fiscais que tramitam há pelo menos nove anos na Justiça Estadual. Levando em consideração tanto o período de tramitação, quanto razões de política judiciária, não se mostra adequada a transferência desses feitos para a Justiça Federal. Assim, fixa-se a seguinte tese: o art. 109, § 3º, da CF/1988, com redação dada pela EC 103/2019, não promoveu a revogação (não recepção) da regra transitória prevista no art. 75 da Lei n. 13.043/2014, razão pela qual devem permanecer na Justiça Estadual as execuções fiscais ajuizadas antes da vigência da lei referida.
Validade de multa administrativa ambiental sem necessidade de advertência prévia
Núcleo principal da proteção ambiental, o art. 225, caput da Constituição da República assegura a todos o "meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". O constituinte de 1988, conforme doutrina, abraçou, como dogmática ambiental, uma "concepção juridicamente autônoma do meio ambiente", é dizer, distanciou-se de modelos anteriores ao admitir, dentre outros aspectos, que: a) o todo e os seus elementos são apreciados e juridicamente valorizados em uma perspectiva relacional ou sistêmica, que vai além da apreensão atomizada e da realidade material individual desses mesmos elementos (ar, água, solo, florestas, etc.); b) a valorização do meio ambiente se faz com fundamentos éticos explícitos e implícitos, uma combinação de argumentos antropocêntricos mitigados (= a solidariedade intergeracional, vazada na preocupação com as gerações futuras), biocêntricos e até ecocêntricos; c) a tutela ambiental deve ser viabilizada por instrumental próprio de implementação, igualmente constitucionalizado, como a ação civil pública, a ação popular, as sanções administrativas e penais e a responsabilidade civil pelo dano ambiental, o que nega aos direitos e às obrigações abstratamente assegurados a má sorte de ficar ao sabor do acaso e da boa vontade do legislador ordinário. Com efeito, o poder de polícia ambiental atua como instrumento de concretização do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, permitindo a adoção de medidas essencialmente preventivas, tais como a advertência e a exigência de licenças e autorizações para o exercício de atividades potencialmente lesivas à biodiversidade, bem como a atuação repressiva, a exemplo da aplicação de multas e interdições. Dito isso, assinale-se que a penalidade de advertência reveste caráter fundamentalmente educativo, sendo pouco empregada, "seja porque tem se mostrado ineficaz para sua função preventiva e pedagógica, uma vez que os infratores geralmente modificam a conduta após a aplicação de penalidades mais gravosas, seja ainda porque falece-lhe o rigor e a robustez que a proteção ambiental exige", nos termo da doutrina. Por outro lado, a pena pecuniária de multa, é penalidade cuja aplicação se condiciona, aprioristicamente, à gravidade da infração verificada, vale dizer, não se sujeita à imposição prévia da sanção mais branda de advertência. Oportuno registrar ainda que a adequada exegese do vocábulo "advertido", constante do transcrito art. 72, § 3º, I, da Lei n. 9.605/1998, nada diz com a pena de advertência por infração ambiental. Por conseguinte, nos casos em que a infração ambiental possa causar graves ou irreversíveis danos ecológicos, não há sentido em conferir-se tal prazo ao infrator, nem a lei assim expressamente determina. Some-se a isso o fato de a aplicação direta da multa nos casos mais graves de degradação incentivar o cumprimento voluntário das leis e regulamentos ambientais, porquanto a punição financeira se mostra mais eficaz para desencorajar a prática de novas ações por potenciais infratores. Nesse cenário, portanto, verifica-se a ausência de fundamento que ampare a pretensão de se exigir, como condição de validade da multa ambiental imposta por ilícito administrativo, a aplicação antecedente da penalidade de advertência. No tocante ao panorama jurisprudencial, consigne-se, de início, que o Supremo Tribunal Federal tem atribuído à presente controvérsia natureza infraconstitucional (cf. ARE n. 1.422.567/PR, Rel. Ministra Rosa Weber, DJe 28/2/2023; ARE n. 1.342.486/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, DJe 20/9/2021; ARE n. 1.007.769/PR, Rel. Ministro Roberto Barroso, DJe 1º/12/2016). Já no âmbito deste Superior Tribunal, a matéria foi julgada colegiadamente, de forma inaugural, em 2015, quando a Primeira Turma assentou a prescindibilidade da imposição prévia da penalidade de advertência como condição para se aplicar a pena de multa por infração ambiental (Primeira Turma, REsp 1.318.051/RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, julgado em 17/3/2015, DJe 12/5/2015). Isso porque, consigna o voto condutor do apontado precedente, "a imposição de penalidade deve observar, primeiramente, a gravidade do fato e, posteriormente, os antecedentes do infrator e a sua situação econômica; esses são os critérios norteadores do tipo de penalidade a ser imposta". Desde então, as Turmas que integram esta Primeira Seção têm entendido uniformemente em tal sentido. Assim, fixa-se a seguinte tese repetitiva: a validade das multas administrativas por infração ambiental, previstas na Lei n. 9.605/1998, independe da prévia aplicação da penalidade de advertência.
