Covid-19: empresas de telefonia e compartilhamento de informações com o IBGE

STF
976
Direito Constitucional
Geral
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Atualizado em 14 de novembro de 2025

Este julgado integra o

Informativo STF 976

Comentário Damásio

Resumo

O cenário de urgência decorrente da crise sanitária deflagrada pela pandemia global da Covid-19 e a necessidade de formulação de políticas públicas que demandam dados específicos para o desenho dos diversos quadros de enfrentamento não podem ser invocados como pretextos para justificar investidas que enfraquecem direitos e atropelam garantias fundamentais consagradas na Constituição Federal. Assim, há indícios de inconstitucionalidade na Medida Provisória 954/2020, que dispõe sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) e de Serviço Móvel Pessoal (SMP) com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (Covid-19). Consideradas a necessidade, a adequação e a proporcionalidade, não emerge do aludido ato normativo, nos moldes em que editado, interesse público legítimo no compartilhamento dos dados pessoais dos usuários dos serviços de telefonia.

Conteúdo Completo

O cenário de urgência decorrente da crise sanitária deflagrada pela pandemia global da Covid-19 e a necessidade de formulação de políticas públicas que demandam dados específicos para o desenho dos diversos quadros de enfrentamento não podem ser invocados como pretextos para justificar investidas que enfraquecem direitos e atropelam garantias fundamentais consagradas na Constituição Federal. Assim, há indícios de inconstitucionalidade na Medida Provisória 954/2020, que dispõe sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) e de Serviço Móvel Pessoal (SMP) com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (Covid-19). Consideradas a necessidade, a adequação e a proporcionalidade, não emerge do aludido ato normativo, nos moldes em que editado, interesse público legítimo no compartilhamento dos dados pessoais dos usuários dos serviços de telefonia. 

