Prazo razoável para comprovação da regularidade fiscal antes da concessão da recuperação judicial
A Lei n. 14.112/2020, que entrou em vigor 30 (trinta) dias após a sua publicação, ou seja, em 23/1/2021, aplica-se aos casos em andamento, consoante o teor do art. 5º, observando-se o disposto no art. 14 do CPC/2015, segundo o qual "a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada". A despeito do citado art. 14 do CPC/2015 limitar-se à norma processual, igualmente se aplicam as balizas restritivas da incidência da lei nova à norma de cunho material, pois, partindo da natureza mista da Lei de Recuperação e Falência, o art. 5º da Lei n. 14.112/2020 deve ser lido em conjunto com o art. 6º da LINDB, que, versando sobre a retroatividade mínima da lei, impõe o respeito, pela lei nova, aos atos praticados validamente segundo a lei vigente à época. Esse regramento representa a adoção pelo legislador da teoria do isolamento dos atos processuais, encampada pacificamente pela jurisprudência deste Tribunal Superior. Assim, a regra é a incidência imediata da Lei n. 14.112/2020 aos processos pendentes, ressalvadas as hipóteses elencadas nos incisos do § 1º do art. 5º, em que o marco temporal de incidência dessa lei nova é a data de ajuizamento do pedido de recuperação judicial. Embora a Lei de Recuperação de Empresas e Falência seja de natureza mista (material e processual), não há óbice à aplicação imediata e integral da Lei n. 14.112/2020, independentemente da natureza da norma. No que tange aos arts. 47 e 58 da Lei n. 11.101/2005, a jurisprudência dominante atual deste Tribunal Superior é uníssona na esteira de que, com a entrada em vigor da Lei n. 14.112/2020, é imprescíndivel à concessão da recuperação judicial a comprovação da regularidade fiscal das empresas em recuperação, com a apresentação das certidões negativas de débito tributário (ou positivas com efeito de negativa), na forma do art. 57 da Lei n. 11.101/2005. Da análise da Lei n. 11.101/2005, não se verifica essa exigência em momento anterior do processo de recuperação, pois não se trata de pressuposto do deferimento do pedido de recuperação judicial (art. 48 da Lei n. 11.101/2005), nem de documento de juntada obrigatória com a petição inicial (art. 51 da Lei n. 11.101/2005). Portanto, conclui-se que a comprovação da regularidade fiscal da empresa em soerguimento é condição apenas à homologação judicial do plano e à concessão da recuperação judicial, sendo este o marco para fins de incidência da Lei n. 14.112/2020 e, em consequência, da jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça, que, superando o entendimento anterior, confere efetiva aplicabilidade ao art. 57 da Lei n. 11.101/2005. Esse foi o entendimento da Quarta Turma proferido no julgamento do outrora citado REsp n. 1.955.325-PE, dispondo que, "na hipótese de decisões homologatórias do plano de recuperação proferidas anteriormente à vigência da Lei n. 14.112/2020, aplica-se o entendimento jurisprudencial pretérito no sentido da inexigibilidade da comprovação da regularidade fiscal, forte no princípio tempus regit actum (art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal e art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), de forma a não prejudicar o cumprimento do plano". Assim, em relação aos processos de recuperação em andamento no momento da entrada em vigor da Lei n. 14.112/2020, mas ainda pendente a concessão da recuperação judicial, há de ser conferido prazo razoável pelo Juízo da recuperação para a adoção dessa providência antes de decidir sobre a concessão, tendo em vista os preceitos dos arts. 218, § 1º, do CPC/2015 e do art. 189 da Lei n. 11.101/2005.
Aplicação do Decreto 20.910 de 1932 ao prazo prescricional de nomeação em cadastro de reserva
Durante a pandemia ocasionada pelo vírus SARS-CoV-2 o Congresso Nacional fez editar diversas leis com o intuito de minimizar o impacto que surgia da contingência das restrições à liberdade ambulatorial e os seus efeitos econômicos, uma dessas leis a de n. 14.010, de 10.06.2020, que dispunha sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Essa lei contemplou uma série de regramentos que buscavam compor essa situação excepcional com o regular andamento da vida em sociedade, e assim, por exemplo, suspendeu o exercício do direito de arrependimento do consumidor previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor para a hipótese de entrega domiciliar ("delivery") de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. Uma outra regra, a do art. 3.º, dispunha explicitamente sobre os prazos prescricionais e decadenciais, igualmente tratando de sustar o curso regular deles. Por disposição legal expressa a regra impedia o início desses prazos ou os suspendia desde a entrada em vigor da lei até o dia 30.10.2020. É preciso ter em mente que o objetivo da lei nunca foi o de regular as relações jurídicas de direito público mas unicamente aquelas de direito privado e tanto assim que, atentando ao fato de que se presumia tratar-se a pandemia de uma situação passageira, dispôs nos seus dois primeiros artigos o âmbito da sua aplicação assim como o período da produção dos seus efeitos. É bastante claro, portanto, que a Lei n. 14.010/2020 estabeleceu um regime jurídico transitório de regulação de relações privadas, o que torna absolutamente impertinente a sua aplicabilidade no caso concreto, que trata de relação entre Administração Pública e administrado, na especificidade da executora do concurso público e o candidato. Com efeito, não parece razoável uma interpretação que considere que a vontade legislativa expressada no texto legal ("voluntas legis") seja distinta da vontade legislativa supostamente implícita ("voluntas legislatoris") e que se deva, então, utilizar de método interpretativo que estenda a aplicação da lei a situações claramente não abrangidas por ela. Nesse sentido, verifica-se que todos os preceitos normativos da Lei n. 14.010/2020 trataram meramente de situações relacionadas ao direito privado, como a resolução, resilição e revisão contratual, os condomínios edilícios, as relações de consumo ou as relações de direito de família e sucessões, de forma que não há no corpo legal nada que possibilite ao intérprete criar situação que descambe dos limites do texto. Dessa forma, inaplicável a Lei n. 14.010/2020 às relações jurídicas de direito público que tratem de pretensão decorrente de concurso público, aplicando-se o prazo do Decreto Federal 20.910/1932 para a pretensão de nomeação deduzida por candidato aprovado em cadastro de reserva.
