Impenhorabilidade até 40 salários na penhora de poupança e investimentos inclusive valores do FGTS
O § 2º do art. 2º da Lei n. 8.036/1990 dispõe que "As contas vinculadas em nome dos trabalhadores são absolutamente impenhoráveis." No caso, a instância de origem afastou a impenhorabilidade absoluta ao fundamento de que o saldo da conta vinculada do FGTS fora transferido para conta de aplicação financeira. Nesse sentido, a jurisprudência desta Corte já decidiu que "A ocorrência de transferência dos créditos para conta particular do trabalhador desautoriza a aplicação do art. 2º, § 2º, da Lei n. 8.036/1990." (REsp 867.062/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 5/9/2008). Embora o saldo das contas vinculadas pertença aos seus titulares, os recursos do FGTS não têm como única finalidade indenizar o trabalhador. Dessa forma, é razoável o raciocínio de que, enquanto não havida hipótese de saque, a impenhorabilidade absoluta de que trata o § 2ª do art. 2º da Lei n. 8.036/1990 tem por escopo assegurar a aplicação dos recursos do FGTS nos termos do § 2º do art. 9º da mesma lei, ou seja, em prol da coletividade. Contudo, tendo havido saque e transferência do saldo da conta vinculada, passa a incidir, no regramento sobre impenhorabilidade do saldo na outra conta (conta-investimento), o quanto disposto no inciso X do art. 833 do CPC, o que afasta a regra da impenhorabilidade com base na Lei n. 8.036/1990. O entendimento desta Corte é pela incidência da referida norma processual mesmo a contas de aplicação financeira. Nessa linha, "A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido da impenhorabilidade de valor até 40 salários mínimos poupados ou mantidos pelo devedor em conta corrente ou em outras aplicações financeiras, ressalvada a comprovação de má-fé, abuso de direito ou fraude, o que não foi demonstrado nos autos (AgInt nos EDcl no REsp 2.011.412/PR, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe de 5/5/2023). Por fim, registre-se que a jurisprudência do STJ já admitia a penhora de verba salarial para quitação de qualquer dívida (ou seja, não somente de execução de alimentos) do montante acima de 50 (cinquenta) salários mínimos recebidos pelo executado. O entendimento evoluiu para, em avaliação a ser feita no caso concreto, afastar até mesmo esse limite (EREsp 1.874.222/DF, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, por maioria, julgado em 19/4/2023).
Inexistência de responsabilidade solidária da vendedora por cancelamento de voo pela companhia aérea
Cinge-se a controvérsia a saber se a sociedade empresarial que apenas vendeu as passagens aéreas tem responsabilidade pelo cancelamento do voo. Inicialmente, constata-se que na ocorrência da compra de passagem, não houve nenhum defeito na prestação do serviço contratado junto à sociedade empresária, pois as passagens aéreas foram devidamente emitidas, não lhe incumbindo a responsabilidade pelo efetivo cumprimento do contrato de transporte aéreo com a companhia. Com efeito, os fatos demonstram a incidência da exclusão de responsabilidade do fornecedor, prevista no art. 14, § 3º, incisos I e II, do Código de Defesa do Consumidor, pois, de um lado, não existe defeito em relação à prestação do serviço que incumbia à empresa que intermediou a venda da passagem (emissão dos bilhetes aéreos), e, de outro, houve culpa exclusiva de terceiro, companhia aérea, no tocante ao cancelamento do voo contratado. Conquanto as normas do Estatuto Consumerista (CDC) tenham como finalidade a busca pelo equilíbrio nas relações de consumo, trazendo princípios e regras próprias para proteger o consumidor de eventuais prejuízos na aquisição de produtos e serviços, dentre as quais está a responsabilidade solidária, a sua aplicação não pode ultrapassar os limites da razoabilidade, tanto que o próprio diploma consumerista traz hipóteses de exclusão da responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços.
Legitimidade do Ministério Público para requerer medidas protetivas em ACP por violência contra a mulher
A controvérsia refere-se à legitimidade, ou não, do Ministério Público para requerer, em ação civil pública, medida protetiva de urgência em favor de mulher vítima de violência doméstica. O art. 25 da Lei n. 11.343/2006 determina que o Ministério Público é legítimo para atuar nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher. A Primeira Seção desta Corte Superior, em recurso repetitivo, firmou a tese de que o Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se trata de direitos individuais indisponíveis. Segundo este Tribunal, o limite para a legitimidade da atuação judicial do Ministério Público vincula-se à disponibilidade, ou não, dos direitos individuais vindicados, isto é, tratando-se de direitos individuais disponíveis, e não havendo uma lei específica autorizando, de forma excepcional, a atuação dessa instituição permanente, não se pode falar em legitimidade de sua atuação. Contudo, se se tratar de direitos ou interesses indisponíveis, a legitimidade ministerial decorre do art. 1º da Lei n. 8.625/1993. Outrossim, esta Corte entende que é viável a ação civil pública não apenas para tutelar conflitos de massa (direitos transindividuais), mas também se revela como o meio pertinente à tutela de direitos e interesses indisponíveis e/ou que detenham suficiente repercussão social, aproveitando, em maior ou menor medida, toda a coletividade. A medida protetiva de urgência requerida para resguardar interesse individual de mulher vítima de violência doméstica tem natureza indisponível, e, pela razoabilidade, não se pode entender pela disponibilidade do direito, haja vista que a Lei 11.340/2006 surgiu no ordenamento jurídico brasileiro como um dos instrumentos que resguardam os tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é parte, e assumiu o compromisso de resguardar a dignidade humana da mulher, dentre eles, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. A Lei Maria da Penha foi criada como mecanismo para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8° do art. 226 da Constituição da República, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Portanto, conclui-se que, no âmbito do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, por se tratar de direito individual indisponível, o MP possui legitimidade para atuar tanto na esfera jurídica penal, quanto na cível, nos termos do art. 1º da Lei n. 8.625/1993 e art. 25 da Lei n. 11.340/2006.
