Supremo Tribunal Federal • 9 julgados • 27 de nov. de 2020
Explore conteúdo relacionado para aprofundar seus estudos
É inconstitucional a fixação de critério de desempate em concursos públicos que favoreça candidatos que pertencem ao serviço público de um determinado ente federativo. É incompatível com a Constituição Federal (CF) estabelecer preferência, na ordem de classificação de concursos públicos, em favor de candidato já pertencente ao serviço público. A CF prevê, expressamente, no art. 19, III (1), que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si” e o ato normativo com aquele conteúdo possui o nítido propósito de conferir tratamento mais favorável aos candidatos que já são servidores da unidade federativa. Na hipótese, a norma não assegura a seleção de candidatos mais experientes. Ao contrário, possibilita que um candidato mais experiente, proveniente da administração pública federal, municipal ou, ainda, da iniciativa privada, seja preterido em prol de um servidor estadual com pouco tempo de serviço, desde que pertença aos quadros da unidade federativa. A medida, portanto, é inadequada para a seleção do candidato mais experiente, viola a igualdade e a impessoalidade e não atende ao interesse público, favorecendo injustificada e desproporcionalmente os servidores estaduais. O art. 37, I e II, da CF (2) assegura ampla acessibilidade aos cargos e empregos públicos a todos os brasileiros que preencham os requisitos legais, por meio de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, realizado de acordo com a natureza e complexidade do cargo ou emprego, ressalvada a hipótese de nomeação para cargo em comissão de livre nomeação e exoneração. A regra de acessibilidade a cargos e empregos públicos prevista no dispositivo visa conferir efetividade aos princípios constitucionais da isonomia e da impessoalidade, de modo que a imposição legal de critérios de distinção entre os candidatos é admitida tão somente quando acompanhada da devida justificativa em razões de interesse público e/ou em decorrência da natureza e das atribuições do cargo ou emprego a ser preenchido. No ponto, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que é inconstitucional o ato normativo que estabelece critérios de discriminação entre os candidatos de forma arbitrária ou desproporcional (3). Com esses fundamentos, o Plenário, por maioria, confirmou a medida cautelar e, convertendo o feito em análise de mérito, julgou procedente o pedido formulado, para declarar a inconstitucionalidade do art. 10, §§ 1º e 2º, da Lei 5.810/1994 (4) do estado do Pará, o qual estabelecia preferência, na ordem de classificação de concursos públicos, em favor de candidato já pertencente ao serviço público estadual paraense. Vencido o ministro Marco Aurélio, que julgou o pedido improcedente. (1) CF: “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.” (2) CF: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;” (3) Precedente citado: ADI 3580, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 3.8.2015. (4) Lei 5.810/1994 do Estado do Pará: “Art. 10. A aprovação em concurso público gera o direito à nomeação, respeitada a ordem de classificação dos candidatos habilitados. § 1º Terá preferência para a ordem de classificação o candidato já pertencente ao serviço público estadual e, persistindo a igualdade, aquele que contar com maior tempo de serviço público ao Estado. § 2º Se ocorrer empate de candidatos não pertencentes ao serviço público do Estado, decidir-se-á em favor do mais idoso.”
É inconstitucional lei que equipara, vincula ou referencia espécies remuneratórias devidas a cargos e carreiras distintos, especialmente quando pretendida a vinculação ou a equiparação entre servidores de Poderes e níveis federativos diferentes. A norma impugnada, especialmente em seu § 1º, permite interpretação no sentido de que o subsídio da carreira de procurador legislativo da assembleia legislativa estadual estaria atrelado, por um mecanismo de vinculação automática, aos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Há evidente inconstitucionalidade, por ofensa ao art. 37, X e XIII, da CF (1). A vedação cabal à vinculação e à equiparação de vencimentos, consagrada constitucionalmente, alcança quaisquer espécies remuneratórias. Salienta-se que, em recente julgado (2), o STF rechaçou a hipótese de reajuste automático pela vinculação de remuneração entre carreiras distintas. Além disso, a vinculação de vencimentos de agentes públicos das esferas federal e estadual caracteriza afronta a autonomia federativa do estado-membro, que detém a iniciativa de lei para dispor sobre a concessão de eventual reajuste dos subsídios dos aludidos procuradores. