Liberdade do testador para instituir curadoria especial da filha incapaz beneficiária de bens
A controvérsia reside na validade de cláusula testamentária, em que prevista a instituição de filha maior como curadora especial de sua irmã co-herdeira incapaz relativamente aos bens integrantes da parcela disponível da herança instituída pela genitora comum conforme o parágrafo 2º do artigo 1.733 do Código Civil, o qual permite que quem institui um menor herdeiro ou legatário nomeie um curador especial para os bens deixados, mesmo que o beneficiário esteja sob poder familiar ou tutela. Na origem, as instâncias ordinárias declararam ineficaz a disposição testamentária em que a autora da herança nomeara a sua filha maior como curadora especial, sob o fundamento principal de que a faculdade prevista no artigo 1.733, parágrafo 2º, do Código Civil não se aplica aos casos em que os herdeiros necessários também são os únicos beneficiários da parte disponível, pois, assim, não haveria justa causa e operabilidade na restrição imposta. Assim delimitado o contexto, o testamento consubstancia expressão da autonomia privada, inclusive em termos de planejamento sucessório - ainda que limitada pelas regras afetas à sucessão legítima -, e tem por escopo justamente a preservação da vontade daquele que, em vida, concebeu o modo de disposição de seu patrimônio para momento posterior à sua morte, o que inclui a própria administração/gestão dos bens deixados. A instituição de curador para o patrimônio não exclui ou obsta o exercício do poder familiar pelo genitor sobrevivente ou a tutela, porquanto compete àquele tão-somente gerir os bens deixados sob a referida condição, em estrita observância à vontade do autor da herança, sem descurar dos interesses da criança ou adolescente beneficiário. A circunstância de a descendente, ainda criança, manter a posição de herdeira legítima e testamentária, simultaneamente, não conduz ao afastamento da disposição relacionada à instituição de curadora especial para administrar os bens integrantes da parcela disponível da testadora, expressamente prevista em lei, sem que haja qualquer necessidade de aferir a inidoneidade do detentor do poder familiar ou tutor.
Prevalência da defesa técnica sobre a vontade do acusado na interposição de recursos
A controvérsia consiste em definir se o prazo para interposição de agravo em recurso especial, que já transcorreu in albis, deve ser reaberto mesmo que o assistido tenha solicitado requerimento para defensoria pública apresentar agravo em recurso especial. De início, destaca-se que a não interposição de recursos extraordinários (ou os respectivos agravos) pela defesa técnica sequer evidencia desídia, pois, com lastro no princípio da voluntariedade dos recursos, previsto no art. 574, caput, do Código de Processo Penal, a ela cabe a análise da conveniência e oportunidade a respeito de eventual interposição dos recursos extraordinários. Segundo o STF: "Não há ilegalidade evidente ou teratologia a justificar a excepcionalíssima concessão de habeas corpus de ofício na hipótese de mera ausência de interposição de recursos excepcionais, ante o princípio da voluntariedade dos recursos". Precedentes: HC 105.308, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 16/10/2014; HC 110.592, Rel. Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 22/6/2012. No âmbito desta Corte Superior, o entendimento é no sentido de que "ante o princípio da voluntariedade recursal, cabe à defesa analisar a conveniência e oportunidade na interposição dos recursos, não havendo falar em deficiência de defesa técnica pela ausência de interposição de insurgência contra a decisão que inadmitiu os recursos extraordinários anteriormente interpostos" (HC 174.724/AC, Rel. Ministra Marilza Maynard - Desembargadora Convocada do TJ/SE -, Sexta Turma, julgado em 13/5/2014, DJe 23/5/2014). Ademais, "o conflito de vontades entre o acusado e o defensor, quanto à interposição de recurso, resolve-se, de modo geral, em favor da defesa técnica, seja porque tem melhores condições de decidir da conveniência ou não de sua apresentação, seja como forma mais apropriada de garantir o exercício da ampla defesa" (RE 188.703/SC, Rel. Ministro Francisco Rezek, Segunda Turma, julgado em 4/8/1995, DJ 13/10/1995).
Responsabilidade objetiva bancária por golpes de engenharia social decorrentes de fortuito interno
Nos termos do art. 14, § 1°, do CDC (Código de Defesa do Consumidor), o serviço é considerado defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração circunstâncias relevantes, como o modo de seu fornecimento, o resultado e os riscos que razoavelmente dele se conjecturam, e a época em que foi fornecido. A prestação do serviço de qualidade pelos fornecedores abrange o dever de segurança, que, por sua vez, engloba tanto a integridade psicofísica do consumidor, quanto sua integridade patrimonial. Consabidamente, o CDC é aplicável às instituições financeiras (Súmula 297/STJ), as quais devem prestar serviços de qualidade no mercado de consumo. No entendimento do Tema Repetitivo n. 466/STJ, que contribuiu para a edição da Súmula n. 479/STJ, as instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados por terceiros, como, por exemplo, abertura de conta corrente ou recebimento de empréstimos mediante fraude ou utilização de documentos falsos, porquanto tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento, caracterizando-se como fortuito interno (REsp n. 1.197.929/PR, Segunda Seção, julgado em 24/8/2011, DJe 12/9/2011). Especificamente nos casos de golpes de engenharia social, não se pode olvidar que os criminosos são conhecedores de dados pessoais das vítimas, valendo-se dessas informações para convencê-las, por meio de técnicas psicológicas de persuasão - como a semelhança com o atendimento bancário verdadeiro -, a fim de atingir seu objetivo ilícito. Todavia, para sustentar o nexo causal entre a atuação dos estelionatários e o vazamento de dados pessoais pelo responsável por seu tratamento é imprescindível perquirir, com exatidão, quais dados estavam em poder dos criminosos, a fim de examinar a origem de eventual vazamento e, consequentemente, a responsabilidade dos agentes respectivos. Assim, para se imputar a responsabilidade às instituições financeiras, no que tange ao vazamento de dados pessoais que culminaram na facilitação de estelionato, deve-se garantir que a origem do indevido tratamento seja o sistema bancário. Os nexos de causalidade e imputação, portanto, dependem da hipótese concretamente analisada. Isso porque os dados sobre operações financeiras são, em regra, presumivelmente de tratamento exclusivo pelas instituições financeiras. Portanto, dados pessoais vinculados a operações e serviços bancários são sigilosos e cujo tratamento com segurança é dever das instituições financeiras. Desse modo, seu armazenamento de maneira inadequada, a possibilitar que terceiros tenham conhecimento dessas informações e causem prejuízos ao consumidor, configura falha na prestação do serviço (art. 14 do CDC e 43 da LGPD).
Legalidade da coparticipação do plano de saúde em Pediasuit ambulatorial com previsão contratual
A coparticipação, segundo o art. 16, VIII, da Lei n. 9.656/1998, deve estar prevista no contrato. No caso, o Tribunal de origem registrou que as partes possuem contrato empresarial na modalidade coparticipação e que o contrato prevê a cobrança de coparticipação somente para os procedimentos de consulta, exames de rotina, exames especializados, atendimento ambulatorial e internação. Diante disso, passou-se a discutir se o tratamento com o protocolo Pediasuit se enquadra na hipótese de atendimento ambulatorial, a autorizar a cobrança da coparticipação prevista no contrato. O protocolo Pediasuit, é, em geral, aplicado em sessões conduzidas por fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e/ou fonoaudiólogos, dentro das respectivas áreas de atuação, sem a necessidade de internação ou mesmo da utilização de estrutura hospitalar, enquadrando-se, a despeito de sua complexidade, no conceito de atendimento ambulatorial, para os fins de direito. Assim, o tratamento com o protocolo Pediasuit pode ser objeto de cláusula contratual de coparticipação. O fato de o procedimento específico não estar incluído no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) não impede a cobrança da coparticipação correspondente estabelecida em contrato. A uma, porque essa contraprestação está vinculada à prévia cobertura pela operadora; a duas, porque o rol não é estático, mas está em constante e permanente atualização. É dizer, se a operadora atende à necessidade do beneficiário ao custear o procedimento ou evento, ainda que não listado no rol da ANS, opera-se o fato gerador da obrigação de pagar a coparticipação, desde que, evidentemente, haja clara previsão contratual sobre a existência do fator moderador e sobre as condições para sua utilização, e que, concretamente, sua incidência não revele uma prática abusiva. E para que a coparticipação não caracterize o financiamento integral do procedimento por parte do usuário ou se torne fator restritor severo de acesso aos serviços, é possível aplicar, por analogia, o disposto no art. 19, II, "b", da RN-ANS 465/2022, para limitar a cobrança "ao máximo de cinquenta por cento do valor contratado entre a operadora de planos privados de assistência à saúde e o respectivo prestador de serviços de saúde". (AgInt no REsp 1.870.789/SP, Terceira Turma, julgado em 18/5/2021, DJe 24/5/2021). No que tange à exposição financeira do titular, mês a mês, é razoável fixar como parâmetro, para a cobrança da coparticipação, o valor equivalente à mensalidade paga, de modo que o desembolso mensal realizado por força do mecanismo financeiro de regulação não seja maior que o da contraprestação paga pelo beneficiário. Assim, quando a coparticipação devida for superior ao valor de uma mensalidade, o excedente deverá ser dividido em parcelas mensais, cujo valor máximo se limita ao daquela contraprestação, até que se atinja o valor total.
Delimitação do poder de polícia das guardas municipais e poder policial residual
O fato de as guardas municipais não haverem sido incluídas nos incisos do art. 144, caput, da Constituição Federal não afasta a constatação de que elas exercem atividade de segurança pública e integram o Sistema Único de Segurança Pública. Isso, todavia, não significa que possam ter a mesma amplitude de atuação das polícias. Bombeiros militares, por exemplo, integram o rol de órgãos de segurança pública previsto nos incisos do art. 144, caput, da Constituição, mas nem por isso se cogita que possam realizar atividades alheias às suas atribuições, como fazer patrulhamento ostensivo e revistar pessoas em via pública à procura de drogas. O Supremo Tribunal Federal, apesar de reconhecer em diversos julgados que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública e exercem atividade dessa natureza, nunca as equiparou por completo aos órgãos policiais para todos os fins. Não se pode confundir "poder de polícia" com "poder das polícias" ou "poder policial". "Poder de polícia" é conceito de direito administrativo previsto no art. 78 do Código Tributário Nacional e explicado pela doutrina como "atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público". Já o "poder das polícias" ou "poder policial", típico dos órgãos policiais, é marcado pela possibilidade de uso direto da força física para fazer valer a autoridade estatal, o que não se verifica nas demais formas de manifestação do poder de polícia, que somente são legitimadas a se valer de mecanismos indiretos de coerção, tais como multas e restrições administrativas de direitos. Um agente de vigilância sanitária, por exemplo, quando aplica multa e autua um restaurante por descumprimento a normas de higiene, o faz em exercício de seu poder de polícia, mas nem de longe se pode compará-lo com um agente policial que usa a força física para submeter alguém a uma revista pessoal. Dessa forma, o "poder das polícias" ou "poder policial" diz respeito a um específico aspecto do poder de polícia relacionado à repressão de crimes em geral pelos entes policiais, de modo que todo órgão policial exerce poder de polícia, mas nem todo poder de polícia é necessariamente exercido por um órgão policial. Conquanto não sejam órgãos policiais propriamente ditos, as guardas municipais exercem poder de polícia e também algum poder policial residual e excepcional dentro dos limites de suas atribuições. A busca pessoal - medida coercitiva invasiva e direta - é exemplo desse poder, razão pela qual só pode ser realizada dentro do escopo de atuação da guarda municipal. Ao dispor, no art. 301 do CPP, que "qualquer do povo poderá [...] prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito", o legislador, tendo em conta o princípio da autodefesa da sociedade e a impossibilidade de que o Estado seja onipresente, contemplou apenas os flagrantes visíveis de plano, como, por exemplo, a situação de alguém que, no transporte público, flagra um indivíduo subtraindo sorrateiramente a carteira do bolso da calça de outrem e o detém. Distinta, no entanto, é a hipótese em que a situação de flagrante só é evidenciada depois de realizar atividades invasivas de polícia ostensiva ou investigativa, como a busca pessoal ou domiciliar, uma vez que não é qualquer do povo que pode investigar, interrogar, abordar ou revistar seus semelhantes. A adequada interpretação do art. 244 do Código de Processo Penal é a de que a fundada suspeita de posse de corpo de delito é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para autorizar a realização de busca pessoal, porque não é a qualquer cidadão que é dada a possibilidade de avaliar a presença dele. Em outras palavras, mesmo se houver elementos concretos indicativos de fundada suspeita da posse de corpo de delito, a busca pessoal só será válida se realizada pelos agentes públicos com atribuição para tanto, a quem compete avaliar a presença de tais indícios e proceder à abordagem e à revista do suspeito. Da mesma forma que os guardas municipais não são equiparáveis a policiais, também não são cidadãos comuns, de modo que, se, por um lado, não podem realizar tudo o que é autorizado às polícias, por outro, também não estão plenamente reduzidos à mera condição de "qualquer do povo". Trata-se de agentes públicos que desempenham atividade de segurança pública e são dotados do importante poder-dever de proteger os bens, serviços e instalações municipais, assim como os seus respectivos usuários. Dessa forma, é possível e recomendável que exerçam a vigilância, por exemplo, de creches, escolas e postos de saúde municipais, para garantir que não tenham sua estrutura danificada por vândalos, ou que seus frequentadores não sejam vítimas de furto, roubo ou algum tipo de violência, a fim de permitir a continuidade da prestação do serviço público municipal correlato a tais instalações. Nessa linha, guardas municipais podem realizar patrulhamento preventivo na cidade, mas sempre vinculados à finalidade da corporação, sem que lhes seja autorizado atuar como verdadeira polícia para reprimir e investigar a criminalidade urbana ordinária. Não é das guardas municipais, mas sim das polícias, como regra, a competência para investigar, abordar e revistar indivíduos suspeitos da prática de tráfico de drogas ou de outros delitos cuja prática não atente de maneira clara, direta e imediata contra os bens, serviços e instalações municipais ou as pessoas que os estejam usando naquele momento. Poderão, todavia, realizar busca pessoal em situações excepcionais - e por isso interpretadas restritivamente - nas quais se demonstre concretamente haver clara, direta e imediata relação com a finalidade da corporação, como instrumento imprescindível para a realização de suas atribuições. Vale dizer, salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários, o que não se confunde com permissão para desempenharem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil para combate da criminalidade urbana ordinária em qualquer contexto. No caso, guardas municipais estavam em patrulhamento quando depararam com o acusado em "atitude suspeita". Por isso, decidiram abordá-lo e, depois de revista pessoal, encontraram certa quantidade de drogas no bolso traseiro e nas vestes íntimas dele, o que ensejou a sua prisão em flagrante delito. Ainda que, eventualmente, se considerasse provável que o réu ocultasse objetos ilícitos, isto é, que havia fundada suspeita de que ele escondia drogas, não existia certeza sobre tal situação a ponto de autorizar a imediata prisão em flagrante por parte de qualquer do povo, com amparo no art. 301 do CPP. Tanto que só depois de constatado que havia drogas dentro do bolso e das vestes íntimas do abordado é que se deu voz de prisão em flagrante para ele, e não antes. Portanto, por não haver sido demonstrada concretamente a existência de relação clara, direta e imediata com a proteção dos bens, serviços ou instalações municipais, ou de algum cidadão que os estivesse usando, não estavam os guardas municipais autorizados, naquela situação, a avaliar a presença da fundada suspeita e efetuar a busca pessoal no acusado.