Ônus do executado de provar exploração familiar para impenhorabilidade de pequena propriedade rural
Cinge-se a controvérsia, nos termos da afetação do recurso ao rito dos repetitivos, em "definir sobre qual das partes recai o ônus de provar que a pequena propriedade rural é explorada pela família para fins de reconhecimento de sua impenhorabilidade" (Tema 1234/STJ). Para reconhecer a impenhorabilidade, nos termos do art. 833, VIII, do CPC, é imperiosa a satisfação de dois requisitos: (i) que o imóvel se qualifique como pequena propriedade rural, nos termos da lei, e (ii) que seja explorado pela família. Quanto ao primeiro requisito, considerando a lacuna legislativa acerca do conceito de "pequena propriedade rural" para fins de impenhorabilidade, a jurisprudência tem tomado emprestado aquele estabelecido na Lei n. 8.629/1993, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma agrária. No art. 4º, II, alínea a, da referida legislação, atualizada pela Lei n. 13.465/2017, consta que se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural "de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento". Essa interpretação se encontra em harmonia com o Tema n. 961/STF, segundo o qual "é impenhorável a pequena propriedade rural familiar constituída de mais de 01 (um) terreno, desde que contínuos e com área total inferior a 04 (quatro) módulos fiscais do município de localização" (DJe 21/12/2020). A Segunda Seção do STJ decidiu que, para o reconhecimento da impenhorabilidade, o devedor (executado) tem o ônus de comprovar que além de se enquadrar dentro do conceito de pequena, a propriedade rural se destina à exploração familiar (REsp n. 1.913.234/SP, Segunda Seção, DJe 7/3/2023). Como regra geral, a parte que alega tem o ônus de demonstrar a veracidade desse fato (art. 373 do CPC) e, sob a ótica da aptidão para produzir essa prova, ao menos abstratamente, é mais fácil para o devedor demonstrar a veracidade do fato alegado. O art. 833, VIII, do CPC é expresso ao condicionar o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar. Nesse sentido, isentar o executado de comprovar o cumprimento desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor (exequente) importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação da norma - de assegurar os meios para a efetiva manutenção da subsistência do executado e de sua família. Assim, fixa-se a seguinte tese jurídica: "É ônus do executado provar que a pequena propriedade rural é explorada pela família para fins de reconhecimento de sua impenhorabilidade".
Legalidade da busca pessoal por Guardas Civis Municipais por fundada suspeita no tráfico de drogas
Ao julgar o REsp n. 1.977.119/SP, a Sexta Turma desta Corte Superior, conferindo nova interpretação ao disposto no art. 244 do CPP, decidiu que as Guardas Municipais "podem realizar patrulhamento preventivo na cidade, mas sempre vinculados à finalidade específica de tutelar os bens, serviços e instalações municipais, e não de reprimir a criminalidade urbana ordinária, função esta cabível apenas às polícias, tal como ocorre, na maioria das vezes, com o tráfico de drogas". Foi destacado que "não é das guardas municipais, mas sim das polícias, como regra, a competência para patrulhar supostos pontos de tráfico de drogas, realizar abordagens e revistas em indivíduos suspeitos da prática de tal crime ou ainda investigar denúncias anônimas relacionadas ao tráfico e outros delitos cuja prática não atinja de maneira clara, direta e imediata os bens, serviços e instalações municipais". Por fim, concluiu-se que "só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se houver, além de justa causa para a medida (fundada suspeita de posse de corpo de delito), relação clara, direta e imediata com a necessidade de proteger a integridade dos bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, o que não se confunde com permissão para realizarem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil para combate da criminalidade urbana ordinária" (REsp n. 1.977.119/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 23/8/2022). Todavia, "conforme jurisprudência consolidada desta Corte Superior, não há falar em ilegalidade na prisão em flagrante realizada por guardas civis municipais. Consoante disposto no art. 301 do CPP, 'qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito'" (AgRg no HC n. 748.019/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 22/8/2022). No caso, a situação não se assemelhou àquela que ensejou o provimento do REsp n. 1.977.119/SP. Consoante consignado pelo Tribunal de origem, o "local era conhecido como de traficância e a atitude suspeita do réu, ficando nervoso ao avistar a viatura e escondendo algo na cintura, motivaram os guardas a procederem a abordagem, na qual foram encontrados com o réu as drogas". Nesse contexto, a atuação da Guarda Municipal não se mostrou ilegal.
