Este julgado integra o
Informativo STJ nº 856
Tese Jurídica
O reconhecimento de pessoas, fotográfico ou presencial, exige cumprimento do art. 226 do CPP, sob pena de invalidade. Deve haver alinhamento com pessoas semelhantes, sendo a discrepância relevante prejudicial à prova. Trata-se de prova irrepetível, pois vícios iniciais contaminam novos reconhecimentos. A autoria pode ser comprovada por provas independentes, e o reconhecimento válido deve ser compatível com o conjunto probatório. O procedimento formal é dispensável quando a pessoa já era previamente conhecida pelo reconhecedor.
Comentário Damásio
Resumo
Cinge-se a controvérsia a saber se a determinação contida no art. 226 do Código de Processo Penal, constitui norma de observância obrigatória sob pena de nulidade e qual o seu alcance. Sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vinha entendendo que a eventual inobservância das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal para o reconhecimento não corresponderia a causa de nulidade, uma vez que não se trata de exigências, mas de meras recomendações a serem observadas na implementação da medida. Rompendo com a posição jurisprudencial majoritária até então, a Sexta Turma do STJ, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC, julgado em 27/10/2020, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, propôs nova interpretação do art. 226 do CPP, segundo a qual a inobservância do procedimento descrito no mencionado dispositivo legal torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo. No mesmo sentido, em recente julgado, a Quinta Turma do STJ, à unanimidade, reconheceu que, "Não obstante a relevância da palavra da vítima, em especial em crimes sexuais, não é possível manter a condenação do paciente com fundamento em reconhecimentos viciados, convalidados pela existência de outros reconhecimentos realizados com os mesmos vícios, e desconstituídos por meio de prova pericial que não identificou o perfil genético do paciente nos materiais coletados das vítimas" (PExt no HC n. 870.636/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 14/5/2024, DJe de 20/5/2024. A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, de maneira consistente, vem entendendo que "O reconhecimento fotográfico realizado sem a observância das formalidades do art. 226 do CPP não constitui prova válida para sustentar a autoria delitiva, especialmente quando realizado de forma isolada e sem acompanhamento de outras provas robustas" (HC 245.814 AgR, Relator: Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 27/11/2024, 5/12/2024). De outro lado, há julgados recentes da Primeira Turma admitindo a ratificação, em juízo, de reconhecimento fotográfico falho, desde que valorado com o restante do conjunto probatório. Diante da divergência, mais recentemente, o plenário do STF afetou o ARE 1.467.470/RG, para julgamento no rito de repercussão geral (Tema 1.380), cuja controvérsia discute se o reconhecimento de pessoa realizado em desconformidade com o art. 226 do Código de Processo Penal é inválido por afronta às garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da vedação às provas ilícitas. No estudo do tema, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 484, de 19/12/2022, que "estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário". A resolução é resultado do trabalho do grupo criado pelo CNJ em 2021, e que produziu, em 2024, um Manual de Procedimentos de Reconhecimento de Pessoas conforme a Resolução CNJ n. 484/2022, que se debruça, detalhadamente, tanto sobre dados indicativos de erros no reconhecimento de pessoas no Brasil e no mundo quanto sobre os processos e variáveis que afetam a memória humana identificados em estudos especializados sobre o tema. A partir dos aprofundados estudos realizados pelo grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça ou aqueles já mencionados no leading case da Sexta Turma do STJ, pode-se concluir que a rigorosa observância do art. 226 do CPP não é mero formalismo estéril; pelo contrário, possui fundamentação técnico-científica sólida e respaldo em políticas legais de redução de erros. Nesse cenário, a observância obrigatória das disposições postas no art. 226 do CPP se coaduna com uma compreensão do processo penal de matiz garantista voltada para a busca da verdade real de forma mais segura e precisa. Funciona como uma garantia procedimental alinhada com os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal. Sob o ângulo técnico-científico, a formalidade do art. 226 se justifica como um meio de controle de qualidade da prova testemunhal. É uma resposta normativa às vulnerabilidades inerentes da memória humana. A falta de cumprimento dessas cautelas aumenta exponencialmente a chance de identificação equivocada, podendo levar um inocente à prisão - resultado diametralmente oposto à finalidade do processo penal. Ademais, um