Coisa julgada erga omnes nas ações populares com identidade de objeto
O caso em discussão se insere no contexto da privatização da Companhia Vale do Rio Doce - CVRD e envolve diversas ações populares ajuizadas em vários Estados e no Distrito Federal com o objetivo de discutir múltiplos aspectos do processo fundado no Programa Nacional de Desestatização instituído pela Lei n. 8.031/1990. Em algumas das referidas ações populares, houve sentença de extinção do processo sem julgamento do mérito, o que foi reformado pelo Tribunal de origem para determinar o prosseguimento em primeiro grau de jurisdição e, essencialmente, iniciar a fase instrutória dos processos com a determinação de realização de perícia. Por outro lado, há outras ações populares e ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal sobre o mesmo caso que foram julgadas improcedentes, inclusive com trânsito em julgado. Inegável, portanto, a existência de decisões judiciais, aparentemente incompatíveis, em relação à mesma questão jurídica. Cinge-se a controvérsia, portanto, quanto a: "a.1) configuração de coisa julgada, em virtude do trânsito em julgado de ações populares e de ação civil pública relacionadas ao caso concreto; a.2) aplicação da teoria do fato consumado, ante a consolidação da situação fática da privatização; a.3) existência de ilegalidade e lesividade no âmbito da ação popular diante da aprovação pelo Tribunal de Contas da União do processo de desestatização da Companhia Vale do Rio Doce, bem como do reconhecimento de inexistência de dano ao patrimônio público em face da avaliação da participação acionária da União na empresa privatizada. a.4) julgamento extra petita proferido pelo Tribunal de origem em reexame necessário". A primeira atuação do Superior Tribunal de Justiça em questão relacionada ao litígio se deu no julgamento do Conflito de Competência n. 19.686/DF, em que esta Corte Superior determinou a centralização para processamento das primeiras 27 ações populares no Juízo da 4ª Vara da Seção Judiciária do Pará-SJ/PA, ao fundamento da inegável conexão em todas as ações populares analisadas no incidente em que, sob os mais diversos fundamentos, visavam impedir a privatização da CVRD. No julgamento do Conflito de Competência supramencionado, consta que, " ao fim e ao cabo, as ações populares envolvidas no conflito, com variações de reduzida significação nos respectivos fundamentos (fáticos e jurídicos), objetivam de forma clara e evidente, impedir a venda da empresa Vale do Rio Doce ou por ilegalidade ou inconstitucionalidade de um ou alguns dos atos preparatórios, por sub-avaliação de bem ou bens que integram o seu patrimônio, ou, finalmente, por se entender que determinados bens (ou empresas) devem ser excluídas da avaliação (ou da venda), cuja alienação, segundo afirmam, é lesiva ao patrimônio da União ". Evidenciada a conexão, a observância dos efeitos processuais, como a reunião dos processos, atende a caros valores democráticos, quais sejam, a estabilidade das relações jurídicas e a proteção da confiança nas instituições, garantidos na unidade do provimento jurisdicional a ser proferido, nos termo do art. 18 da Lei 4.717/1965: " A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível 'erga omnes', exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova ". Ocorre que, não obstante tal reconhecimento e o superveniente ajuizamento de diversas outras ações populares inseridas no contexto da privatização da Companhia Vale do Rio Doce, o Tribunal Regional da 1ª Região conferiu solução diversa a casos conexos: a) mantendo sentença de improcedência a fim de reafirmar a aplicação da teoria do fato consumado (na hipótese, importa mencionar como paradigma o julgamento da Remessa Ex Officio n. 2002.01.00.034012-6/PA; Processo da origem n. 95.0007451-6; já transitada em julgado); b) reformando a sentença para reconhecer a necessidade de realização de prova pericial destinada a verificar os critérios de avaliação do patrimônio da CVRD, como no presente caso. A disparidade da conclusão jurídica foi justificada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região ao argumento de que somente as questões relacionadas aos aspectos formais do edital estariam acobertadas pelo transcurso do tempo, o que não abrangeria o questionamento sobre os critérios de avaliação do patrimônio da CVRD para licitação. Todavia, tal compreensão vai de encontro às reiteradas manifestações desta Corte Superior sobre os termos em que se reconheceu a conexão e a necessidade de julgamento único dessas ações populares, representando violação ao