Competência da Justiça Estadual e Distrital para Repactuação de Dívidas por Superendividamento
A discussão que abrange o presente caso consiste na declaração do juízo competente para processar e julgar ação de repactuação de dívidas por superendividamento do consumidor em que é parte, além de outras instituições financeiras privadas, a Caixa Econômica Federal. A Lei n. 14.181/2021, ao alterar o Código de Defesa do Consumidor, cuidou especificamente do instituto da repactuação de dívidas por superendividamento, a saber: o juiz, a requerimento do devedor, poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, tutelado pelo art. 104-A e seguintes da legislação consumerista, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado, com a presença de todos os credores de dívidas, oportunidade em que o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas. Em interpretação do art. 109, I, da Constituição Federal, que trata da competência dos juízes federais, o Supremo Tribunal Federal (STF), na oportunidade do julgamento do RE 678162, relator para acórdão Ministro Edson Fachin, DJe 13/5/2021, firmou tese no sentido de que "a insolvência civil está entre as exceções da parte final do art. 109, I, da Constituição da República, para fins de definição da competência da Justiça Federal". Anota-se que, uma vez identificada a existência de concurso de credores, excepciona-se a competência da Justiça Federal prevista no art. 109, I, da Constituição Federal. Tal circunstância decorre da redação do art. 104-A do CDC, introduzido pela Lei n. 14.181/2021, que estabelece a previsão de que, para instaurar o processo de repactuação de dívidas, impõe-se a presença, perante o juízo, de todos os credores do consumidor superendividado, a fim de que este possa propor àqueles o respectivo plano de pagamentos de seus débitos. De fato, o procedimento judicial relacionado ao superendividamento, tal como o de recuperação judicial ou falência, possui inegável e nítida natureza concursal, de modo que as empresas públicas federais, excepcionalmente, sujeitam-se à competência da Justiça estadual e/ou distrital, justamente em razão da existência de concursalidade entre credores, impondo-se, dessa forma, a concentração, na Justiça comum estadual, de todos os credores, bem como o próprio consumidor para a definição do plano de pagamento, suas condições, o seu prazo e as formas de adimplemento dos débitos. Eventual desmembramento ensejará notável prejuízo ao devedor (consumidor vulnerável, reitere-se), porquanto, consoante dispõe a própria legislação de regência (art. 104-A do CDC), todos os credores devem participar do procedimento, inclusive na oportunidade da audiência conciliatória. Caso tramitem separadamente, em jurisdições diversas, federal e estadual, estaria maculado o objetivo primário da Lei do Superendividamento, qual seja, o de conferir a oportunidade do consumidor - perante seus credores - de apresentar plano de pagamentos a fim de quitar suas dívidas/obrigações contratuais. Haverá o risco de decisões conflitantes entre os juízos acerca dos créditos examinados, em violação ao comando do art. 104-A do CDC. Assim, adota-se a compreensão segundo a qual cabe à Justiça comum estadual e/ou distrital analisar as demandas cujo fundamento fático e jurídico possuem similitude com a insolvência civil - como é a hipótese do superendividamento -, ainda que exista interesse de ente federal, porquanto a exegese do art. 109, I, da Constituição Federal, deve ser teleológica de forma a alcançar, na exceção da competência da Justiça Federal, as hipóteses em que existe o concurso de credores.
Impossibilidade de supressão e substituição integrais do nome registral por autoidentificação indígena
A legislação pátria adota o princÃpio da definitividade do registro civil da pessoa natural, consolidada na recente alteração promovida pela Lei 14.382/2022, de modo que o prenome e nome são, em regra, definitivos a fim de garantir a segurança jurÃdica e a estabilidade das relações jurÃdicas. A doutrina e a jurisprudência, no entanto, tem atribuÃdo interpretação mais flexÃvel e ampla à s normas e consentânea com os fins sociais a que se destinam, permitindo o abrandamento da regra geral, para permitir a alteração do nome em casos especÃficos. A presente hipótese, no entanto, trata de situação bem diversa das já julgadas por esta Corte. Pretende-se a completa supressão e substituição total do nome registral para adotar outros prenome e sobrenomes completos. O art 55 da Lei n. 6.015/73, com redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022, estabelece que: "Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome, observado que ao prenome serão acrescidos os sobrenomes dos genitores ou de seus ascendentes, em qualquer ordem e, na hipótese de acréscimo de sobrenome de ascendente que não conste das certidões apresentadas, deverão ser apresentadas as certidões necessárias para comprovar a linha ascendente". Da legislação pertinente, extrai-se: a) a possibilidade de uma única alteração imotivada de prenome; b) a determinação de acréscimo, ao prenome, dos sobrenomes dos genitores ou ascendentes, de modo que a alteração do nome deve preservar os apelidos de famÃlia; e c) a obrigatória observância de cautelas formais, relativas à preservação das anotações inerentes à s alterações, tanto junto ao próprio registro público, como em relação à s demais repartições publicadas incumbidas da emissão de documentos de identificação da pessoa fÃsica. No entanto, na presente hipótese, verifica-se que se pretende não apenas proceder à substituição de seu prenome por outro, como também excluir de seu nome os patronÃmicos materno e paterno, deixando de referir, e, assim, apagando completamente, qualquer menção a sua estirpe familiar. As hipóteses que