Validade do chamamento por edital na demarcação de terrenos de marinha
A controvérsia consiste em decidir acerca da validade, ou não, dos procedimentos demarcatórios de terrenos de marinha nos quais o chamamento de eventuais interessados, com fundamento no art. 11 do Decreto-lei 9.760/1946, tenha ocorrido somente por meio de notificação por edital. Compreendidos no período entre o advento da Lei n. 11.481, de 31/05/2007, e 28/03/2011, data da publicação da ata da sessão de julgamento do STF de 16/03/2011 no DJe (n. 57, p. 46) e no DOU (n. 59, Seção 1, p. 2), quando deferida a medida cautelar na ADI 4.264/PE. O art. 5º da Lei n. 11.481, de 31/05/2007, estatuiu que "para a realização da demarcação, a SPU convidará os interessados, por edital, para que no prazo de 60 (sessenta) dias ofereçam a estudo plantas, documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos compreendidos no trecho demarcando". Antes da Lei n. 11.481/2007, eventuais interessados "certos" - conhecidos pela Administração Pública - tinham o direito subjetivo de serem pessoalmente notificados acerca do início do procedimento demarcatório dos terrenos de marinha situados no município de seu domicílio. A partir da Lei n. 11.481/2007, esse direito foi suprimido, sendo todos os potenciais interessados, certos ou indeterminados, notificados por meio de simples chamamento editalício. A modificação da posição jurídica dos particulares em contato com a Administração Pública redundou na busca pela invalidação da alteração legislativa introduzida pela Lei n. 11.481/2007, o que se deu, em 2009, por meio da propositura de ação direta de inconstitucionalidade pela Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco perante o Supremo Tribunal Federal (ADI 4.264/PE). Nessa ação de controle concentrado de constitucionalidade, requereu-se a concessão de medida cautelar, com fundamento no art. 10 da Lei n. 9.868/1999, a fim de que o STF, liminarmente, promovesse a suspensão da eficácia do art. 11 do DL n. 9.760/46, na redação a ele conferida pelo art. 5º da Lei n. 11.481/2007. O julgamento do pleito cautelar, no Plenário do STF, foi concluído somente em 16/3/2011, oportunidade em que prevaleceu, por apertada maioria, posição favorável ao pleito no sentido de que "Ofende as garantias do contraditório e da ampla defesa o convite aos interessados, por meio de edital, para subsidiar a Administração na demarcação da posição das linhas do preamar médio do ano de 1831, uma vez que o cumprimento do devido processo legal pressupõe a intimação pessoal" (STF, Pleno, ADI 4.264/PE-MC, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, julgado 16/3/2011, DJe 28/3/2011). Nesse sentido, há validade do ato de chamamento, no período em exame e da forma como realizado, que decorre da incidência na espécie do art. 11, § 1º-A, da Lei n. 9.868/1999, que estabelece, como regra, a eficácia meramente prospectiva ("ex nunc") da medida cautelar concedida pelo Supremo Tribunal Federal em ação direta de inconstitucionalidade. Dessa forma, ainda que o STF tenha deferido a medida cautelar no bojo da ADI 4.264/PE para o fim de suspender a eficácia da nova redação conferida ao art. 11 do DL n. 9.760/1946 pelo art. 5º da Lei n. 11.481/2007, essa suspensão não afetou os atos jurídicos realizados antes do deferimento da liminar, os quais, portanto, por ela não foram invalidados. Por fim, com a extinção da ADI 4.264/PE por "perda superveniente do objeto" nos idos de 2018, deixou de existir, no mundo jurídico, a medida cautelar antes deferida, não tendo havido, portanto, pronunciamento definitivo pelo STF quanto à constitucionalidade do art. 5º da Lei n. 11.481/2007. Deve prevalecer, assim, ao menos no período anterior ao da suspensão da eficácia da norma impugnada, a presunção de constitucionalidade inerente a toda e qualquer lei ou ato normativo. Assim, fixa-se a seguinte tese: nos procedimentos de demarcação de terrenos de marinha, é válido o ato jurídico de chamamento de interessados certos ou incertos à participação colaborativa com a Administração formalizado exclusivamente por meio de edital, desde que o ato tenha sido praticado no período de 31/05/2007 até 28/03/2011, em que produziu efeitos jurídicos a alteração legislativa do art. 11 do Decreto-lei n. 9.760/1946 promovida pelo art. 5º da Lei n. 11.481/2007.