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade em face do art. 1º, §§ 1º a 4º, da Lei 10.276/2015 do estado de Mato Grosso (3), que dispõe sobre a remuneração dos procuradores legislativos da Assembleia Legislativa daquela unidade da Federação. O Plenário não conheceu do pedido formulado quanto ao § 3º do art. 1º da Lei 10.276/2015 do estado de Mato Grosso, porque constatado o exaurimento de sua eficácia ao tempo do ajuizamento da ação. Na parte conhecida, julgou parcialmente procedente a pretensão deduzida para declarar a inconstitucionalidade dos §§ 1º, 2º e 4º do art. 1º da referida lei, mantido o caput do artigo, uma vez que apenas prevê a remuneração por subsídio. (1) CF: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; (...) XIII – é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público;” (2) ADI 4898/AP, rel. min. Cármen Lúcia, DJe de 21.10.2019. (3) Lei 10.276/2015 do estado de Mato Grosso: “Art. 1º Os cargos de provimento efetivo da carreira de Procurador Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso serão remunerados por subsídio, nos termos desta lei. § 1º O subsídio do grau máximo da carreira de Procurador Legislativo da Assembleia Legislativa corresponderá a 90,25% (noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento) da remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, nos termos da parte final do inciso XI do Art. 37 da Constituição da República e do § 3º do Art. 45-A da Constituição do Estado de Mato Grosso, escalonados conforme as respectivas classes, sendo a diferença entre uma e outra de 5% (cinco por cento). § 2º A implementação financeira do disposto no parágrafo anterior ocorrerá no mês de outubro de 2016. § 3º Até a concretização do disposto no § 1º, os efeitos financeiros serão graduados da seguinte forma: I – no mês de maio de 2015, o subsídio dos Procuradores Legislativos de 1ª Classe corresponderá a 75% (setenta e cinco por cento) do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; II – no mês de maio de 2015, o subsídio dos Procuradores Legislativos de 2ª Classe corresponderá a 55% (cinquenta e cinco por cento) do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; III – no mês de maio de 2015, o subsídio dos Procuradores Legislativos de 3ª Classe corresponderá a 40% (quarenta por cento) do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; IV – no mês de janeiro de 2016, o subsídio dos Procuradores Legislativos de 1ª Classe corresponderá a 85% (oitenta e cinco por cento) do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; V – no mês de janeiro de 2016, o subsídio dos Procuradores Legislativos de 2ª Classe corresponderá a 70% (setenta por cento) do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; VI – no mês de janeiro de 2016, o subsídio dos Procuradores Legislativos de 3ª Classe corresponderá a 60% (sessenta por cento) do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. § 4º Os subsídios fixados na forma do § 1º são concedidos integralmente por intermédio da presente lei, ocorrendo apenas o diferimento dos efeitos financeiros na forma disposta no § 3º.”
É constitucional norma estadual que disponha sobre a obrigação de as operadoras de telefonia móvel e fixa disponibilizarem, em portal da “internet”, extrato detalhado das chamadas telefônicas e serviços utilizados na modalidade de planos “pré-pagos”. A lei estadual não adentrou a competência privativa da União para legislar sobre telecomunicação. Ao obrigar que fornecedores de serviço de telefonia fixa e móvel demonstrem para os consumidores a verdadeira correspondência entre os serviços utilizados e os respectivos valores cobrados, a norma não tratou diretamente de legislar sobre telecomunicações. Isso porque o fato de disponibilizar o extrato da conta de plano “pré-pago” detalhado na “internet” não diz respeito à matéria específica de contratos de telecomunicações, tendo em vista que tal serviço não se enquadra em nenhuma atividade de telecomunicações definida pelo art. 4º da Lei 4.117/1962 (1) e nem pelo art. 60 da Lei 9.472/1997 (2). A matéria tratada na lei é de direito consumerista, pois buscou dar uma maior proteção ao direito à informação do consumidor e torná-lo mais efetivo, permitindo um maior controle dos serviços contratados. Assim, diante da caracterização de hipótese de competência legislativa concorrente, deve o intérprete priorizar o fortalecimento das autonomias locais e o respeito às diversidades, consagrando o imprescindível equilíbrio federativo. Aplicáveis, ao caso, os mesmos fundamentos adotados nos julgamentos das ADI 1.980/DF (3) e ADI 2.832/PR (4) de maneira a reconhecer a competência dos estados-membros para dispor sobre o direito de informação dos consumidores, no exercício de sua competência concorrente. Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado na ação direta ajuizada em face da Lei 6.886/2016 do estado do Piauí. (1) Lei 4.117/1962: “Art. 4º Para os efeitos desta lei, constituem serviços de telecomunicações a transmissão, emissão ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por fio, rádio, eletricidade, meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético. Telegrafia é o processo de telecomunicação destinado à transmissão de escritos, pelo uso de um código de sinais. Telefonia é o processo de telecomunicação destinado à transmissão da palavra falada ou de sons”. (2) Lei 9.472/1997: “Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação. § 1° Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza”. (3) ADI 1.980/DF, rel. Min. Cezar Peluso, DJe de 7.8.2009. (4) ADI 2.832/PR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 20.6.2008.