O Plenário, por maioria, referendou medida cautelar em ações diretas de inconstitucionalidade para suspender a eficácia da Medida Provisória 954/2020 (1), que dispõe sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) e de Serviço Móvel Pessoal (SMP) com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (Covid-19). O Tribunal esclareceu que as condições em que se dá a manipulação de dados pessoais digitalizados, por agentes públicos ou privados, consiste em um dos maiores desafios contemporâneos do direito à privacidade. A Constituição Federal (CF) confere especial proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas ao qualificá-las como invioláveis, enquanto direitos fundamentais da personalidade, assegurando indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X). O assim chamado direito à privacidade e os seus consectários direitos à intimidade, à honra e à imagem emanam do reconhecimento de que a personalidade individual merece ser protegida em todas as suas manifestações. A fim de instrumentalizar tais direitos, a CF prevê, no art. 5º, XII, a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução penal. O art. 2º da MP 954/2020 impõe às empresas prestadoras do STFC e do SMP o compartilhamento, com o IBGE, da relação de nomes, números de telefone e endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas. Tais informações, relacionadas à identificação – efetiva ou potencial – de pessoa natural, configuram dados pessoais e integram o âmbito de proteção das cláusulas constitucionais assecuratórias da liberdade individual (art. 5º, caput), da privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade (art. 5º, X e XII). Sua manipulação e seu tratamento, desse modo, devem observar, sob pena de lesão a esses direitos, os limites delineados pela proteção constitucional. Decorrências dos direitos da personalidade, o respeito à privacidade e à autodeterminação informativa foram positivados, no art. 2º, I e II, da Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), como fundamentos específicos da disciplina da proteção de dados pessoais. O colegiado observou que o único dispositivo da MP 954/2020 a dispor sobre a finalidade e o modo de utilização dos dados objeto da norma é o § 1º do seu art. 2º. E esse limita-se a enunciar que os dados em questão serão utilizados exclusivamente pelo IBGE para a produção estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares. Não delimita o objeto da estatística a ser produzida, nem a finalidade específica, tampouco sua amplitude. Igualmente não esclarece a necessidade de disponibilização dos dados nem como serão efetivamente utilizados. O art. 1º, parágrafo único, da MP 954/2020 apenas dispõe que o ato normativo terá aplicação durante a situação de emergência de saúde pública decorrente do Covid-19. Ainda que se possa associar, por inferência, que a estatística a ser produzida tenha relação com a pandemia invocada como justificativa da edição da MP, tal ilação não se extrai de seu texto. Assim, não emerge da MP 954/2020, nos termos em que posta, interesse público legítimo no compartilhamento dos dados pessoais dos usuários dos serviços de telefonia, consideradas a necessidade, a adequação e a proporcionalidade da medida. Ao não definir apropriadamente como e para que serão utilizados os dados coletados, a MP 954/2020 não oferece condições para avaliação da sua adequação e necessidade, assim entendidas como a compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas e sua limitação ao mínimo necessário para alcançar suas finalidades. Desatende, assim, a garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), em sua dimensão substantiva. De outra parte, o art. 3º, I e II, da MP 954/2020 dispõe que os dados compartilhados “terão caráter sigiloso” e “serão utilizados exclusivamente para a finalidade prevista no § 1º do art. 2º”, e o art. 3º, § 1º, veda ao IBGE compartilhar os dados disponibilizados com outros entes, públicos ou privados. Nada obstante, a MP 954/2020 não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida, seja na sua transmissão, seja no seu tratamento. Limita-se a delegar a ato do presidente do IBGE o procedimento para compartilhamento dos dados, sem oferecer proteção suficiente aos relevantes direitos fundamentais em jogo. Ao não prever exigência alguma quanto a mecanismos e procedimentos para assegurar o sigilo, a higidez e, quando o caso, o anonimato dos dados compartilhados, a MP 954/2020 não satisfaz as exigências que exsurgem do texto constitucional no tocante à efetiva proteção de direitos fundamentais dos brasileiros. A ausência de garantias de tratamento adequado e seguro dos dados compartilhados é agravada pela circunstância de que, embora aprovada, ainda não está em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), definidora dos critérios para a responsabilização dos agentes por eventuais danos ocorridos em virtude do tratamento de dados pessoais. Ademais, o IBGE noticiou em seu sítio eletrônico ter dado início, em parceria com o Ministério da Saúde, à “PNAD Covid”, versão da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) voltada à quantificação do alastramento da pandemia da Covid-19 e seus impactos no mercado de trabalho brasileiro. Para definir a amostra da nova pesquisa, o IBGE utilizou a base de 211 mil domicílios que participaram da PNAD Contínua no primeiro trimestre de 2019 e selecionou aqueles com número de telefone cadastrado. Esse fato seria suficiente por si só para evidenciar a desnecessidade e o excesso do compartilhamento de dados tal como disciplinado na MP 954/2020. Nesse contexto, não bastasse a coleta de dados se revelar excessiva, ao permitir que, pelo prazo de trinta dias após a decretação do fim da situação de emergência de saúde pública, os dados coletados ainda sejam utilizados para a produção estatística oficial, o art. 4º, parágrafo único, da MP 954/2020 permite a conservação dos dados pessoais, pelo ente público, por tempo manifestamente excedente ao estritamente necessário para o atendimento da sua finalidade declarada, que é a de dar suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública decorrente do Covid-19. Vencido o ministro Marco Aurélio, que não referendou a medida cautelar e manteve hígida a medida provisória. Pontuou que a medida provisória surgiu diante da dificuldade de se colher dados, devido à impossibilidade de ter-se pessoas circulando, visitando os domicílios e residências. A sociedade perde com o isolamento do IBGE, pois o levantamento de dados é necessário ao implemento de políticas públicas. Afirmou que a ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada contra ato precário e efêmero, que fica, uma vez formalizado pelo Executivo, submetido a condição resolutiva do Congresso Nacional, que tem prazo para pronunciar-se a respeito. Ao analisar a medida provisória, o Congresso Nacional aprecia sua harmonia ou não com a CF, bem como a conveniência e a oportunidade da normatização da matéria. Afastou a concepção segundo a qual existiria verdadeira conspiração por trás dessa medida provisória. Destacou que não se pode presumir o excepcional ou extravagante.

Legislação Aplicável

MP 954/2020, art. 1º.

Informações Gerais

Número do Processo

6393

Tribunal

STF

Data de Julgamento

07/05/2020