relativizam o princÃpio da definitividade do nome, elencadas nos artigos transcritos da Lei de Registros Públicos, não contemplam a possibilidade de exclusão total dos patronÃmicos materno e paterno registrados, com substituição por outros de livre escolha e criação do titular e sem qualquer comprovação ou mÃnima relação com as linhas ascendentes, com concomitante alteração voluntária também do prenome registrado. A Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 3/2012, admite a retificação do assento de nascimento de pessoa indÃgena, para inclusão das informações constantes do art. 2º, caput e § 1º, relativas a nome indÃgena e à respectiva etnia. Não há previsão, no entanto, de adoção das mesmas medidas para pessoa que, sem mÃnima comprovação de origem autóctone brasileira, deseja tornar-se indÃgena, por razões meramente subjetivas e voluntárias, com substituição total do nome e exclusão dos apelidos de famÃlia. A indicada Resolução tutela os direitos de pessoa comprovadamente indÃgena, integrada ou não, sendo tal condição genética pré-requisito necessário para o alcance da norma, mas não ampara os caso em que existe apenas o forte e sincero desejo de passar a ser tida como indÃgena, sem que se comprove origem e ascendência de povo pré-colombiano.
Impossibilidade de remição ficta de pena no trabalho eventual na pandemia
É cediço que, em regra geral, não se admite a remição ficta, posto que "O benefÃcio da remição da pena pelo trabalho ou pelo estudo, consoante se denota do art. 126 da LEP, pressupõe que os reeducandos demonstrem a efetiva dedicação a trabalho ou estudo, com finalidade, portanto, produtiva ou educativa, dada a sua finalidade ressocializadora (AgRg no HC 434.636/MG, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 6/6/2018). Ocorre que, em razão da pandemia da Covid-19, que impôs a adoção de medidas excepcionais, esta Corte Superior, no julgamento do REsp 1.953.607/SC (Tema Repetitivo 1120), fixou a tese de que "Nada obstante a interpretação restritiva que deve ser conferida ao art. 126, § 4º, da LEP, os princÃpios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, ao lado da teoria da derrotabilidade da norma e da situação excepcionalÃssima da pandemia de Covid-19, impõem o cômputo do perÃodo de restrições sanitárias como de efetivo estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou estudando e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão do estado pandêmico". Assim, em razão da excepcionalÃssima pandemia da Covid-19, o perÃodo de restrições sanitárias deve ser comutado como de efetivo estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou estudando e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão do estado pandêmico. No presente caso, as instâncias de origem afirmaram ser incabÃvel a aplicação da remição, porquanto o trabalho exercido no denominado "Projeto Mãos Dadas" tem caráter eventual, pontual, ocorrendo sob demanda. Nesse contexto, observa-se que se mostra incabÃvel a contabilização fictÃcia de dias remidos, dada a própria natureza esporádica do trabalho exercido no Projeto. Assim, sendo o trabalho de natureza eventual, incabÃvel a aplicação da benesse, não podendo ser presumido que o reeducando ficou impossibilitado de continuar seus afazeres unicamente em razão do estado pandêmico.
Impossibilidade de restabelecimento do prazo de apelação após trânsito em julgado por nulidade de intimação
A controvérsia está na análise do vício oriundo da certificação errônea do prazo recursal e as suas consequências. Na hipótese, a intimação das partes no tocante à decisão que rejeitara os embargos de declaração opostos contra a sentença, feita por meio eletrônico, anotou o prazo recursal de 10 dias, quando a lei revela que o prazo correto é de 15 dias. Decorrido esse prazo sem a apresentação de recurso, foi certificado o trânsito em julgado da sentença. Somente dois anos depois seguiu-se, então, a apresentação da apelação, quando a ré apresentou petição informando o erro na intimação eletrônica e requerendo o restabelecimento do prazo recursal. A questão posta trata, assim, de anotação de prazo errado em intimação eletrônica, realizada nos termos do art. 5° da Lei n. 11.419/2006. A parte não praticou o ato em nenhum dos prazos possíveis: o errado, anotado na intimação, tampouco o correto, previsto claramente em lei. Ao contrário, permaneceu inerte durante dois longos anos, aproximadamente. Nesse passo, salta aos olhos a má-fé da apelante, pois guardou a suposta nulidade da intimação para suscitá-la apenas muito tempo depois, no momento em que lhe pareceu mais conveniente. Essa estratégia de permanecer silente, reservando a nulidade para ser alegada em momento posterior, vem sendo rechaçada há muito tempo por esta Corte Superior, sob a alcunha de "nulidade de algibeira". Ademais, mesmo que a intimação pudesse ser considerada nula, seria imperioso reconhecer que se operou o trânsito em julgado. Deveras, observe-se que, nos termos do art. 272, § 8°, do Código de Processo Civil de 2015, já em vigor à época em que a apelante invocou a nulidade da intimação, "A parte arguirá a nulidade da intimação em capítulo preliminar do próprio ato que lhe caiba praticar, o qual será tido por tempestivo se o vício for reconhecido". Trata-se de regra que vai ao encontro da celeridade processual, evitando que a parte, eventualmente, se aproveite de vícios processuais para retardar ainda mais a marcha processual. Esse novel enunciado normativo deixou de ser observado, pois a parte ora recorrida, em vez de apresentar o recurso de apelação e, preliminarmente, sustentar a tempestividade do recurso em virtude da suposta nulidade da intimação ocorrida cerca de dois anos antes, optou por requerer a devolução do prazo, retardando ainda mais o andamento do processo.
