Este julgado integra o
Informativo STF nº 725
O Plenário, por maioria, proveu em parte embargos de declaração opostos de decisão proferida em sede de ação popular (Pet 3388/RR, DJe de 1º.7.2010), na qual julgara-se parcialmente procedente o pedido formulado para, observadas algumas condições, declarar a validade da Portaria 534, de 13.4.2005, do Ministro de Estado da Justiça, que demarcou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e do Decreto Presidencial de 15.4.2005, que a homologou. Sustentava-se que o acórdão seria contraditório, na medida em que daria natureza mandamental a decisão declaratória proferida em sede de ação popular. Além disso, alegava-se que o Estado de Roraima não teria sido citado para integrar a lide como litisconsorte do autor, embora a competência da Corte para julgar a ação popular resultasse da existência de conflito federativo. Suscitavam-se, também, as seguintes questões: a) se pessoas miscigenadas poderiam permanecer na reserva; b) se pessoas que vivem maritalmente com índios poderiam permanecer na reserva; c) se autoridades religiosas de denominações não indígenas poderiam continuar a exercer suas atividades na reserva; d) se templos religiosos já construídos deveriam ser destruídos; e) se escolas públicas estatuais e municipais poderiam continuar em funcionamento; f) se, em caso positivo, poderiam continuar a lecionar conteúdo voltado à população não indígena; g) se a passagem de não índios pela única rodovia federal a ligar Boa Vista a Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, teria sido negada ou assegurada, no todo ou em parte, ou se dependeria de autorização; h) se o mesmo ocorreria quanto à rodovia que liga Normandia a Pacaraima; i) a quem caberia autorizar a passagem por essas rodovias; j) qual seria a situação das ações individuais que questionam a boa-fé dos portadores de títulos de propriedade, se estariam automaticamente extintas ou se seriam julgadas individualmente; e k) como se procederia a posse das fazendas desocupadas. No tocante à ausência de citação do Estado de Roraima, desproveram-se os embargos. Lembrou-se que, após encerrada a instrução, esse Estado-membro teria pleiteado ingresso como litisconsorte ativo, e o STF teria rejeitado o pedido, para admitir o ente federativo somente como assistente simples, a fim de ingressar no processo na situação em que se encontrava. Quanto à natureza da decisão proferida em ação popular, desproveu-se o recurso. Registrou-se que não seria mais aceito em caráter absoluto entendimento segundo o qual apenas sentenças condenatórias seriam suscetíveis de execução. Essa percepção teria sido reforçada após a alteração do CPC, que suprimira a referência a sentença condenatória proferida em processo civil. Sobreviera o art. 475-N, cujo inciso I identificaria como título executivo a sentença proferida no processo civil que reconhecesse a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia. Assentou-se que esse dispositivo aplicar-se-ia à sentença que, ao julgar improcedente, parcial ou totalmente, o pedido de declaração de inexistência de relação jurídica obrigacional, reconhecesse a existência de obrigação do demandante para com o demandado. No caso, apontou-se que o STF teria declarado a validade da Portaria 534, de 13.4.2005, do Ministro de Estado da Justiça, que estabelecera a demarcação, bem como as condições em que seria implementada. Assim, o objeto executado na decisão da Corte seria o decreto presidencial que homologara essa portaria. Ademais, destacou-se que simples declaração judicial não teria o condão de fazer cessar, de forma imediata, toda e qualquer oposição indevida aos direitos reconhecidos no processo. Concluiu-se que o STF optara por dar execução própria a essa decisão, de modo a concretizar a portaria do Poder Executivo. No que se refere às demais questões formuladas nos embargos, assinalou-se que pessoas miscigenadas, ou que vivessem maritalmente com índios, poderiam permanecer na área. Explicou-se que a CF/88 teria caráter pluralista e inclusivo, de maneira que o critério adotado pelo acórdão do STF não seria genético, mas sociocultural. Desse modo, poderiam permanecer na área demarcada e valer-se de seu usufruto todos que integrassem as comunidades indígenas locais. Importaria, para esse fim, a comunhão com o modo de vida tradicional dos índios da região. Reputou-se que a indagação acerca da presença de autoridades religiosas ou de templos de denominações não indígenas não teria sido debatida no acórdão de forma específica, mas reforçou-se que o objetivo da Constituição seria resguardar, para os índios, um espaço exclusivo onde pudessem viver a própria