teor do art. 18 da Lei 4.717/1965. Com efeito, o julgamento único, efeito da atribuição da qualidade "erga omnes" à sentença prolatada no âmbito da ação popular, decorre da compreensão de que o autor popular representa toda a sociedade civil que integra, pois não é titular exclusivo do bem jurídico e sua legitimação legal é comum a indeterminado número de pessoas. Diante de tal cenário, a autoridade da coisa julgada se estende e repercute para toda a coletividade nos estritos limites do objeto litigioso do processo que, no caso dos autos, diz respeito à privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Ademais, a sentença proferida no julgado paradigma - REO TRF 1ª Região n. 20002.01.00.034012-6 - tem como fundamento a teoria do fato consumado e aduz que "a privatização levada a efeito já produziu alterações na realidade fática que o ordenamento jurídico e o próprio Poder Judiciário não podem desconhecer, sendo mais desastroso, hoje alterar-se essa situação em detrimento de todas as mudanças já produzidas. Vale dizer, na esteira de reiterados pronunciamentos do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, tem-se uma situação de fato consolidada que não é mais passível de modificações". A aplicação da teoria do fato consumado ante a consolidação da privatização da estatal não se encaixa na exceção de que trata o art. 18 da Lei 4.717/1965, de modo que a coisa julgada com efeito "erga omnes" deve recair sobre todas as demais ações populares conexas. Desse modo, fixa-se a seguinte tese jurídica: Diante da conexão existente entre as ações populares que possuem como objeto litigioso a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, ainda que sob os mais diversos pretextos (conforme se verifica das razões de decidir no CC 19.686/DF, STJ), a superveniência de sentença transitada em julgado em uma delas (REO 2002.01.00.034012-6; TRF 1ª Região) possui eficácia de coisa julgada oponível "erga omnes", nos termos do art. 18 da Lei 4.717/65, motivo pelo qual a parte dispositiva deve recair sobre todas as ações populares que possuem o mesmo objeto.
Piso mínimo legal e arquivamento imediato de execuções fiscais de conselhos profissionais
Cinge-se a controvérsia sobre à aplicabilidade das alterações promovidas pela Lei 14.195/2021, no art. 8º da Lei n. 12.514/2011, às execuções fiscais propostas por conselhos profissionais, antes de sua entrada em vigor. A Lei n. 12.514/2011, bem como a Lei n. 14.195/2021 (que promoveu alteração no sistema de cobranças realizadas pelos conselhos profissionais) racionalizaram o ajuizamento de execução fiscal para fins de cobrança das anuidades em atraso. Conforme consignado nos debates ocorridos durante a tramitação legislativa (conversão da Medida Provisória n. 1.040/2021), trata-se de "medida salutar para o funcionamento da Justiça brasileira", sobretudo em razão do número expressivo de executivos fiscais ajuizados pelos conselhos profissionais. Em suma, o objetivo da MP 1.040/2021 era "melhorar o ambiente de negócios no Brasil, bem como impactar positivamente a posição do país na classificação geral do relatório "Doing Business do Banco Mundial". Da "justificação" da emenda legislativa que promoveu a alteração no art. 8º, caput e parágrafos, da Lei n. 12.514/2011, pode ser extraído o seguinte excerto: "[...] A presente emenda, neste sentido, traz normas que racionalizam a cobrança judicial e extrajudicial de valores devidos ao Conselhos Profissionais tratados na Lei n. 12.514, de 28 de outubro de 2011. [...] Neste sentido, as medidas propostas pretendem reduzir o tempo de tramitação das ações de cobrança, dando-lhes maior eficiência e reduzindo a alta taxa de congestionamento dos processos de execução, contribuindo para a melhoria global dos indicadores de congestionamento do judiciário que afetam os resultados do país no ranking global de ambiente de negócios [...]". A despeito do expressivo volume de executivos fiscais que congestionam o Poder Judiciário, inclusive aos que decorrem de "cobranças de autarquias profissionais", não houve explicitação do objetivo da regra inserida no § 2º do art. 8º da Lei n. 12.514/2021. Observa-se que o disposto no caput do artigo referido foi alterado, no sentido de ampliar a restrição em relação a novos executivos fiscais, conforme a seguinte redação: "art. 8º Os Conselhos não executarão judicialmente dívidas, de quaisquer das origens previstas no art. 4º desta Lei, com valor total inferior a 5 (cinco) vezes o constante do inciso I do caput do art. 6º desta Lei, observado o disposto no seu § 1º". O § 1º, por sua vez, decorreu da