Inaplicabilidade do ônus probatório publicitário do CDC em ações de concorrência desleal
A controvérsia diz respeito a verificar se seria possÃvel, em ação visando à cessação da veiculação de publicidade supostamente enganosa, a inversão do ônus da prova a que alude o art. 38 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), mesmo quando em demanda envolvendo concorrência desleal. No caso, sociedade empresária do ramo de lanchonetes busca fazer cessar propaganda supostamente enganosa veiculada por sociedade empresária concorrente consistente no uso da frase "The Best Burger in the World", traduzida em português por "O melhor hambúrguer do mundo" em todo seu material publicitário e nas fachadas dos restaurantes. De acordo com a teoria do diálogo das fontes, as fontes normativas, que hoje são plurais e, em muitos casos, convergentes, no lugar de apenas se excluÃrem mutuamente, devem também, frequentemente, dialogar entre si, cabendo ao aplicador do Direito coordená-las. Considerando especificamente a relação existente entre o Direito da Concorrência e o Direito do Consumidor, o diálogo se dá, nesse caso especÃfico, sob a forma de coordenação e de adaptação sistemática. No entanto, esse diálogo de coordenação e de adaptação sistemática entre Direito da Concorrência e Direito do Consumidor apenas ocorre quando, de um lado, as normas consumeristas reforçam a proteção ao mercado concorrencial, ou quando, de outro lado, as normas concorrenciais somam esforços na proteção do consumidor. Isso, porém, não é o que se verifica no que diz respeito especificamente à norma prevista no art. 38 do CDC. A inversão automática do ônus da prova está fundada no pressuposto de vulnerabilidade do consumidor, especialmente no que diz respeito à publicidade, com o objetivo de garantir a igualdade material e de reforçar a sua proteção, inclusive no acesso à Justiça. Com efeito, em demanda envolvendo Direito da Concorrência, não se mostra correta a presunção de vulnerabilidade da parte autora, não se justificando a inversão direta e automática determinada pelo art. 38 do CDC. Note-se que, na eventualidade de se verificar que, em determinada ação envolvendo Direito da Concorrência, seria particularmente impossÃvel ou excessivamente dificultoso ao autor assumir o ônus da prova, é perfeitamente possÃvel ao juÃzo da causa a distribuição dinâmica desse ônus, conforme autoriza o art. 373, § 1º, do CPC, que ocorreria ope judicis e especificamente para o caso concreto, diferentemente do quanto preconiza o art. 38 do CDC. Ademais, a aplicação da norma prevista no art. 38 do CDC à s relações concorrenciais, além de não se mostrar necessária, diante do quanto previsto no art. 373, § 1º, do CPC, poderia - paradoxalmente - ser utilizada, em determinadas circunstâncias, justamente como instrumento anticoncorrencial. Com efeito, o abuso do direito de ação é uma das formas pelas quais se pode revestir a infração à ordem econômica. Em conduta que ficou conhecida pelo termo em inglês sham litigation, o agente econômico pode se valer de litÃgio simulado - cuja solução, a rigor, lhe seria irrelevante - para prejudicar a atividade de um pequeno concorrente, que passa a ter que se defender em processo longo e dispendioso, com resultado incerto. Nesses casos, o processo é utilizado não com o fim de obter o provimento jurisdicional, mas, sim, como meio de dificultar a atividade do concorrente ou mesmo de barrar a entrada de novos competidores no mercado. Nesse contexto, a inversão automática do ônus da prova prevista pelo art. 38 do CDC poderia facilitar o abuso do direito de ação, incentivando esse tipo de estratégia anticoncorrencial, uma vez que, a partir do ajuizamento de demanda frÃvola, o ônus da prova estaria direta e automaticamente imposto ao concorrente com menor porte econômico.