Inclusão de despesas com AAIs na base de cálculo do PIS e Cofins
Inaplicável, no caso, o disposto na alínea a do inciso I do § 6º do art. 3º da Lei n. 9.718/1998, que permite a exclusão das despesas incorridas com a intermediação financeira da base de cálculo da contribuição para o PIS e da COFINS exigido das pessoas jurídicas submetidas ao regime cumulativo. O agente autônomo de investimento (atualmente chamados de assessores de investimento, nos termos da Resolução n. 179, de 14 de fevereiro de 2023, da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, e dos arts. 15, III, e 16, III e parágrafo único, ambos da Lei n. 6.385/1976, conforme a redação conferida pela Lei n. 14.317, de 2022) não realiza propriamente a atividade de intermediação financeira, a despeito da sua relevância decorrente da facilitação para a formação de negócios e para a diminuição de assimetrias informacionais. Os agentes autônomos de investimento (ou os assessores de investimento), conforme se extrai do art. 1º da Instrução n. 497, de 3 de junho de 2011, e repetido nos incisos do art. 3º da Resolução n. 179, de 2023, realizam (1) a prospecção e a captação de clientes; (2) a recepção e o registro de ordens e transmissão dessas ordens para os sistemas de negociação ou de registro cabíveis; e (3) a prestação de informações sobre produtos oferecidos e sobre os serviços prestados pelos intermediários em nome dos quais atue. Porém, a intermediação financeira pressupõe (1) a captação de recursos de terceiros; (2) o objetivo de lucro, advindo do resultado da diferença entre os custos dessa captação e da remuneração decorrente da distribuição do valor mobiliário; e (3) a habitualidade na conduta e atuação profissional. Dessa forma, o fato de fazer parte do sistema de distribuição de valores mobiliários e de exercer as atividades de mediação de valores mobiliários em bolsas de valores ou no mercado de balcão mediante credenciamento e registro na CVM, por si só, não justificam a ampliação do conceito de intermediação financeira a qual pressupõe, frise-se, a captação de recursos do público no mercado de capitais e equipará-lo ao conceito geral de intermediação, referente às várias formas de aproximação de partes interessadas para a realização de negócios jurídicos, como é o caso dos agentes autônomos de investimento (ou assessores de investimento), sob pena de violação do art. 111, II, do CTN. Conforme a Resolução CVM n. 35, de 26 de maio de 2021, a intermediação de operações no mercado de capitais é privativa dos intermediários definidos como a instituição habilitada a atuar como integrante do sistema de distribuição, por conta própria e de terceiros, na negociação de valores mobiliários em mercados regulamentados de valores mobiliários. Por outro lado, os assessores de investimento são entendidos como pessoas vinculadas, as quais, nos termos do art. 3º, I, da Instrução n. 497, de 2011, e do art. 4º e 25, IV, ambos da Resolução n. 179, de 2023, devem manter contratos com os intermediários para realizar operações na condição de preposto dos intermediários. Por conseguinte, os assessores de investimento não realizam propriamente a intermediação financeira no mercado de capitais, isto é, os assessores de investimento não realizam a atividade-fim dos intermediários, mas apenas as atividades mencionadas no art. 1º da Instrução n. 497, de 2011, e nos incisos do art. 3º da Resolução n. 179, de 2023. Vê-se, portanto, a inexistência de violação dos arts. 17 e 18 da Lei n. 4.595/1964, e do art. 15, III, da Lei n. 6.385/1976, porquanto a realidade normativa dos assessores de investimento não é a de um intermediário financeiro (no sentido amplo), mas é a de um facilitador das negociações no mercado de capitais (pessoa vinculada). Não por outro motivo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica ao afirmar que é devida a inclusão das despesas com a contratação de agentes autônomos de investimento na base de cálculo do PIS/Cofins, tendo em vista que os serviços prestados pelos referidos profissionais não se enquadram no conceito de intermediação financeira" (STJ, Segunda Turma, Ministro Herman Benjamin, REsp 1.872.529/SP, 6/10/2020, DJe 14/4/2021.).
Aplicação da agravante do artigo 298 inciso I do CTB aos crimes culposos de trânsito
O Tribunal de origem aplicou a agravante do art. 298, inciso I, do Código de Trânsito Brasileiro em razão do dano no veículo da vítima e, ainda, ao potencial dano para as pessoas que passavam pelo local. De fato, a doutrina e a jurisprudência majoritárias somente admitem a incidência das agravantes previstas no inciso II do artigo 61 do Código Penal aos crimes dolosos, por absoluta incompatibilidade com o delito culposo, cujo resultado é involuntário. Contudo, verifica-se, em relação a agravante do art. 298, I, do CTB ("dano potencial para duas ou mais pessoas ou com grande risco de grave dano patrimonial a terceiros"), que a norma visou proteger do autor do homicídio culposo, além da vítima, as demais pessoas que forem colocadas em risco, bem como o patrimônio de terceiros. Não há, pois, nenhuma incompatibilidade entre a referida agravante e as figuras típicas culposas, que também têm o potencial de colocar em risco outras pessoas além da vítima.