Responsabilidade propter rem por obrigações ambientais do proprietário ou possuidor atuais e anteriores
A controvérsia submetida ao rito dos recursos especiais repetitivos, restou assim delimitada: "As obrigações ambientais possuem natureza propter rem , sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores ou, ainda, dos sucessores, à escolha do credor". A matéria afetada encontra-se atualmente consubstanciada na Súmula n. 623/STJ, publicada no DJe de 17/12/2018: "As obrigações ambientais possuem natureza propter rem , sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor". Segundo essa orientação, o atual titular que se mantém inerte em face de degradação ambiental, ainda que pré-existente, comete ato ilícito, pois a preservação das áreas de preservação permanente e da reserva legal constituem "imposições genéricas, decorrentes diretamente da lei. São, por esse enfoque, pressupostos intrínsecos ou limites internos do direito de propriedade e posse (...) quem se beneficia da degradação ambiental alheia, a agrava ou lhe dá continuidade não é menos degradador" (REsp 948.921/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 11/11/2009). Atualmente, o art. 2º, § 2º, da Lei n. 12.651/2012 expressamente atribui caráter ambulatorial à obrigação ambiental, ao dispor que "as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural". Tal norma, somada ao art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981 que estabelece a responsabilidade ambiental objetiva, alicerça o entendimento de que "a responsabilidade pela recomposição ambiental é objetiva e propter rem , atingindo o proprietário do bem, independentemente de ter sido ele o causador do dano" (AgInt no REsp 1.856.089/MG, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 25/6/2020). De outro lado, o anterior titular de direito real, que causou o dano, também se sujeita à obrigação ambiental, porque ela, além de ensejar responsabilidade civil, ostenta a marca da solidariedade, à luz dos arts. 3º, IV, e 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981, permitindo ao demandante, à sua escolha, dirigir sua pretensão contra o antigo proprietário ou possuidor, contra os atuais ou contra ambos. Assim, de acordo com a mais atual jurisprudência do STJ, "a responsabilidade civil por danos ambientais é propter rem , além de objetiva e solidária entre todos os causadores diretos e indiretos do dano" (AgInt no AREsp 2.115.021/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 16/3/2023). Situação que merece exame particularizado é a do anterior titular que não deu causa a dano ambiental ou a irregularidade. A hipótese pode ocorrer de duas formas. A primeira acontece quando o dano é posterior à cessação do domínio ou da posse do alienante, situação em que ele, em regra, não pode ser responsabilizado, a não ser que, e.g., tenha ele, mesmo já sem a posse ou a propriedade, retornado à área, a qualquer outro título, para degradá-la, hipótese em que responderá, como qualquer agente que realiza atividade causadora de degradação ambiental, com fundamento no art. 3º, IV, da Lei n. 6.938/1981, que prevê, como poluidor, o "responsável direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental". Isso porque a obrigação do anterior titular baseia-se no aludido art. 3º, IV, da Lei n. 6.938/1981, que torna solidariamente responsável aquele que, de alguma forma, realiza "atividade causadora de degradação ambiental", e, consoante a jurisprudência, embora a responsabilidade civil ambiental seja objetiva, "há de se constatar o nexo causal entre a ação ou omissão e o dano causado, para configurar a responsabilidade" (AgRg no REsp 1.286.142/SC, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 28/2/2013). A segunda situação a ser examinada é a do anterior titular que conviveu com dano ambiental pré-existente, ainda que a ele não tenha dado causa, alienando o bem no estado em que o recebera. Nessa hipótese, não há como deixar de reconhecer a prática de omissão ilícita, na linha da jurisprudência do STJ, que por imperativo ético e jurídico não admite que aquele que deixou de reparar o ilícito, e eventualmente dele se beneficiou, fique isento de responsabilidade. Nessa direção: "Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem" (REsp 650.728/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 2/12/2009). Em suma, o anterior titular não estará obrigado a reparar dano ambiental superveniente à cessação de sua propriedade ou posse, exceto se tiver concorrido para sua causação. Assim, fixa-se a seguinte tese: as obrigações ambientais possuem natureza propter rem , sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente.