cultura e religiosidade. Esse direito, entretanto, não exigiria a ausência de contato com pessoas de fora desse espaço, como os não indígenas. Ressalvou-se, por outro lado, que não seria legítima a presença de indivíduos que tivessem como propósito interferir sobre a religião dos índios. Sublinhou-se, ainda, que a Constituição não teria por objetivo impedir os índios de fazer suas próprias escolhas, como se devessem permanecer em isolamento incondicional. Concluiu-se que, nos termos do acórdão, seria aplicável à questão religiosa a mesma lógica aplicada quanto ao usufruto das riquezas do solo, que seria conciliável com a eventual presença de não índios, desde que tudo ocorresse sob a liderança institucional da União. Asseverou-se caber às comunidades indígenas o direito de decidir se, como, e em quais circunstâncias seria admissível a presença dos missionários e seus templos. Não se trataria de ouvir a opinião dos índios, mas de dar a ela o caráter definitivo que qualquer escolha existencial mereceria. No tocante às escolas públicas, explicitou-se que o acórdão teria sido expresso ao dizer que as entidades federadas deveriam continuar a prestar serviços públicos nas terras indígenas, desde que sob a liderança da União (CF, art. 22, XIV). Assim, seria necessária a presença de escolas públicas na área, desde que respeitadas as normas federais sobre a educação dos índios, inclusive quanto ao currículo escolar e o conteúdo programático. No que se refere à passagem de não índios pelas rodovias citadas, lembrou-se que o acórdão estabelecera esse direito de passagem, visto que os índios não exerceriam poder de polícia, sequer poderiam obstar a passagem de outros pelas vias públicas que cruzassem a área demarcada. Quanto às ações individuais que questionam a boa-fé dos portadores de títulos de propriedade, proveu-se o recurso para explicitar que ao STF não teriam sido submetidos outros processos a respeito de questões individuais relacionadas à área. Assentou-se que, uma vez transitada em julgado a sentença de mérito proferida em ação popular, nos termos do art. 18 da Lei 4.717/65 (“Art. 18. A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível ‘erga omnes’, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”), todos os processos relacionados a essa terra indígena deveriam adotar as seguintes premissas: a) a validade da portaria do Ministério da Justiça e do decreto presidencial, observadas as condições estabelecidas no acórdão; e b) a caracterização da área como terra indígena, para os fins dos artigos 20, XI, e 231 da CF. Disso resultaria a inviabilidade de pretensões possessórias ou dominiais de particulares, salvo no tocante a benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé. Por fim, quanto à posse das fazendas desocupadas, desproveu-se o recurso. Frisou-se que o tema não teria sido objeto de decisão no acórdão, mas eventuais disputas do tipo deveriam ser resolvidas pelas comunidades interessadas, com a participação da Funai e da União, sem prejuízo da intervenção do Ministério Público e do Judiciário. Vencido, em parte, o Ministro Marco Aurélio, que, considerados os esclarecimentos prestados pelo Plenário quanto a essas questões, provia os embargos em maior extensão. Em seguida, o Plenário, por maioria, proveu parcialmente embargos declaratórios nos quais impugnadas as condições incorporadas ao dispositivo do acórdão recorrido. Alegava-se que não caberia ao STF traçar parâmetros abstratos de conduta, que sequer teriam sido objeto de discussão na lide. Sustentava-se que condições definidas em caráter geral e abstrato só poderiam ser impostas, a partir de casos concretos, por meio de súmula vinculante, inviável na hipótese porque inexistiriam reiteradas decisões da Corte sobre o tema. A Corte afirmou que as citadas condições seriam pressupostos para o reconhecimento da demarcação válida. Dessa forma, se o fundamento para se reconhecer a validade da demarcação é o sistema constitucional, seria o caso de não apenas explicitar o resultado, mas também as diretrizes que confeririam substância ao usufruto indígena e o compatibilizariam com outros elementos protegidos pela Constituição. Ponderou-se que seria impossível resolver o conflito fundiário apresentado sem enunciar os aspectos básicos do regime jurídico aplicável à área demarcada. Nesse sentido, as condições integrariam o objeto da decisão e fariam coisa julgada material. Portanto, a incidência das referidas diretrizes na reserva em comento não poderia ser objeto de questionamento em outros processos. Ressalvou-se, porém, que isso não significaria transformação da coisa julgada em ato normativo geral e