Nos termos do artigo 5º, VIII (1), da Constituição Federal é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários distintos dos previstos em edital, por candidato que invoca escusa de consciência por motivo de crença religiosa, desde que presentes a razoabilidade da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada (Tema 386). É possível a fixação de obrigações alternativas a candidatos em concursos públicos e a servidores em estágio probatório, que se escusem de cumprir as obrigações legais originalmente fixadas por motivos de crença religiosa, desde que presentes a razoabilidade da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada. A fixação de obrigações alternativas para a realização de certame público ou para aprovação em estágio probatório, em razão de convicções religiosas, não significa privilégio, mas sim permissão ao exercício da liberdade de crença sem indevida interferência estatal nos cultos e nos ritos [CF, art. 5º, VI (2)]. O fato de o Estado ser laico [CF, art. 19, I (3)] não lhe impõe uma conduta negativa diante da proteção religiosa. A separação entre o Estado brasileiro e a religião não é absoluta. O Estado deve proteger a diversidade em sua mais ampla dimensão, dentre as quais se inclua a liberdade religiosa e o direito de culto. Nesse sentido, o papel da autoridade estatal não é o de remover a tensão por meio da exclusão ou limitação do pluralismo, mas sim assegurar que os grupos se tolerem mutuamente, principalmente quando em jogo interesses individuais ou coletivos de um grupo minoritário. A separação entre religião e Estado, portanto, não pode implicar o isolamento daqueles que guardam uma religião à sua esfera privada. O princípio da laicidade não se confunde com laicismo. O princípio da laicidade, em verdade, veda que o Estado assuma como válida apenas uma crença religiosa. Nessa medida, ninguém deve ser privado de seus direitos em razão de sua crença ou descrença religiosa, salvo se a invocar para se eximir de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa (CF, art. 5º, VIII). No caso, trata-se de dois temas de repercussão geral, apregoados em conjunto e que se referem às relações entre Estado e religião. No RE 611.874 (Tema 386 da repercussão geral), discute-se a possibilidade de realização de etapas de concurso em datas e locais diferentes dos previstos em edital por motivo de crença religiosa do candidato. Já no ARE 1.099.099 (Tema 1.021 da repercussão geral), discute-se o dever, ou não, de o administrador público disponibilizar obrigação alternativa para servidora, em estágio probatório, cumprir deveres funcionais, a que está impossibilitada em virtude de sua crença religiosa. Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, ao apreciar o RE 611.874 (Tema 386 da repercussão geral), negou provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do min. Edson Fachin, redator para o acórdão. Na mesma sessão de julgamento, ao julgar o ARE 1.099.099 (Tema 1.021 da repercussão geral), o Plenário, por maioria, deu provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do relator. (1) CF: “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;” (2) CF: “Art. 5º. (...) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;” (3) CF: “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”
É inconstitucional norma estadual que autoriza a suspensão, pelo prazo de 120 dias, do cumprimento de obrigações financeiras referentes a empréstimos realizados e empréstimos consignados. Isso porque a lei estadual, ao interferir em relações obrigacionais estabelecidas entre instituições de crédito e tomadores de empréstimos, adentrou a competência privativa da União, prevista no art. 22, I, da Constituição Federal (CF), para legislar sobre Direito Civil, além de ofender a competência privativa da União, prevista no art. 22, VII, da CF, para legislar sobre política de crédito. No sistema federativo equilibrado, não podem coexistir, em princípio, normas editadas em distintos níveis político-administrativos, que disciplinem matérias semelhantes, sob pena de gerar assimetria e desequilíbrio. Aplicáveis, ao caso, os mesmos fundamentos adotados nos julgamentos das ADIs 6.475 MC-Ref/MA (1) e 6.484/RN (2), de maneira a assentar que o estado do Rio de Janeiro não poderia substituir-se à União para determinar a suspensão do cumprimento de obrigações financeiras, ainda que mediante lei estadual e em período tão gravoso, como o do atual surto do novo coronavírus, que atinge a todos indiscriminadamente. Com base nesse entendimento, o Plenário julgou procedente a ação direta para declarar a inconstitucionalidade da Lei 8.842/2020 e, por arrastamento, do Decreto 47.173/2020, ambos do estado do Rio de Janeiro. (1) ADI 6475 MC-Ref/MA, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 9/11/2020. (2) ADI 6484/RN, rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 19/10/2020.