ponto científico crucial apontado pela Sexta Turma do STJ é a irrepetibilidade cognitiva do reconhecimento. Diferentemente de certas provas (v.g., perícias) que podem ser refeitas, o ato de reconhecimento não pode ser simplesmente reproduzido depois sem o risco de viés, porque a primeira exposição do suspeito à testemunha altera a memória desta. Estudos mostram que, após um reconhecimento, a testemunha pode incorporar a imagem do suspeito em sua memória como sendo a do autor - mesmo que estivesse incerta antes -, fenômeno conhecido como "efeito do reforço da confiança". Assim, se a primeira identificação foi errônea ou conduzida de forma inadequada, todas as subsequentes estarão comprometidas. Esse é o fundamento científico da regra jurisprudencial que veda convalidação posterior: a contaminação da memória é irreversível, motivo pelo qual a única forma de garantir justiça é prevenir o erro na origem, seguindo o procedimento adequado. Quanto aos efeitos processuais e probatórios da inobservância do art. 226 do CPP, o reconhecimento fotográfico e/ou pessoal irregular é prova inválida, devendo ser desconsiderada pelo julgador, na formação de seu convencimento. Assim, mesmo diante de posterior ratificação em juízo, com a observância dos ditames do art. 226 do CPP, o reconhecimento inicialmente viciado tem o potencial de macular a percepção futura do identificador, pelo que esvazia o seu grau de certeza. E, mais recentemente, a Quinta Turma do STJ, no AgRg no HC 819.550/SP, publicado em 6/11/2024, corroborando a tese, afirmou que "A nulidade do reconhecimento inicial contamina os subsequentes, conforme entendimento consolidado por esta Corte, especialmente quando não há outras provas independentes que confirmem a autoria delitiva". Por outro lado, se vítima e/ou testemunha já conheciam previamente o suspeito de cometimento do delito e são capazes de identificá-lo, o reconhecimento pessoal é desnecessário. No que concerne à possibilidade de decretação de prisão preventiva, recebimento de denúncia e pronúncia com base em reconhecimento fotográfico e/ou pessoal efetuado em descompasso com o art. 226 do CPP, há precedentes da Quinta e da Sexta Turma afirmando que "A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, satisfazendo-se, tão somente, pelo exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não demandando juízo de certeza necessário à sentença condenatória", bem como que "O reconhecimento fotográfico, ainda que questionável, é considerado indício mínimo de autoria para justificar a prisão cautelar". No entanto, diante das ponderações trazidas tanto pelo julgado da Sexta Turma do STJ no HC 712.781/RJ quanto no precedente da Segunda Turma do STF no RHC 206.486/SP, tem-se que, com efeito, o reconhecimento (fotográfico e/ou pessoal) comprovadamente efetuado em descompasso com as diretivas do art. 226 do CPP não é apto, de forma isolada e por si só, a consubstanciar indício suficiente de autoria para lastrear decretação de prisão preventiva, recebimento de denúncia ou pronúncia. Quanto à sentença condenatória, o reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, somente se presta a identificar o réu e a consubstanciar evidência da autoria delitiva se observadas as formalidades previstas no art. 226 do CPP e após sua submissão ao crivo do contraditório e da ampla defesa, na fase judicial. Ademais, diante das várias nuances capazes de afetar a memória humana, é de todo conveniente que mesmo o reconhecimento efetuado com observância aos preceitos do art. 226 do CPP seja confrontado com as demais evidências existentes nos autos, de modo a atenuar a fragilidade epistêmica que caracteriza a prova produzida por meio do reconhecimento pessoal. Cumpre ressalvar, contudo, que "É possível que o julgador, destinatário das provas, convença-se da autoria delitiva a partir de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato do reconhecimento pessoal falho, porquanto, sem prejuízo da nova orientação, não se pode olvidar que vigora no sistema probatório brasileiro o princípio do livre convencimento motivado, desde que existam provas produzidas em contraditório judicial" (AREsp 2.852.641/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 1/4/2025, DJEN 10/4/2025).
Conteúdo Completo
O reconhecimento de pessoas, fotográfico ou presencial, exige cumprimento do art. 226 do CPP, sob pena de invalidade. Deve haver alinhamento com pessoas semelhantes, sendo a discrepância relevante prejudicial à prova. Trata-se de prova irrepetível, pois vícios iniciais contaminam novos reconhecimentos. A autoria pode ser comprovada por provas independentes, e o reconhecimento válido deve ser compatível com o conjunto probatório. O procedimento formal é dispensável quando a pessoa já era previamente conhecida pelo reconhecedor.
Informações Gerais
Número do Processo
REsp 1.953.602-SP
Tribunal
STJ
Data de Julgamento
11/06/2025