abstrato, vinculante para outros processos que discutissem matéria similar. Assim, a decisão proferida na ação popular não vincularia juízes e tribunais quanto ao exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas. Entretanto, uma vez pronunciado o entendimento da Corte sobre o tema, a partir da interpretação do sistema constitucional, seria natural que esse pronunciamento servisse de diretriz relevante para as autoridades estatais que viessem a enfrentar novamente as mesmas questões. Em suma, ainda que o acórdão embargado não tivesse efeitos vinculantes em sentido formal, ostentaria a força de decisão da mais alta Corte do País, do que decorreria elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogitasse de superação das suas razões. A parte recorrente sustentava, ainda, que o STF teria dado primazia incondicionada a interesses da União, bem como à tutela do meio ambiente, em detrimento dos direitos indígenas. No ponto, o Tribunal observou que o acórdão teria sido expresso a respeito da orientação adotada, sem que se pudesse vislumbrar primazia incondicionada em favor de alguém. Explicou-se que se aplicariam aos índios, como a quaisquer outros brasileiros nas suas terras, os regimes de proteção ambiental e de segurança nacional. O acórdão embargado teria definido como seriam conciliadas, em princípio, as pretensões antagônicas existentes. Sublinhou-se que essa seria tarefa ordinária do legislador, mas, na ausência de disposições claras sobre essas questões, coubera à Corte discorrer sobre o sentido das exigências constitucionais na matéria, à luz do caso concreto. Destacou-se que essa ponderação em abstrato, feita pelo STF, não impediria que outros julgadores chegassem a conclusões específicas diversas, que poderiam ser questionadas pelas vias próprias. Alegava-se, também, que a utilização das terras indígenas pela União dependeria da prévia edição de lei complementar (CF, art. 231, § 6º). A respeito, o Tribunal asseverou que, de acordo com a interpretação conferida pelo acórdão, a reserva de lei complementar prevista nesse dispositivo não alcançaria toda e qualquer atuação da União nas terras indígenas. Em particular, o patrulhamento de fronteiras, a defesa nacional e a conservação ambiental nas áreas demarcadas não dependeriam da prévia promulgação da referida lei. Indagava-se, ademais, como se realizaria a participação das comunidades indígenas nas deliberações que afetassem seus interesses e direitos. A respeito, a Corte afirmou que a consulta aos indígenas seria elemento central da Convenção 169 da OIT, que integraria o direito pátrio e teria sido considerada no acórdão. Entretanto, frisou-se que esse direito de participação não seria absoluto. Assim, certos interesses também protegidos pela Constituição poderiam excepcionar ou limitar, sob certas condições, o procedimento de consulta prévia. No caso, lembrou-se que a decisão destacara que o direito de prévia consulta deveria ceder diante de questões estratégicas relacionadas à defesa nacional. Via de regra, o planejamento das operações militares não envolveria a necessidade de prévia consulta, mas, em relação a outros temas, ainda que estrategicamente relevantes, caberia às autoridades, e eventualmente ao Judiciário, utilizar-se da referida Convenção para ponderar os interesses em jogo. Salientou-se que a relevância da consulta às comunidades indígenas não significaria que as decisões dependessem formalmente da aceitação dessas comunidades como requisito de validade. A mesma lógica se aplicaria em matéria ambiental, de modo que não haveria problema no fato de que as tradições e costumes indígenas fossem considerados como apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental. Assim, a autoridade responsável pela administração das áreas de preservação não poderia decidir apenas com base nos interesses dos indígenas, e deveria levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio ambiente. Assinalou-se que, em qualquer caso, estaria garantido o acesso ao Judiciário para impugnar qualquer decisão da autoridade competente. Questionava-se, ainda, a vedação à ampliação das áreas demarcadas, nos termos do que decidido pelo Plenário. Primeiramente, o Tribunal esclareceu que o instrumento da demarcação, previsto no art. 231 da CF, não poderia ser empregado, em sede de revisão administrativa, para ampliar a terra indígena já reconhecida, sob pena de insegurança jurídica quanto ao espaço adjacente. Isso não impediria, entretanto, que a área sujeita a uso pelos índios fosse aumentada por outras vias previstas no direito. Nesse sentido, os índios e suas comunidades poderiam adquirir imóveis na forma da lei. Além disso, a