Os limites da despesa total com pessoal e as vedações à concessão de vantagens, reajustes e aumentos remuneratórios previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) somente podem ser afastados quando a despesa for de caráter temporário, com vigência e efeitos restritos à duração da calamidade pública, e com propósito exclusivo de enfrentar tal calamidade e suas consequências sociais e econômicas. Como medida de combate aos efeitos negativos decorrentes da pandemia de COVID-19, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional (EC) 106/2020 que instituiu o “regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia”. Nessa EC, há a previsão de uma autorização destinada a todos os entes federativos (União, estados, Distrito Federal e municípios) para a flexibilização das limitações legais relativas às ações governamentais que, não implicando despesas permanentes, acarretem aumento de despesa. Como se constata da leitura do art. 3º da EC 106/2020 (1), os pressupostos para que determinada despesa esteja desobrigada das limitações fiscais ordinárias, entre as quais aquelas previstas no art. 22 da LRF (2), são a exclusividade (a despesa deve ter como único propósito o enfrentamento da calamidade pública e suas consequências sociais e econômicas) e a temporariedade (a despesa deve ser necessariamente transitória e com vigência restrita ao período da calamidade pública). Nesse contexto, medida que acarrete a execução de gastos públicos continuados, como a contratação e aumento remuneratório e concessão de vantagens a servidores da área da saúde, não encontra fundamento constitucional, nem mesmo no regime fiscal extraordinário estabelecido pela EC 106/2020. No caso, trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo governador do estado do Acre, mediante a qual requer seja conferida interpretação conforme a Constituição aos arts. 19, 20, 21, 22 e 23 da LRF, de modo a afastar as limitações de despesa com pessoal, contratação, aumento remuneratório e concessão de vantagens aos servidores da área da saúde. Com esse entendimento, o Plenário conheceu parcialmente da ação e, na parte conhecida, julgou improcedente o pedido. (1) EC 106/2020: “Art. 3º. Desde que não impliquem despesa permanente, as proposições legislativas e os atos do Poder Executivo com propósito exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências sociais e econômicas, com vigência e efeitos restritos à sua duração, ficam dispensados da observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa e à concessão ou à ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorre renúncia de receita. Parágrafo único. Durante a vigência da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, não se aplica o disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal.” (2) LRF: “Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre. Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso: I – concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição; II – criação de cargo, emprego ou função; III – alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa; IV – provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação, saúde e segurança; V – contratação de hora extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6o do art. 57 da Constituição e as situações previstas na lei de diretrizes orçamentárias.”
É inconstitucional a determinação de afastamento automático de servidor público indiciado em inquérito policial instaurado para apuração de crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. O afastamento do servidor, em caso de necessidade para a investigação ou instrução processual, somente se justifica quando demonstrado nos autos o risco da continuidade do desempenho de suas funções e a medida ser eficaz e proporcional à tutela da investigação e da própria Administração Pública, circunstâncias a serem apreciadas pelo Poder Judiciário. Reputa-se violado o princípio da proporcionalidade quando não se observar a necessidade concreta da norma para tutelar o bem jurídico a que se destina, já que o afastamento do servidor pode ocorrer a partir de representação da autoridade policial ou do Ministério Público, na forma de medida cautelar diversa da prisão, conforme os arts. 282, § 2º, e 319, VI, ambos do Código de Processo Penal (CPP) (1). Ademais, a presunção de inocência exige que a imposição de medidas coercitivas ou constritivas aos direitos dos acusados, no decorrer de inquérito ou processo penal, seja amparada em requisitos concretos que sustentam a fundamentação da decisão judicial impositiva, não se admitindo efeitos cautelares automáticos ou desprovidos de fundamentação idônea. Por fim, sendo o indiciamento ato dispensável para o ajuizamento de ação penal, a norma que determina o afastamento automático de servidores públicos, por força da opinio delicti da autoridade policial, quebra a isonomia entre acusados indiciados e não indiciados, ainda que denunciados nas mesmas circunstâncias. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra o art. 17-D da Lei 9.613/1998, com redação conferida pela Lei 12.683/2012 (2), que prevê o afastamento automático de servidor público em decorrência do indiciamento policial em inquérito instaurado para apurar crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Com base no entendimento exposto, o Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido formulado. Vencidos os ministros Edson Fachin (relator) e Cármen Lúcia e, em parte, o ministro Marco Aurélio. (1) CPP: “Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (...) § 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (...) Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: (...) VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;” (2) Lei 9.613/1998: “Art. 17-D. Em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno.”