renumeração do antigo parágrafo único, embora com expressivo aperfeiçoamento, no que concerne ao incentivo para a realização de medidas administrativas de cobrança, nos seguintes termos: "§ 1º O disposto no caput deste artigo não obsta ou limita a realização de medidas administrativas de cobrança, tais como a notificação extrajudicial, a inclusão em cadastros de inadimplentes e o protesto de certidões de dívida ativa". Em suma, pode-se afirmar que a novidade efetiva é a regra inserida no § 2º do art. 8º da Lei n. 12.514/2011, a qual prevê que: "2º Os executivos fiscais de valor inferior ao previsto no caput deste artigo serão arquivados, sem baixa na distribuição das execuções fiscais, sem prejuízo do disposto no art. 40 da Lei n. 6.830, de 22 de setembro de 1980." Como se observa, o § 2º impõe que os executivos fiscais de valor inferior ao previsto no caput serão arquivados, sem baixa na distribuição das execuções fiscais, sem prejuízo do disposto no art. 40 da Lei n. 6.830/1980. Em relação ao Tema Repetitivo 696 (REsp 1.404.796-SP), a norma controvertida era a prevista no caput do artigo referido (em sua redação anterior). Na presente afetação, a norma controvertida efetivamente é o respectivo § 2º. Embora observe-se que o legislador não tenha explicitado o objetivo da regra inserida no § 2º do art. 8º da Lei n. 14.195/2011, a sua não aplicação às execuções fiscais em curso implicaria negar-lhe vigência. Ressalte-se que a sua aplicação imediata não viola o disposto no art. 14 do CPC ("art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada"), ou seja, não há falar em retroatividade ou desrespeito às situações consolidadas na vigência da norma revogada. Desse modo, fixou-se a seguinte tese: "O arquivamento das execuções fiscais cujo valor seja inferior ao novo piso fixado no caput do art. 8º da Lei n. 12.541/2011, previsto no § 2º do artigo referido (acrescentado pela Lei n. 14.195/2021), o qual constitui norma de natureza processual, que deve ser aplicada de imediato, alcança os executivos fiscais em curso, ressalvados os casos em que concretizada a penhora".
Remoção de conteúdo sem ordem judicial por provedor de aplicação ante violação legal ou contratual
A controvérsia jurídica consiste em definir se uma plataforma, provedor de aplicação de internet , pode, por iniciativa própria, remover, suspender ou tornar indisponíveis conteúdos de usuário que viole seus termos de uso aplicáveis e se tal moderação de conteúdo encontra amparo no ordenamento jurídico, notadamente na perspectiva da liberdade de expressão, da proibição da censura e da responsabilidade dos provedores. Os termos de uso dos provedores de aplicação, que autorizam a moderação de conteúdo, devem estar subordinados à Constituição, às leis e a toda regulamentação aplicável direta ou indiretamente ao ecossistema da internet , sob pena de responsabilização da plataforma. A moderação de conteúdo, por sua vez, refere-se à faculdade reconhecida de as plataformas digitais estabelecerem normas para o uso do espaço que disponibilizam a terceiros, que podem incluir a capacidade de remover, suspender ou tornar indisponíveis conteúdos ou contas de usuários que violem essas normas. As plataformas têm todo o incentivo para cumprir não apenas a lei, mas, fundamentalmente, os seus próprios termos de uso (admitindo-se que eles estão em conformidade com o ordenamento jurídico), objetivando evitar, mitigar ou minimizar eventuais contestações judiciais ou mesmo extrajudiciais. Trata-se de espécie de autorregulação regulada: autorregulação ao observar suas próprias diretrizes de uso, regulada pelo Poder Judiciário nos casos de excessos e ilegalidades porventura praticados. O art. 19 da Lei n. 12.965/2014 ("Marco Civil da Internet ") não impede nem proíbe que o próprio provedor retire de sua plataforma o conteúdo que violar a lei ou os seus termos de uso. Essa retirada pode ser reconhecida como uma atividade lícita de compliance interno da empresa, que estará sujeita à responsabilização por eventual retirada indevida que venha a causar prejuízo injustificado ao usuário. Dar interpretação restritiva ao art. 19, no sentido de que tal norma somente autoriza a retirada de conteúdo da plataforma mediante ordem judicial, constitui dupla impropriedade: primeiro, porque dá à lei um sentido que ela não tem, pois as hipóteses ali previstas não excluem nem proíbem que as plataformas retirem conteúdo que seja ilegal ou que ofenda seus termos de uso; e segundo, porque vai de encontro ao esforço que a comunidade nacional e internacional, o poder público, a sociedade civil e as