União poderia obter o domínio de outras áreas, por meio de compra e venda, doação ou desapropriação. Em segundo lugar, a Corte explicitou que o acórdão não proibiria toda e qualquer revisão do ato de demarcação. Permitir-se-ia o controle judicial, e a limitação prevista no ato decisório alcançaria apenas o exercício da autotutela administrativa. Portanto, não haveria espaço para nenhum tipo de revisão fundada na conveniência e oportunidade do administrador. Isso não ocorreria, porém, nos casos de vício no processo de demarcação. Impor-se-ia o dever à Administração de anular suas decisões quando ilícitas, observado o prazo decadencial de 5 anos. Nesses casos, a anulação deveria ser precedida de procedimento administrativo idôneo. Ademais, como a nulidade configuraria vício de origem, fatos ou interesses supervenientes à demarcação não poderiam ensejar a cassação administrativa do ato. Em terceiro lugar, o Tribunal explicitou que seria vedado à União rever os atos de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ainda que no exercício de autotutela administrativa, considerado o fato de que sua correção formal e material teria sido atestada pela Corte. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, Presidente, que proviam os embargos quanto às condicionantes expostas na parte dispositiva do acórdão, visto que encerrariam normas abstratas autônomas. Aduziam não caber ao STF atuar de forma tão alargada, como legislador positivo, para introduzir regras que somente poderiam existir mediante atuação do Poder Legislativo. Em seguida, o Plenário proveu parcialmente embargos de declaração nos quais, em face da condicionante do acórdão a estipular que o usufruto dos índios não compreenderia a garimpagem ou a faiscação, que dependeriam de permissão de lavra garimpeira, alegava-se que caberia apenas aos indígenas o aproveitamento de jazimento mineral localizado naquelas terras. A Corte rememorou que o acórdão embargado não discutira à exaustão o regime legal e regulamentar aplicável à espécie, mas apenas definira que o usufruto não conferiria aos índios o direito de explorar os recursos minerais sem autorização da União, nos termos de lei específica (CF, artigos 176, § 1º, e 231, § 3º). Diferenciou-se mineração, como atividade econômica, das formas tradicionais de extrativismo, praticadas imemorialmente, nas quais a coleta constituiria expressão cultural de determinadas comunidades indígenas. Assim, no primeiro caso, não haveria como afastarem-se as exigências constitucionais citadas. Ademais, indagava-se como se realizaria o pagamento de indenização quando a feitura de obras públicas, fora da terra indígena, prejudicasse o usufruto exclusivo dos índios sobre a área. Esclareceu-se que o ponto não integraria o objeto da ação e, por isso, não teria sido abordado na decisão embargada. Salientou-se que a configuração do dever de indenizar dependeria de pressupostos que deveriam ser examinados em cada caso concreto, à luz da legislação pertinente. Seguindo no julgamento do recurso, o Plenário deliberou, em face de questão de ordem apresentada pelo Ministro Roberto Barroso, relator, que tão logo transitado em julgado o acórdão, cessaria a competência do STF em relação ao feito. Anotou-se que a execução do que decidido pela Corte estaria a transcorrer, na justiça federal local, normalmente, e que não haveria mais conflito federativo a sanar. Dessa forma, eventuais processos a envolver a área em questão deveriam ser julgados pelos órgãos locais competentes.
Número do Processo
3388
Tribunal
STF
Data de Julgamento
23/10/2013
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Inicialmente, a Segunda Turma do STJ entendeu que o acórdão de origem estava em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, afirmando "(...)que as multas aplicadas pelos Tribunais de Contas estaduais deverão ser revertidas ao ente público ao qual a Corte está vinculada, mesmo se aplicadas contra gestor municipal. " Contudo, o STF julgou o Tema 642, no qual se fixou a seguinte tese: "o Município prejudicado é o legitimado para a execução de crédito decorrente de multa aplicada por Tribunal de Contas estadual a agente público municipal, em razão de danos causados ao erário municipal." (RE 1.003.433, Rel. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2021, DJe 11/10/2021) Na hipótese, impõe-se a adequação do julgado, para ajustar ao novo entendimento de caráter obrigatório. Assim, o Município prejudicado, e não o Estado, é o legitimado para a execução de crédito decorrente de multa aplicada por Tribunal de Contas estadual a agente público municipal, em razão de danos causados ao erário municipal.