Possui plausibilidade e verossimilhança a alegação de que constituição estadual não pode atribuir foro por prerrogativa de função a autoridades diversas daquelas arroladas na Constituição Federal (CF). As normas que estabelecem hipóteses de foro por prerrogativa de função são excepcionais e, como tais, devem ser interpretadas restritivamente (ADI 2.553) (1). A regra geral é que todos devem ser processados pelos mesmos órgãos jurisdicionais, em atenção ao princípio republicano (CF, art. 1º), ao princípio do juiz natural (CF, art. 5º, LIII) e ao princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput). Apenas excepcionalmente, e a fim de assegurar a independência e o livre exercício de alguns cargos, admite-se a fixação do foro privilegiado. O legislador constituinte não disciplinou a matéria apenas na esfera federal, mas determinou quais seriam as autoridades em âmbito estadual e municipal que seriam detentoras dessa prerrogativa. Fora dessas hipóteses, a Constituição estadual só pode conceder o foro privilegiado a autoridades do Poder Executivo estadual por simetria com o Poder Executivo federal. Ademais, há o risco de que processos criminais contra procuradores de estado e defensores públicos tramitem perante tribunais de justiça, o que pode suscitar discussões a respeito de eventual nulidade processual por ofensa às normas de definição de competência. Com base nesse entendimento, o Plenário referendou medidas cautelares deferidas em ações diretas de inconstitucionalidade, para confirmar a suspensão da eficácia das expressões: 1) “e da Defensoria Pública”, constante do art. 161, I, a, da Constituição do estado do Pará; 2) “Defensor Público-Geral e da Defensoria Pública”, constantes do art. 87, IV, a e b, da Constituição do Estado de Rondônia; 3) “da Procuradoria Geral do Estado e da Defensoria Pública”, constante do art. 72, I, a, da Constituição do estado do Amazonas; e 4) “bem como os Procuradores de Estado e os Defensores Públicos”, constante do art. 133, IX, a, da Constituição do estado de Alagoas. (1) ADI 2553/MA, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 17.8.2020.
Nos termos do artigo 102, I, “r”, da Constituição Federal (CF) (1), é competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal (STF) processar e julgar, originariamente, todas as ações ajuizadas contra decisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) proferidas no exercício de suas competências constitucionais, respectivamente, previstas nos artigos 103-B, § 4º, e 130-A, § 2º, da CF (2). Compete ao STF processar e julgar originariamente ações propostas contra o CNJ e contra o CNMP no exercício de suas atividades-fim. A Constituição não discriminou quais ações contra o CNJ e contra o CNMP seriam da alçada do STF, do que se extrai ter procurado fixar atribuição mais ampla para a análise de tais demandas. Essa leitura é corroborada pelo fato de que, quando pretendeu restringir a competência do Tribunal apenas às ações mandamentais, o constituinte o fez de forma expressa. O CNJ pode determinar à autoridade recalcitrante o cumprimento imediato de suas decisões, ainda que impugnadas perante a Justiça Federal de primeira instância, quando se tratar de hipótese de competência originária do STF. Compete ao STF processar e julgar originariamente ações propostas contra o CNJ e contra o CNMP no exercício de suas atividades-fim. A Constituição não discriminou quais ações contra o CNJ e contra o CNMP seriam da alçada do STF, do que se extrai ter procurado fixar atribuição mais ampla para a análise de tais demandas. Essa leitura é corroborada pelo fato de que, quando pretendeu restringir a competência do Tribunal apenas às ações mandamentais, o constituinte o fez de forma expressa. Porém, isso não significa que a Corte deva afirmar sua competência para conhecer toda e qualquer ação ordinária contra atos daqueles conselhos constitucionais. A regra de competência deve ser interpretada de acordo com os fins que justificaram sua edição. A competência se justifica sempre que indagados atos de cunho finalístico, concernentes aos objetivos precípuos de sua criação, a fim de que a posição e a proteção institucionais conferidas ao Conselho não sejam indevidamente desfiguradas. A outorga da atribuição ao Supremo para processar e julgar ações contra os Conselhos é mecanismo constitucional delineado pelo legislador com o objetivo de proteger e viabilizar a atuação desses órgãos de controle. A realização da missão constitucional ficaria impossibilitada ou seriamente comprometida se os atos por eles praticados estivessem sujeitos ao crivo de juízos de primeira instância. Não raramente, a atuação do CNJ recai sobre questões locais delicadas e que mobilizam diversos interesses. O distanciamento das instâncias de controle jurisdicional é elemento essencial para o desempenho apropriado das funções. Ademais, o órgão de controle atua em questões de abrangência nacional que demandam tratamento uniforme e ação coordenada. Por essa razão, não poderiam ser adequadamente enfrentadas por juízos difusos. A submissão de atos do CNJ à análise de órgãos jurisdicionais distintos do STF representaria a subordinação da atividade da instância fiscalizadora aos órgãos e agentes públicos por ele fiscalizados, o que subverte o sistema de controle proposto constitucionalmente. Deve ser mantida a higidez do sistema e preservada a hierarquia e a autoridade do órgão de controle. O CNJ pode determinar à autoridade recalcitrante o cumprimento imediato de suas decisões, ainda que impugnadas perante a Justiça Federal de primeira instância, quando se tratar de hipótese de competência originária do STF. A previsão do art. 106 do Regimento Interno do CNJ (RICNJ) (3) decorre do exercício legítimo de poder normativo atribuído constitucionalmente ao órgão formulador da política judiciária nacional. A aludida norma nada mais faz do que explicitar o alcance do art. 102, I, r, da CF, impedindo que decisões proferidas ao arrepio das regras constitucionais de competência — portanto, flagrantemente nulas — comprometam o bom desempenho das atribuições do CNJ. Permitir que decisões administrativas do CNJ sejam afastadas liminarmente por órgãos absolutamente incompetentes implicaria, indiretamente, a inviabilização do exercício de suas competências constitucionais. Na espécie, cuida-se de exame conjunto de feitos relativos ao CNJ e ao CNMP. Na assentada, houve alteração da jurisprudência do STF. Em suma, nos autos autuados como petição, trata-se de ação ordinária que visa à desconstituição de decisão do CNJ na qual declarada a vacância de serventia de registro de imóveis provida sem concurso público. O agravo foi interposto de pronunciamento em que ministro do STF declinou da competência. No caso da reclamação, o ato decisório recorrido afirmou a inexistência de usurpação de competência do STF para apreciar ação ordinária na qual pretendida a declaração de nulidade de sanção disciplinar aplicada, pelo CNMP, a membro do Parquet. Já a ação direta de inconstitucionalidade foi deduzida em face do art. 106 do RICNJ. Em conclusão de julgamento conjunto, o Plenário, por maioria, deu provimento ao agravo regimental em petição e reconheceu a competência do STF para processar e julgar a causa. Igualmente em votação majoritária, deu provimento ao agravo em reclamação, assentando que compete ao STF processar e julgar ação ajuizada em face da União para discutir ato praticado pelo CNMP a envolver processo disciplinar. Do mesmo modo, julgou improcedente o pedido formulado na ação direta, declarando a constitucionalidade do art. 106 do Regimento Interno do CNJ, na redação dada pela Emenda Regimental 1/2010. Por consequência, confirmou a medida cautelar anteriormente concedida, determinando a remessa imediata ao STF de todas as ações ordinárias em trâmite na justiça federal que impugnem atos do CNJ praticados no âmbito de suas competências constitucionais estabelecidas no art. 103-B, § 4º, da CF. Em todos os feitos, ficaram vencidos a ministra Rosa Weber (relatora da reclamação) e o ministro Marco Aurélio. Vencidos também o ministro Edson Fachin na reclamação e o ministro Nunes Marques na ação do controle concentrado de constitucionalidade. (1) CF: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: (...) r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público;” (2) CF: “Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo: (...) § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; VI – elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa. (...) Art. 130-A. O Conselho Nacional do Ministério Público compõe-se de quatorze membros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para um mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo: (...) § 2º Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo lhe: I – zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência dos Tribunais de Contas; III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Ministério Público da União ou dos Estados, inclusive contra seus serviços auxiliares, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IV – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de membros do Ministério Público da União ou dos Estados julgados há menos de um ano; V – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias sobre a situação do Ministério Público no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar a mensagem prevista no art. 84, XI.” (3) RICNJ: “Art. 106. O CNJ determinará à autoridade recalcitrante, sob as cominações do disposto no artigo anterior, o imediato cumprimento de decisão ou ato seu, quando impugnado perante outro juízo que não o Supremo Tribunal Federal.”