Validade de cláusula em cartão de crédito para débito mínimo em conta-corrente apesar de contestação
Inicialmente, a teor do quanto previsto no contrato de emissão e utilização do cartão de crédito, em caso de não pagamento da fatura na data de seu vencimento ou cancelamento do cartão por inadimplemento, o titular autorizaria o emissor a debitar em sua conta corrente o valor mínimo correspondente aos gastos por ele efetuados, caso haja saldo para tanto. Essa operação de débito direto do valor mínimo da fatura consiste em uma ferramenta apenas utilizada quando o cliente não realiza, esponte própria, o pagamento do montante devido no prazo contratual assinalado, sequer do valor mínimo expressamente acordado para manter o fluxo do contrato de cartão de crédito. A prática do pagamento mínimo como opção do titular do cartão fora reconhecida como válida pelo Banco Central do Brasil, desde a edição da Resolução n. 3.919/2010. Hodiernamente, não existe mais o pagamento mínimo obrigatório de determinado percentual do valor da fatura, mas, cada instituição financeira pode estabelecer com os consumidores o montante de adimplemento mínimo mensal, em função do risco da operação, do perfil do cliente ou do tipo de produto. Certamente, o pagamento mínimo previsto na modalidade contratual de cartão de crédito constitui uma mera liberalidade da operadora, que insere tal condição na contratualidade de maneira a conquistar e fidelizar o usuário, a fim de fortalecer o sistema de crédito na modalidade cartão. A hipótese de débito do valor mínimo constitui uma das condições para que se conceda crédito aos titulares do cartão, possibilitando a estes últimos, o abatimento parcial do quanto devido e não adimplido. Trata-se, portanto, de uma espécie de garantia à continuidade do ajuste estabelecido entre as partes. Com a facilidade do débito mínimo, condições vantajosas são experimentadas por ambas as partes da relação jurídica: a financeira mantém a continuidade e o fluxo do sistema e do serviço de cartão de crédito e garante o pagamento de parcela dos valores inadimplidos na data, sem a necessidade da realização de procedimentos executivos forçados; já o titular de cartão de crédito inadimplente mantém o saldo disponível do crédito do cartão para realizar outras despesas e realiza o pagamento parcial do débito com a amortização do quanto devido sem que ocorra o bloqueio da operação, deixando de se submeter às regras e encargos atinentes ao procedimento de execução forçada. Inegavelmente, não há no ordenamento jurídico obrigação legal para a concessão de crédito sem garantia, nem mesmo vedação a tal prática, motivo esse que impede rotular como abusivo o débito de parcela mínima do total de gastos efetuados pelos titulares dos cartões de crédito. Portanto, não se reputa abusiva a cláusula inserta em contrato de cartão de crédito que autoriza a operadora/financeira a debitar na conta corrente do respectivo titular o pagamento do valor mínimo da fatura em caso de inadimplemento, porquanto tal ajuste não ofende o princípio da autonomia da vontade, que norteia a liberdade de contratar, tampouco possui o condão de violar o equilíbrio contratual ou a boa-fé, haja vista que tal proceder constitui mero expediente para facilitar a satisfação do crédito com a manutenção da contratualidade havida entre as partes. Do mesmo modo, em todas as hipóteses nas quais o titular do cartão contestar a fatura, se não realizado o pagamento no prazo, tendo sido expressamente contratado e devidamente informado ao consumidor a ocorrência do débito do valor mínimo diretamente na conta corrente, não há falar em abusividade.
Obtenção de cópias dos autos de apuração de ato infracional mediante interesse jurídico justificado
O art. 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, como regra geral, a vedação à divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito à apuração de atos infracionais. Esta disposição, em primeiro juízo, obsta o acesso de terceiros aos referidos autos. Todavia, a vedação contida no art. 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente não é absoluta, sendo mitigada, conforme se extrai do art. 144 deste mesmo diploma normativo, nas hipóteses em que há interesse jurídico e justificada finalidade no pleito de acesso aos autos. Nesse caso, presentes interesse e finalidade justificados, deverá a autoridade judiciária deferir a extração de cópias ou certidões dos atos do processo infracional. No caso, a vítima do ato infracional comprovou seu interesse jurídico e apresentou finalidade justificada ao pleitear o seu acesso aos autos do processo de apuração do ato infracional, consignando a utilidade dos documentos nele produzidos para servirem como provas em ação de deserdação. Uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente exige a justificação da finalidade para a qual se defere o pleito de acesso aos autos e de extração de cópias do processo de apuração de ato infracional, é certo que a concessão do pedido está vinculada a esta finalidade (no caso, instrução de ação de deserdação), não se podendo utilizar os documentos obtidos para finalidade diversa, sob pena de responsabilização cível e penal.
Paternidade socioafetiva e validade do registro de nascimento sem pai biológico
O art. 1604 do Código Civil dispõe que "ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro". Vale dizer, não é possível negar a paternidade registral, salvo se consistentes as provas do erro ou da falsidade. Devido ao valor absoluto do registro, o erro apto a caracterizar o vício de consentimento deve ser escusável, não se admitindo para tal fim que o erro decorra de simples negligência de quem registrou. Assim, esta Corte consolidou orientação no sentido de que para ser possível a anulação do registro de nascimento, é imprescindível a presença de dois requisitos, a saber: (i) prova robusta no sentido de que o pai foi de fato induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto e (ii) inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho. Acerca do primeiro pressuposto, "para que fique caracterizado o erro, é necessária a prova do engano não intencional na manifestação da vontade de registrar" (REsp 1.383.408/RS, Terceira Turma, DJe 30/05/2014). Nesse mesmo julgado, consignou-se que "não há erro no ato daquele que registra como próprio filho que sabe ser de outrem, ou ao menos tem sérias dúvidas sobre se é seu filho". Portanto, é preciso que, no momento do registro, o indivíduo acreditasse ser o verdadeiro pai biológico da criança. Já no que concerne ao segundo requisito, ressalte-se que a constante instabilidade e volatilidade das relações conjugais em nossa sociedade atual não podem e não devem impactar as relações de natureza filial que se constroem ao longo do tempo e independem do vínculo de índole biológica, pois "o assentamento no registro civil a expressar o vínculo de filiação em sociedade nunca foi colocado tão à prova como no momento atual, em que, por meio de um preciso e implacável exame de laboratório, pode-se destruir verdades construídas e conquistadas com afeto" (REsp 1.003.628/DF, 3ª Turma, DJe 10/12/2008). A filiação socioafetiva representa um fenômeno social que, a despeito da falta de previsão legal, foi acolhido pela doutrina e jurisprudência, a fim de albergar os vínculos afetivos fundados em amor, carinho, atenção, dedicação, preocupações, responsabilidades, etc. Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano.