Cuida-se de decretação da cautelar máxima pelo Magistrado diante do pedido do Ministério Público, durante a audiência de custódia, de conversão da prisão em flagrante em cautelares diversas. Inicialmente, frisa-se que não obstante o art. 20 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) ainda autorize a decretação da prisão preventiva de ofício pelo Juiz de direito, tal disposição destoa do atual regime jurídico. A atuação do juiz de ofício é vedada independentemente do delito praticado ou de sua gravidade, ainda que seja de natureza hedionda, e deve repercutir no âmbito da violência doméstica e familiar. Contudo, a decisão que decreta a prisão preventiva, desde que precedida da necessária e prévia provocação do Ministério Público, formalmente dirigida ao Poder Judiciário, mesmo que o magistrado decidida pela cautelar pessoal máxima, por entender que apenas medidas alternativas seriam insuficientes para garantia da ordem pública, não deve ser considerada como de ofício. Isso porque uma vez provocado pelo órgão ministerial a determinar uma medida que restrinja a liberdade do acusado em alguma medida, deve o juiz poder agir de acordo com o seu convencimento motivado e analisar qual medida cautelar pessoal melhor se adequa ao caso. Impor ou não cautelas pessoais, de fato, depende de prévia e indispensável provocação. Entretanto, a escolha de qual delas melhor se ajusta ao caso concreto há de ser feita pelo juiz da causa. Entender de forma diversa seria vincular a decisão do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo Ministério Público, de modo a transformar o julgador em mero chancelador de suas manifestações, ou de lhe transferir a escolha do teor de uma decisão judicial. Em situação que, mutatis mutandis, implica similar raciocínio, decidiu o STF que "... 3. Prisão preventiva decretada a pedido do Ministério Público, que, posteriormente requer a sua revogação. Alegação de que o magistrado está obrigado a revogar a prisão a pedido do Ministério Público. 4. Muito embora o juiz não possa decretar a prisão de ofício, o julgador não está vinculado a pedido formulado pelo Ministério Público. 5. Após decretar a prisão a pedido do Ministério Público, o magistrado não é obrigado a revogá-la, quando novamente requerido pelo Parquet. 6. Agravo improvido (HC n. 203.208 AgR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 30/8/2021). Saliente-se que esse é igualmente o posicionamento adotado quando o Ministério Público pugna pela absolvição do acusado em alegações finais ou memoriais e, mesmo assim, o magistrado não é obrigado a absolvê-lo, podendo agir de acordo com sua discricionariedade. Dessa forma, a determinação do magistrado, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio, uma vez que lhe é permitido atuar conforme os ditames legais, desde que previamente provocado, no exercício de sua jurisdição.
Cinge-se a controvérsia a definir se o credor de dívida garantida por alienação fiduciária de imóvel está obrigado a promover a execução extrajudicial de seu crédito na forma determinada pela Lei n. 9.514/1997. Sobre o tema, vale ressaltar que a Cédula de Crédito Bancário, desde que satisfeitas as exigências do art. 28, § 2º, I e II, da Lei n. 10.931/2004, de modo a lhe conferir liquidez e exequibilidade, e desde que preenchidos os requisitos do art. 29 do mesmo diploma legal, é título executivo extrajudicial. Assim, o só fato de estar a dívida lastreada em título executivo extrajudicial e não haver controvérsia quanto à sua liquidez, certeza e exigibilidade, ao menos no bojo da exceção de pré-executividade, é o quanto basta para a propositura da execução, seja ela fundada no art. 580 do Código de Processo Civil de 1973, seja no art. 786 do Código de Processo Civil de 2015. A constituição de garantia fiduciária como pacto adjeto ao financiamento instrumentalizado por meio de Cédula de Crédito Bancário em nada modifica o direito do credor de optar por executar o seu crédito de maneira diversa daquela estatuída na Lei n. 9.514/1997 (execução extrajudicial). A propositura de execução de título extrajudicial, aliás, aparenta ser a solução mais eficaz em determinados casos, diante da existência de questão altamente controvertida, tanto da doutrina quanto na jurisprudência dos tribunais, referente à possibilidade de o credor fiduciário exigir o saldo remanescente se o produto obtido com a venda extrajudicial do bem imóvel dado em garantia não for suficiente para a quitação integral do seu crédito, ou se não houver interessados em arrematar o bem no segundo leilão, considerando o disposto nos §§ 5º e 6º do art. 27 da Lei n. 9.514/1997. Com efeito, ao credor fiduciário é dada a faculdade de executar a integralidade de seu crédito judicialmente, desde que o título que dá lastro à execução esteja dotado de todos os atributos necessários - liquidez, certeza e exigibilidade.