Aplicação do princípio da insignificância ao crime de contrabando de cigarros
A conduta de introduzir cladestinamente cigarro pela fronteira consubstancia indubitavelmente crime de contrabando, seja em se tratando de cigarro produzido no Brasil para a exportação (produto que goza de imunidade tributária - art. 153, § 3º, III, da CF) - cuja importação é expressamente vedada (art. 18 do Decreto-Lei n. 1.593/1977) -, seja em se tratando de cigarro produzido fora do Brasil - esse último não só em razão da existência de norma restringindo o ingresso desse produto no país, mas sobretudo considerando o fato de que o Brasil é signatário, no âmbito da Organização Mundial de Saúde, da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (promulgada pelo Decreto n. 5.658/2006), na qual, em seu art. 15, determina a repressão a comércio ilícito de produtos de tabaco, inclusive o contrabando. Logo, não se divisa nenhuma possibilidade de aplicar a esse crime a mesma disciplina estabelecida para o descaminho e demais crimes tributários federais. Por outro lado, no tocante à aplicação do princípio da insignificância, a revisitação do tema, propicia algumas reflexões. Não se discorda das ponderações do Ministro Relator, no sentido de que esse tipo de conduta, em regra, não comporta a aplicação do princípio da insignificância, ante os bens jurídicos tutelados envolvidos, notadamente a saúde pública. Acrescenta-se, nesse particular, que a preocupação com a saúde pública, em se tratando de crimes desse jaez, não consubstancia uma ilação vazia, destituída de base científica, pois, ainda que o fumo, em sentido geral, seja uma prática maléfica à saúde, há estudo comprovando que os cigarros contrabandeados, em geral, ostentam uma carga de substâncias nocivas superior àqueles vendidos regularmente no Brasil, além do que apresentam algum tipo de contaminante dos tipos fungos, fragmentos de insetos, gramíneas ou ácaros acima do indicado como boas práticas de higiene pela ANVISA (SILVA, Cleber Pinto da. Caracterização e Avaliação da Qualidade dos Cigarros Contrabandeados no Brasil. 2015. 123 f. Dissertação (Mestrado em Química) - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2015). Por outro lado, a posição adotada pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, no sentido da aplicação do princípio da insignificância para a hipótese de contrabando de cigarros em quantidade que não ultrapassa 1.000 (mil) maços, não só é razoável do ponto de vista jurídico como ostenta uma base estatística sólida para sua adoção. Ora, do que se colhe dos dados estatísticos apresentados em sede de memoriais pelo Mistério Público Federal, em especial aquele relativos ao ano de 2022, verifica-se que as apreensões de cigarros até 1.000 maços, embora correspondam a maioria das autuações (cerca de 3.395), são insignificantes considerando o volume total de maços apreendidos. Com efeito, obstar a aplicação do princípio da insignificância em tais casos (apreensão até mil maços), é uma medida ineficaz para fins de proteção dos bens jurídicos que se almeja tutelar, em especial a saúde pública, além do que não é razoável do ponto de vista de política criminal e de gestão de recursos dos entes estatais encarregados da persecução penal, pois sobrecarrega a Justiça Federal e demais órgãos de persecução (Ministério Público Federal e Polícia Federal), sobretudo na região de fronteira, com inúmeros inquéritos policiais e outros feitos criminais derivados de apreensões inexpressivas, drenando o tempo e os recursos indispensáveis para reprimir e punir o crime de vulto. Em suma, entende-se por acolher a proposição da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, de modo a admitir a aplicação do princípio da insignificância para os casos de contrabando de cigarros de quantidade inferior a 1.000 (mil) maços, excetuada a hipótese de reiteração, circunstância que, caso verificada, é apta a afastar a atipicidade material, ante a maior reprovabilidade da conduta e periculosidade social da ação. Ressalta-se, no entanto, que é de rigor a modulação dos efeitos do julgado, de modo que a tese deve ser aplicada apenas aos feitos ainda em curso na data em que encerrado o presente julgamento, sendo inaplicáveis aos processos transitados em julgado, notadamente considerando os fundamentos que justificaram a alteração jurisprudencial no caso e a impossibilidade de rescisão de coisa julgada calcada em mera modificação de orientação jurisprudencial (AgRg no HC 821.959/SP, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe de 21/8/2023). Assim, fixa-se a seguinte tese: o princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão a o contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação.