Cabimento da transferência da execução penal ao Brasil para brasileiro nato
O Governo da Itália apresentou pedido de transferência de execução da pena imposta a brasileiro nato condenado a nove anos de prisão por estupro contra uma mulher albanesa, na Itália, em 2013. Inicialmente, pontua-se que o sistema de contenciosidade limitada adotado pelo Brasil em matéria de homologação de sentença penal estrangeira impede a rediscussão do mérito da ação penal que resultou na condenação do cidadão brasileiro. A transferência de execução penal é instituto processual de cooperação internacional, previsto em tratados internacionais dos quais o Brasil é parte e está positivado na Lei n. 13.445/2017. Cuida de hipótese voltada à aplicação de pena privativa de liberdade, após seu regular reconhecimento pelo STJ, que for imposta no exterior a nacionais ou a estrangeiros que aqui tenham residência habitual. A Constituição Federal veda a extradição de brasileiro nato, conforme o art. 5º, LI, o que não impede o deferimento do pedido de cooperação internacional, que trata de instituto diverso. A homologação de sentença estrangeira não consistirá na entrega de nacional brasileiro condenado criminalmente para cumprimento de pena em outro país. Nesse sentido, o próprio governo brasileiro admitiu o processamento do pedido de transferência de pena, formulado pelo Governo da Itália, pois, por meio de tratados internacionais, a rede de proteção de cidadãos brasileiros foi fortalecida com a possibilidade de cumprimento de pena no seu próprio país, com isso, além da transferência de execução da pena, também se possibilita a própria transferência do preso que cumpre pena fora do território nacional. Dessa forma, não há inconstitucionalidade na transferência de execução de pena, porque não há violação do núcleo do direito fundamental contido no art. 5º, LI, da CF. Pelo contrário, há um reforço do compromisso internacional do Brasil em adotar instrumentos de cooperação eficientes para assegurar a eficácia da jurisdição criminal. Ademais, descabida a interpretação segundo a qual se aplicaria a transferência apenas nos casos em que cabível a extradição, pois praticamente seria letra morta na legislação. Naturalmente que o país requerente sempre daria preferência à extradição, relegando à inutilidade a previsão de transferência da execução. De outro lado, esse modelo de solução alternativa está posto em diversos Tratados Internacionais (como as Convenções de Viena, Palermo e Mérida), nos quais há previsão expressa de transferência da execução sempre que a extradição for recusada pelo critério da nacionalidade. Destaca-se, ainda, que a negativa em homologar a sentença estrangeira geraria a impossibilidade completa de nova persecução penal, na medida em que não poderá ser novamente processado e julgado pelo mesmo fato que resultou em sua condenação na Itália. Trata-se do instituto do non bis in idem, também contemplado no art. 100 da Lei n. 13.445/2017, que assim dispõe: "Nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória, a autoridade competente poderá solicitar ou autorizar a transferência de execução da pena, desde que observado o princípio do non bis in idem.". Sobre o tema, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no HC 171118 de relatoria do ministro Gilmar Mendes, ao interpretar os arts. 5º, 6º e 8º do Código Penal, assentou que a proibição da dupla incriminação também incide no âmbito internacional. Assim, no Brasil, não se admite que um cidadão seja novamente processado e julgado pelos mesmos fatos que resultaram em sua condenação definitiva no exterior. Da mesma forma, o argumento de que a aplicação da Lei n. 13.445/2017 violaria o "princípio constitucional da irretroatividade da nova lei penal mais gravosa" não subsiste ante a natureza jurídica da cooperação internacional. O STF já decidiu que as normas sobre cooperação internacional em matéria penal não têm natureza criminal, o que permite a aplicação imediata conforme art. 6º da LINDB. Com isso, a norma de cooperação internacional pode ser "imediatamente aplicável, seja em benefício, seja em prejuízo do extraditando". Com a edição do art. 100 da Lei n. 13.445/2017, não há mais dúvida acerca da possibilidade da transferência da execução da pena, pois houve mitigação do princípio da territorialidade das penas previsto no art. 9º do Código Penal. Como o novo instituto veda a propositura de nova ação penal sobre o mesmo fato no território nacional, assegurou-se maior efetividade da jurisdição criminal. Reconhece-se, assim, o princípio do non bis in idem no plano internacional. Por fim, não é possível declarar a nulidade da ação penal que tramitou na Itália por inobservância de normas da legislação penal e processual brasileira. Nos tratados internacionais celebrados entre o Brasil e a Itália, não há norma que imponha o dever de o Poder Judiciário italiano aplicar as normas procedimentais brasileiras em processo que apura responsabilidade criminal de brasileiro. Sendo assim, a homologação da transferência de execução da pena ao efetivar a cooperação internacional, tem o condão de, secundariamente, resguardar os direitos humanos das vítimas. A homologação da sentença não é um fim em si mesmo, mas um instrumento efetivação dos direitos fundamentais tanto do condenado como da vítima.
Cobertura obrigatória de transporte pelo plano de saúde por falta de prestador local
O art. 16, X, da Lei n. 9.656/1998, dispõe que, dos contratos, regulamentos ou condições gerais dos planos privados de assistência à saúde devem constar dispositivos que indiquem com clareza, dentre outros, a área geográfica de abrangência, a qual, de acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), corresponde à área em que a operadora fica obrigada a garantir todas as coberturas de assistência à saúde contratadas pelo beneficiário, podendo ser nacional, estadual, grupo de estados, municipal ou grupo de municípios (art. 1º, § 1º, I, da Resolução Normativa n. 259/2011 - atual art. 1º, § 1º, I, da Resolução Normativa n. 566/2022 da ANS). Por sua vez, o art. 2º da Resolução Normativa n. 259/2011 da ANS (atual art. 2º da Resolução Normativa n. 566/2022 da ANS) acrescenta que a operadora deverá garantir o atendimento integral dessas coberturas no município onde o beneficiário os demandar, desde que seja integrante da área geográfica de abrangência e da área de atuação do produto. Assim como no SUS (art. 2º, I, Decreto n. 7.508/2011), a saúde suplementar trabalha com o conceito de regiões de saúde (agrupamentos de municípios limítrofes), o qual é dirigido às operadoras com a única finalidade de permitir-lhes integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde que prestam (art. 1º, § 1º, V, da Resolução Normativa n. 259/2011 - atual art. 1º, § 1º, V, da Resolução Normativa n. 566/2022); tal conceito, portanto, não pode ser utilizado como um mecanismo que dificulta o acesso do beneficiário às coberturas de assistência à saúde contratadas. Não é razoável que o beneficiário seja obrigado a custear o seu deslocamento para receber atendimento fora do município de demanda integrante da área geográfica de abrangência estabelecida no contrato, sobretudo em município que sequer é limítrofe a este, ainda que sejam ambos da mesma região de saúde, especialmente considerando que a distância entre os municípios de uma mesma região de saúde pode ser bastante longa, ainda mais para quem necessita de tratamento médico. Logo, seguindo a diretriz do art. 4º da Resolução Normativa n. 259/2011 (atual art. 4º da Resolução Normativa n. 566/2022 da ANS), conclui-se que, se, no município de demanda, não houver prestador da rede assistencial apto a realizar o serviço ou o procedimento demandado, caberá à operadora, no prazo regulamentar, garantir o atendimento em: (i) prestador não integrante da rede assistencial no município de demanda; ou (ii) prestador, integrante ou não da rede assistencial, em município limítrofe ao município de demanda; ou (iii) prestador, integrante ou não da rede assistencial, em município não limítrofe ao município de demanda, mas integrante da mesma região de saúde deste, garantindo o transporte - ida e volta - do beneficiário; ou (iv) prestador, integrante ou não da rede assistencial, em município não integrante da região de saúde do município de demanda, garantindo o transporte - ida e volta - do beneficiário.
Inexistência de delito antecedente afasta tipicidade da lavagem e imputação por organização criminosa
Cinge a controvérsia a definir a repercussão jurídica do reconhecimento da atipicidade do crime antecedente (sonegação fiscal) apto a configurar lavagem de dinheiro e organização criminosa. Na origem, ressoa que os acusados efetuaram a quitação do tributo e da multa aplicada antes da sua constituição definitiva. Assim, em momento posterior ao recebimento da inicial acusatória, o juízo de primeiro grau extinguiu a punibilidade com relação ao crime contra a ordem tributária (art. 1º, V, art. 11 e art. 12, I da Lei 8.137/1990) ante o pagamento integral do débito, mantendo hígidas as demais imputações. Reconhecida a atipicidade da conduta apontada como crime antecedente, os réus pugnaram pelo trancamento da ação penal com relação aos delitos de lavagem de dinheiro (art. 1º, §2º, I da Lei n. 9.613/1998) e de organização criminosa (art. 2º, caput, § 4º da Lei n. 12.850/2013). O Tribunal a quo entendeu que, por serem delitos autônomos, não haveria constrangimento ilegal na continuidade da persecução penal. Com relação ao crime de lavagem de capitais, a matéria encontra-se positivada pelos seguintes dispositivos da Lei n. 9.613/1998: "Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei: (..) II - independem do processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente para os crimes previstos nesta Lei a decisão sobre a unidade de processo e julgamento; (...) § 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente." Trata-se de crime acessório. Cediço, pois, que para a configuração do delito de lavagem de capitais, imperiosa a existência de infração penal antecedente, que se configura elemento normativo do tipo. Sobre o tema, convém destacar que a orientação jurisprudencial desta Corte é no sentido de que, para a configuração do delito de lavagem de capitais não é necessária a condenação pelo delito antecedente, tendo em vista a autonomia do primeiro crime em relação ao segundo. Basta, apenas, a presença de indícios suficientes da existência do crime antecedente (AgRg no AgRg no HC n. 782.749/SP, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 26/5/2023). Estabelecida a natureza acessória objetiva do crime de lavagem de capital, resta aferir sua amplitude. Sobre o tema, a doutrina assenta que o legislador adotou a regra da acessoriedade limitada, ou seja, a conduta anterior deve ser típica e ilícita. Partindo de igual premissa, a Sexta Turma desta Corte assim já decidiu: "3. Na espécie sequer se discute a falta de prova do crime antecedente, mas, ao contrário, certa é a inexistência do crime, pois indispensável à configuração do delito de sonegação tributária é a prévia constituição definitiva do tributo. 4. Sem crime antecedente, resta configurado o constrangimento ilegal na persecução criminal por lavagem de dinheiro." (RHC n. 73.599/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 20/9/2016). No caso, é incontroverso que a única conduta apontada como crime anterior (sonegação fiscal) foi reconhecida como atípica. Assim, a não existência de crime antecedente exclui a própria tipicidade do delito de lavagem de capitais. A mesma razão de decidir se aplica, no caso, ao delito de organização criminosa. A Lei n. 12.850/2013, em seu art. 1º, define organização criminosa nos seguintes termos: "§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional." Note-se que, além do número de pessoas, reunidas de modo ordenado e estruturado, com estabilidade e permanência, para a configuração do delito é imprescindível a prática de infrações penais. Na espécie, a denúncia aponta que os réus, representantes legais da empresa, compunham a organização criminosa como beneficiários de esquema de fraude fiscal, com o escopo de sonegar ICMS devido ao Estado da Paraíba. Assim, o suposto liame subjetivo dos agentes tinha como objetivo cometer crime de sonegação fiscal e de lavagem de dinheiro. Ocorre que, consoante já visto, fora declarada a extinção da punibilidade da conduta apontada como crime contra a ordem tributária pelo primeiro grau de jurisdição. Como consequência, ausente delito antecedente, a imputação de lavagem de capitais não se sustenta. Nesse sentido, uma vez reconhecido que a ação dos acusados na gestão da sociedade empresária não configura delito, é consectário lógico a ausência de materialidade do crime de organização criminosa.
Impenhorabilidade dos direitos aquisitivos do devedor fiduciante após inadimplemento e consolidação da propriedade
Cinge-se a controvérsia em saber se a consolidação da propriedade pelo credor fiduciário extingue o direito do devedor fiduciante à mencionada aquisição. No caso, em observância ao que dispõe o art. 835, XII, do CPC, a penhora se deu sobre os direitos aquisitivos derivados da aquisição do imóvel alienado fiduciariamente. Todavia, uma vez executada a garantia e consolidada a propriedade em favor do credor fiduciário, não mais subsistem aqueles direitos aquisitivos, pois a situação equivale ao perecimento ou desaparecimento da coisa submetida ao gravame, que não mais pode subsistir. Isso porque a penhora é ato de apreensão e depósito de um bem, que passa a responder pelo débito. Logo, se essa afetação não mais se faz possível, porque a propriedade do bem legalmente mudou de mãos pelo inadimplemento da compra e venda com garantia fiduciária, não mais se pode prosseguir na sua alienação judicial. A penhora em favor do credor exequente não tem força para impedir a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, consoante o art. 27 da a Lei n. 9.514/1997. A solução então passa pela substituição da penhora, medida que é permitida pelo Código de Processo Civil (arts. 847 a 849), mediante sua transferência para outros bens (art. 850) ou até nova ou segunda penhora (art. 851). Portanto, resta apenas a substituição do bem penhorado, com lavratura de novo termo, consoante dispõe o art. 849 do Código de Processo Civil no saldo que eventualmente restar do produto da venda pelo fiduciante. A subsistência do gravame apenas servirá como mero complicador na futura transferência ao adquirente do bem em leilão, dificultando a prática a sua formalização.