O prequestionamento da matéria configura-se pela consideração pela origem do tema objeto da lide. Ausente o enfrentamento ao menos implícito na instância ordinária da controvérsia cuja compreensão divergente se pretende apresentar a esta Corte, o recurso especial é obstado pela ausência do requisito constitucional de cabimento da via excepcional. A fundamentação per relationem (por remissão, por referência ou relacional) é admitida quando o órgão julgador refere-se a anterior decisão ou documento constante nos autos, apontando de forma expressa, ainda que minimamente, a ligação entre ele e o julgamento presente . A mera referência, em certidão de julgamento, subscrita unicamente por servidor sem função judicante, a decisão de órgão colegiado diverso em outra causa não se presta a configurar a legítima técnica de fundamentação por referência. Note-se que, na jurisdição trabalhista, há previsão dessa técnica, conforme a CLT: Art. 895. [...] § 1º - Nas reclamações sujeitas ao procedimento sumaríssimo, o recurso ordinário: (Incluído pela Lei n. 9.957/2000) [...] IV - terá acórdão consistente unicamente na certidão de julgamento, com a indicação suficiente do processo e parte dispositiva, e das razões de decidir do voto prevalente. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a certidão de julgamento, registrando tal circunstância, servirá de acórdão. (Incluído pela Lei n. 9.957/2000.) Inexiste similar previsão para a jurisdição comum, sendo descabido admitir que a certidão de julgamento, de caráter administrativo, subscrita por servidor desprovido de poder jurisdicional, sirva como integrante do acórdão para aferição dos fundamentos do julgado.
O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo - a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno - quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). No mesmo sentido, neste STJ: REsp 1.574.681/RS. No caso, apesar da menção a informação anônima repassada pela Central de Operações da Polícia Militar - Copom, não há nenhum registro concreto de prévia investigação para apurar a conformidade da notícia, ou seja, a ocorrência do comércio espúrio na localidade, tampouco a realização de diligências prévias, monitoramento ou campanas no local para averiguar a veracidade e a plausibilidade das informações recebidas anonimamente e constatar o aventado comércio ilícito de entorpecentes. Não houve, da mesma forma, menção a qualquer atitude suspeita, exteriorizada em atos concretos, nem movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas. Por ocasião do julgamento do HC 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 15/3/2021), a Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, à unanimidade, propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais. Na ocasião, foram apresentadas as seguintes conclusões: a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige- se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito; b) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada; c) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação; d) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo; e) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência. As regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, de sorte a franquear àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor. Na hipótese em análise, ainda que o acusado haja admitido a abertura do portão do imóvel para os agentes da lei, ressalvou que o fez apenas porque informado sobre a necessidade de perseguirem um suposto criminoso em fuga, e não para que fossem procuradas e apreendidas drogas. Ademais, se, de um lado, deve-se, como regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se há de ignorar, por outro lado, que a notoriedade de frequentes eventos de abusos e desvios na condução de diligências policiais permite inferir como pouco crível a versão oficial apresentada no inquérito policial, máxime quando interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota indisfarçável desejo de se criar narrativa que confira plena legalidade à ação estatal. Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias concretas - avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência quotidiana do que ocorre nos centros urbanos - ser dirimida a favor do Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dubio pro libertas). Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador. Entretanto, não se demonstrou preocupação em documentar esse consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo. Sobre a gravação audiovisual, aliás, é pertinente destacar o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF 635 ("ADPF das Favelas", finalizado em 3/2/2022), oportunidade na qual o Pretório Excelso - em sua composição plena e em consonância com o decidido por este Superior Tribunal no já citado HC 598.051/SP - reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros, que "o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos". Dessa forma, em atenção à basilar lição de hermenêutica constitucional segundo a qual exceções a direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, prevalece, quanto ao consentimento, na ausência de prova adequada em sentido diverso, a versão apresentada pelo morador de que apenas abriu o portão para os policiais perseguirem um suposto autor de crime de roubo. Partindo dessa premissa, isto é, de que a autorização foi obtida mediante indução do acusado a erro pelos policiais militares, não pode ser considerada válida a apreensão das drogas, porquanto viciada a manifestação volitiva do paciente. Se, no Direito Civil, que envolve direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, a indução da parte adversa a erro acarreta a invalidade da sua manifestação por vício de vontade (art. 145, CC), com muito mais razão deve fazê-lo no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis do indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual. A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação a norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes - relativa ao delito descrito no art. 33 da Lei n. 11.343/2006 -, porque apoiada exclusivamente nessa diligência policial. Ressalta-se que, conquanto seja legítimo que os órgãos de persecução penal se empenhem em investigar, apurar e punir autores de crimes mais graves, os meios empregados devem, inevitavelmente, vincular-se aos limites e ao regramento das leis e da Constituição Federal. Afinal, é a licitude dos meios empregados pelo Estado que justificam o alcance dos fins perseguidos, em um processo penal sedimentado sobre bases republicanas e democráticas.