Incompetência da arbitragem para ação de despejo por falta de pagamento mesmo com cláusula compromissória
A controvérsia está em definir qual o juízo competente - o estatal ou o arbitral - para julgar a pretensão de despejo por falta de pagamento, com posterior abandono do imóvel, diante da existência de cláusula compromissória. A cláusula arbitral, uma vez contratada pelas partes, goza de força vinculante e caráter obrigatório, definindo ao juízo arbitral eleito a competência para dirimir os litígios relativos aos direitos patrimoniais acerca dos quais os litigantes possam dispor, derrogando-se a jurisdição estatal. No entanto, apesar da referida convenção arbitral excluir a apreciação do juízo estatal, tal restrição não se aplica aos processos de execução forçada, haja vista que os árbitros não são investidos do poder de império estatal à prática de atos executivos, não sendo detentores de poder coercitivo direto. Especificamente em relação ao contrato de locação e sua execução, a Quarta Turma do STJ já decidiu que, no âmbito do processo executivo, a convenção arbitral não exclui a apreciação do magistrado togado, já que os árbitros, como dito, não são investidos do poder de império estatal à prática de atos executivos, não tendo poder coercitivo direto (REsp 1465535/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 21/06/2016, DJe 22/08/2016). Por conseguinte, na execução lastreada em contrato com cláusula arbitral, haverá limitação material do seu objeto de apreciação pelo magistrado: o Juízo estatal não deterá competência para resolver as controvérsias que digam respeito ao mérito dos embargos, às questões atinentes ao título ou às obrigações ali consignadas (existência, constituição ou extinção do crédito) e às matérias que foram eleitas para serem solucionadas pela instância arbitral ( kompetenz e kompetenz ), que deverão ser dirimidas pela via arbitral. Na hipótese, não se trata propriamente de execução de contrato de locação, mas de despejo por falta de pagamento e imissão de posse em razão do abandono do imóvel. Assim, diante da sua peculiaridade procedimental e sua natureza executiva ínsita, com provimento em que se defere a restituição do imóvel, o desalojamento do ocupante e a imissão da posse do locador, não parece adequada a jurisdição arbitral para decidir a ação de despejo.
Ineficácia do negócio jurídico por fraude à execução dispensa ação anulatória
Cinge-se a controvérsia a definir se é necessário o ajuizamento de ação anulatória de ato judicial para desconstituição de acordo homologado judicialmente ou se é possível a prolação de decisão interlocutória dos autos do cumprimento de sentença que, reconhecendo a fraude à execução, declara o acordo ineficaz em relação ao exequente. Na espécie, não se busca a desconstituição do negócio jurídico firmado pelas partes, isto é, não se pretende a declaração de invalidade do acordo e da decisão homologatória, o que, indubitavelmente, exigiria a propositura da ação anulatória, já que, caso contrário, estar-se-ia desconstituindo não só o pacto assinado pelas partes, mas também a decisão homologatória, mediante uma determinação judicial proferida incidentalmente em demanda diversa, o que não pode ser admitido. No caso, o que se pretende é apenas o reconhecimento de que o ato entabulado pelas partes não surtirá efeitos em relação a outra parte em razão da fraude à execução, sem a declaração de invalidade do acordo e da decisão homologatória. Salienta-se que a fraude à execução é instituto jurídico de direito processual civil, pois, além de o ato fraudulento gerar prejuízos ao credor, atenta contra a própria função jurisdicional do Estado-juiz, já que leva um processo já instaurado à inutilidade. Ademais, ao contrário da fraude contra credores, não é necessária a propositura de ação específica para o reconhecimento da fraude à execução, sendo suficiente o protocolo de mera petição no processo pendente, salvo nos casos de alienação judicial do bem, o que não é o caso dos autos. Enquanto o art. 966, § 4º, do CPC/2015 expressamente prevê o cabimento da ação anulatória para se declarar a nulidade do ato ou negócio firmado pelas partes, o § 1º do art. 792 do mesmo diploma legal prevê que "a alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente". Isso quer dizer que não se anula o negócio jurídico que configurou o ato fraudulento, mas apenas se declara a sua ineficácia em relação ao exequente prejudicado. Assim sendo, o negócio jurídico é existente, válido e eficaz para as partes que o firmaram e, também, para terceiros, à exceção daquele exequente em favor de quem tenha sido reconhecida a fraude à execução, para o qual o negócio jurídico existe e é válido, porém ineficaz. Assim, cuidando-se apenas da pretensão de declaração da ineficácia do negócio jurídico em relação ao exequente ante a inequívoca caracterização da fraude à execução, com o reconhecimento da nítida má-fé das partes que firmaram o acordo posteriormente homologado judicialmente, é prescindível a propositura de ação anulatória autônoma.