Aplicação das normas contra preço vil na execução extrajudicial de alienação fiduciária de imóvel
A execução extrajudicial de imóvel dado em alienação fiduciária tem regramento próprio estabelecido na Lei n. 9.514/1997, que, antes das modificações perpetradas pela Lei n. 14.711/2023, previa que o contrato que serve de título ao negócio fiduciário deveria conter o valor do principal da dívida e a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão (art. 24, I e VI). A partir da vigência da Lei n. 14.711/2023, não há mais dúvidas de que, em segundo leilão, não pode ser aceito lance inferior à metade do valor de avaliação do bem, ainda que superior ao valor da dívida (acrescido das demais despesas), à semelhança da disposição contida no art. 891 do CPC/2015. No caso, o leilão foi realizado antes da vigência da Lei n. 14.711/2023, o que não altera, contudo, a compreensão acerca da matéria. Com efeito, no âmbito doutrinário, há muito já se defendia a impossibilidade de alienação extrajudicial a preço vil, não só por invocação do art. 891 do CPC/2015, mas também de outras normas, tanto de direito processual quanto material, que i) desautorizam o exercício abusivo de um direito (art. 187 do Código Civil); ii) condenam o enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil); iii) determinam a mitigação dos prejuízos do devedor (art. 422 do Código Civil) e iv) prelecionam que a execução deve ocorrer da forma menos gravosa para o executado (art. 805 do CPC/2015). A despeito de ser a quantia obtida em segundo leilão muito inferior à metade do preço de avaliação para venda forçada, mesmo sem atualização, entenderam as instâncias ordinárias que as normas de caráter geral não seriam aplicáveis à execução extrajudicial regida pelas disposições especiais da Lei n. 9.514/1997. Tal orientação, no entanto, não encontra amparo nem na doutrina majoritária, tampouco em julgados do STJ que, mesmo antes da inovação legislativa, já defendiam a impossibilidade da arrematação a preço vil na execução extrajudicial de imóvel alienado fiduciariamente. Por fim, em que pese a prevalência do caráter negocial da alienação por iniciativa particular, também à ela se aplica a vedação da alienação a preço vil, entendida, em regra, como sendo aquela que não alcança 50% do valor da avaliação, ressalvadas as situações em que se deve levar em conta as particularidades do caso concreto.