empresas têm realizado em busca de uma internet livre de desinformação (as chamadas fake news ) e de práticas ilícitas, que proteja crianças e adolescentes e que fortaleça os princípios de liberdade, direitos humanos, universalidade, privacidade, neutralidade, inovação e autonomia informacional. No tocante à prática de shadowbanning , também conhecida como banimento às sombras, oculto, furtivo ou fantasma, essa consiste na moderação de conteúdo por meio de rebaixamentos em sistemas de recomendação ou banimento de difícil detecção pelo usuário e são vedadas em documentos regulatórios, ressalvadas exceções bastante limitadas, reconhecida a assimetria informacional e a hipossuficiência técnica do usuário. São exemplos dessas práticas a exclusão de comentários postados em provedores, que permanecem visíveis para o remetente, mas não para os demais usuários, a diminuição no tráfego e nos resultados de pesquisa, e a redução do alcance de conteúdo e produtos, podendo ser realizadas tanto por funcionários da plataforma quanto por meio de algoritmos e, em tese, podem caracterizar ato ilícito, arbitrariedade ou abuso de poder. Embora a moderação de conteúdo por meio de técnicas convencionais como a remoção total de conteúdo ou suspensão de conta seja cabível, como nas hipóteses já destacadas, deve ser garantido ao usuário o direito de transparência acerca da moderação de conteúdo implementada pela plataforma. No Brasil, a proteção do usuário contra práticas de shadowbanning e outras formas de moderação de conteúdo que violem a liberdade de expressão e a vedação da censura pode ser extraída das normas previstas no Marco Civil da Internet.
Concessão do indulto natalino do Decreto 11.302/2022 limitada a condenações anteriores à publicação do decreto
O decreto de indulto deve ser interpretado restritivamente, não sendo possível ao Poder Judiciário exigir condições não previstas no instrumento ou ampliar indevidamente o alcance da benesse, sob pena de usurpação da competência constitucional do Presidente da República. Diz o art. 5º do Decreto n. 11.302/2022 que: "Será concedido indulto natalino às pessoas condenadas por crime cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos". Nesses termos, o indulto é concedido às pessoas condenadas, ou seja, que já se submeteram à jurisdição penal e contra si tiveram pronunciada a culpa. Não há menção para casos futuros, tampouco poderia haver. Isso porque, a vigência do decreto de indulto para casos futuros invadiria o exercício do poder legislativo, pois permitiria ao Presidente da República inovar no ordenamento jurídico, tornando sem efeito inúmeros tipos penais, criando hipóteses de abolitio criminis e igualando o decreto de clemência presidencial à lei. E essa não foi a pretensão do constituinte, cuja competência para legislar em matéria penal atribuiu ao Congresso Nacional (art. 22, I, c/c o art. 48, caput , ambos da Constituição Federal). Interpretação em sentido contrário, todos os delitos cuja pena máxima em abstrato for inferior a 5 anos estariam "revogados". Por essa razão, a limitação temporal é intrínseca ao ato, valendo para os condenados até a publicação do decreto de indulto.
Desnecessidade de substituição do conselheiro relator vencido em decisões interlocutórias nos Tribunais de Contas
A controvérsia consiste em saber se deve ser substituído o relator/conselheiro de Tribunal de Contas estadual quando vencido em decisão colegiada de natureza interlocutória (preliminar). Ou, em outras palavras, se quem proferiu o voto divergente (e vencedor) de questão preliminar deve prosseguir como relator do feito em si. Em casos semelhantes, o Superior Tribunal de Justiça manteve a relatoria do feito em si com o relator original, quando este é vencido apenas na questão preliminar, ressaltando que "em tal situação, não se cogita de substituição do relator: apenas a redação do acórdão do agravo interno é que ficará a cargo do Ministro que proferiu o primeiro voto vencedor". Nesse sentido: AgInt nos EREsp n. 1.482.089/PA, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 12/12/2018, DJe de 1/3/2019 e CC n. 92.406/RO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 20/2/2008, DJe de 8/5/2008. Dessa forma, considerando que o Regimento Interno do Tribunal de Contas estadual que, no caso em discussão, não previa tal espécie de modificação de competência/relatoria; bem como a inexistência de previsão no Código de Processo Civil, a resposta é seguramente negativa quanto à necessidade de substituição do relator/conselheiro vencido em decisão colegiada de natureza interlocutória.