Incidência do IPTU independe de comunicação ao INCRA sobre alteração de zona urbana
Cinge-se a controvérsia em definir se o art. 53 da Lei n. 6.766/1979 estabelece a obrigação do município de previamente comunicar ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra acerca da alteração de destinação de área rural para urbana, como condição para que a propriedade deixe de sofrer a incidênica do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR e passe a sofrer a incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU, a fim de se evitar a bitributação. O art. 182 da Constituição Federal (CF) preconiza que "a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes". A Lei n. 6.766/1979, por sua vez, é a lei federal ordinária, recepcionada pela CF, que disciplina as normas gerais sobre a política urbana referente ao parcelamento do solo, dispondo no mencionado art. 53 que: "todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, do Órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação pertinente". Não há na redação do texto legal, portanto, passagem que possa sugerir eventual subordinação entre os entes públicos, notadamente em relação à existência de condicionante para fins de tributação municipal. As condições estabelecidas no supracitado dispositivo dizem respeito à realização de alterações no uso do solo rural para fins urbanos, ou seja, são dirigidas à pessoa do loteador, que somente poderá efetivar essa modificação de utilização da área depois de consultar ("prévia audiência") o Incra e o órgão municipal pertinente e de obter a aprovação do projeto pela prefeitura ou do Distrito Federal. Essa disposição legal atribui apenas à municipalidade a atribuição de aprovar ou desaprovar essa modificação de uso para fins de loteamento, o que guarda sintonia com o art. 12 dessa mesma lei, que assim dispõe: "Art. 12. O projeto de loteamento e desmembramento deverá ser aprovado pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, a quem compete também a fixação das diretrizes a que aludem os arts. 6º e 7º desta Lei, salvo a exceção prevista no artigo seguinte". Ressalte-se ainda que essa consulta ao Incra está prevista antes da aprovação do projeto pela municipalidade e, por conseguinte, da lei municipal que integrará essa área na zona urbana da cidade. Constata-se, assim, que as providências elencadas no art. 53 da Lei n. 6.766/1979 dizem respeito às condições para se garantir, no máximo, a regularidade do processo de parcelamento/loteamento de área então rural, e não aos requisitos para a cobrança do IPTU sobre imóvel que, por lei local, passou a ser considerado como urbano, ou seja, o supracitado comando normativo trata de regra procedimental para fins de parcelamento do solo urbano, não implicando regra de natureza tributária. Ademais, eventual circunstância condicionante à configuração do fato gerador do tributo em questão (IPTU) somente poderia ser validamente instituída por lei complementar (art. 146, III, "a", da CF), o que não é o caso da Lei n. 6.766/1979; bem como não se vislumbra a ocorrência de bitributação, porquanto tal fenômeno ocorre quando dois entes federados exigem o pagamento de tributo por um mesmo fato gerador, o que não ocorre na espécie. Dessa forma, ressalvada a subsistência da destinação rural do imóvel (Tema 174 do STJ), estando preenchidas as condições elencadas no art. 32 do Código Tributário Nacional - CTN, é de se considerar válidos o lançamento e a cobrança do IPTU sobre os imóveis que a lei municipal passou a definir como pertencentes à zona urbana da cidade.
Flexibilização das prisões por razões humanitárias em desastres e emergências públicas
Em situações de desastres públicos, a flexibilização das prisões pode ser justificada por motivos humanitários ou por questões práticas e operacionais relativas à crise e aos órgãos responsáveis pelo gerenciamento das ações estatais. Eventos como pandemias, catástrofes naturais ou emergências em larga escala exigem uma reavaliação das prioridades e capacidades do sistema prisional, que pode ser gravemente afetado nessas circunstâncias. Do ponto de vista humanitário, a superlotação e as condições muitas vezes precárias das prisões podem se tornar ainda mais problemáticas durante uma calamidade. Questões como higiene precária, acesso limitado a cuidados médicos e a impossibilidade de manter o distanciamento social podem transformar as prisões em focos de propagação de doenças, representando um risco não apenas para os detentos, mas também para os funcionários penitenciários e a comunidade em geral. Sob uma ótica mais pragmática, a liberação temporária ou a aplicação de penas alternativas à prisão domiciliar ou liberdade condicional podem ser medidas necessárias para reduzir a pressão sobre as instalações carcerárias. Isso possibilita que a administração prisional concentre seus recursos limitados na gerência da crise e na proteção dos detentos sob custódia, especialmente aqueles que não podem ser liberados por conta da natureza de seus crimes ou do perigo que representam para a sociedade. Ademais, tais ações podem ser consideradas uma maneira de garantir a incolumidade e os direitos humanos das pessoas presas, garantindo que não sejam desproporcionalmente prejudicados durante uma crise que requer medidas extraordinárias. É crucial que tais decisões sejam baseadas em avaliações minuciosas e personalizadas dos riscos envolvidos para cada detento, a fim de assegurar que a segurança pública permaneça como prioridade No caso em apreço, a situação excepcionalíssima a garantir a medida diferente da segregação cautelar está caracterizada pela necessidade de garantir-se os cuidados e os interesses da criança durante o trâmite do processo, eis que em se tratando de uma bebê de apenas 5 meses, presume-se a necessidade dos cuidados maternos em tenra idade, em situação de calamidade pública enfrentada pelo Estado do Rio Grande do Sul. Por fim, quanto ao pedido de extensão a todas a presas do Estado pretendido pela Defensoria Pública, em se tratando de prisões definitivas e provisórias no Estado do Rio Grande do Sul, que enfrenta o que talvez se possa afirmar ser o pior desastre natural de sua história, a atenção do Poder Judiciário e a garantia da paz social exigem um cuidado redobrado dos operadores do direito. Essa é a razão da positivação das diretrizes pelo CNJ. A extensão extra processual pretendida extrapola a competência desta Turma, uma vez que se trata de providência pleiteada em habeas corpus individual, inexistindo a possibilidade de exame da similaridade exigida na norma processual. Ademais, ainda que com grande esforço interpretativo na avaliação dos requisitos da prisão preventiva das pessoas presas no Estado afligido pela calamidade, não se pode correr o risco de agravar-se o caos e o sentimento de insegurança das vítimas e da sociedade em geral. Pessoas com histórico de violência, acusadas de crimes graves, ainda que sem o trânsito em julgado, não podem ser libertadas sem uma avaliação individualizada de sua segregação.