Dedução abusiva de ágio interno no IRPJ e CSLL em incorporação reversa pré-Lei 12.973/2014
A controvérsia cinge-se em saber se o ordenamento jurídico vigente à época dos fatos, em especial os artigos 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997, permitia que organizações societárias criassem pessoas jurídicas apenas com a finalidade de produzir ágio artificial destinado a reduzir as bases tributáveis do IRPJ e da CSLL. O ordenamento jurídico brasileiro passou a tratar da figura do ágio por meio do Decreto-Lei n. 1.598/1977, podendo ser conceituado como preço adicional ao custo de aquisição de participação societária, representado pela diferença positiva entre o custo de aquisição e o valor contábil do investimento adquirido, justificada pela perspectiva de obtenção de receitas futuras. Em outras palavras, a empresa adquirente aceita pagar pela aquisição valor superior ao contabilizado no patrimônio líquido da empresa adquirida, considerando a expectativa de auferimento de lucros, que necessariamente deve ser justificada mediante demonstração contábil. Sob as perspectivas contábil e societária, o ágio é passível de amortização na apuração de resultado da empresa investidora, impedindo o reconhecimento de ganhos inexistentes. Ou seja, a rentabilidade da sociedade adquirida não constituirá lucro da sociedade investidora até o montante equivalente ao ágio pago. Uma vez que, sendo neutralizado o ágio, os resultados positivos da empresa investida refletem no aumento do patrimônio da investidora. Entretanto, sob a perspectiva fiscal, o ágio é tratado de forma distinta, uma vez que a legislação tributária impõe que todo ágio ou deságio contabilmente amortizado deve ter seus efeitos fiscais anulados perante o IRPJ e CSLL, enquanto não houver a alienação ou liquidação do investimento adquirido. Paralelamente a isso, o registro contábil é preservado para futuro aproveitamento quando da alienação, momento em que é autorizada a integração do ágio ao custo de aquisição para apuração do ganho de capital. Exceção à regra ocorre apenas na hipótese em que a empresa investida é incorporada pela investidora, porque não mais subsiste a possibilidade de sua alienação, impossibilitando a recuperação fiscal do ágio em face dos itens patrimoniais da investida se fundirem e se confundirem com os da própria investidora. A Lei n. 9.532/1997 estabeleceu um caminho natural em que determinada empresa, adquirindo participação societária com ágio, ao incorporar a empresa coligada ou controlada, poderia amortizar esse valor de rentabilidade futura na base de cálculo do IRPJ e da CSLL devidos. Tudo isso com o objetivo específico de afastar da tributação o eventual ganho futuro que, em verdade, somente poderia ser aferido em posterior venda, frustrada pela extinção da empresa adquirida. No caso específico do ágio interno, ou ágio próprio, ou ágio de si mesmo, uma característica necessária é a inexistência de qualquer relação jurídica com membros que não fazem parte do mesmo grupo societário. É dizer, todas as operações acontecem entre partes vinculadas. Outro ponto indispensável para se caracterizar o ágio de si mesmo é a completa ausência de operação societária envolvendo a efetiva transferência de recursos financeiros. Finalmente, e este é um evento havido no caso concreto, o ágio interno pode ser gerado por meio de uma chamada "empresa veículo", cuja existência no mundo jurídico somente se justifica para criar a mais valia para o grupo societário. Cuida-se de sociedade completamente desprovida de propósito negocial em absoluto descompasso com o regime do direito societário. Não há "empresa" nos termos definidos pelo Código Civil, porque não há exercício de atividade econômica organizada para a circulação de bens ou serviços, e, exatamente neste ponto, pode-se identificar o abuso de direito caracterizado pelo abuso da personalidade jurídica. Sobre o ágio interno e sua relação com o abuso de direito, é importante mencionar que este abuso, para que seja considerado antijurídico, demanda, para além da utilização de um instituto para fins aos quais o ordenamento não o destina, que esta utilização afete direito de terceiros, ainda que não haja a intenção de prejudicar por parte daquele que o exerce. A inexistência de direitos absolutos e a limitação destes direitos a partir do momento em que outros direitos ou prerrogativas são atingidos é lugar comum em assertivas gerais e abstratas, mas que encerram dificuldades quando é necessária a aplicação destas premissas nos casos concretos. Sob essas lentes, não são admissíveis as conclusões de que se admite que a liberdade de auto-organização comporta a construção de estruturas artificiais para a economia de tributos. É evidente que não se está a defender o argumento pueril de que a economia de tributos só pode acontecer de maneira "casual". O contribuinte pode sim organizar seus negócios de maneira a escolher o caminho menos oneroso tributariamente, desde que as estruturas jurídicas utilizadas se compatibilizem com o ordenamento jurídico, exatamente porque a liberdade contratual se limita aos termos em que o constituinte concebeu esta e outras prerrogativas. O abuso de direito perpetrado com a criação de estruturas artificiais para aproveitamento do ágio e pagamento a menor de tributos agride a juridicidade do ordenamento. Para além do reconhecimento legal como ato ilícito previsto no art. 187 do Código Civil, o abuso de direito no caso encerra violação dos primados da capacidade contributiva, em sua condição de corolário da própria isonomia. Por esse motivo, o abuso de direito materializado na amortização de ágio gerado em operações internas, sem nenhum propósito negocial, desrespeitou o ordenamento jurídico vigente, ensejando a neutralização dos efeitos do ato abusivo pela autoridade fiscal.
Natureza penal e prescrição da multa penal em execução fiscal segundo o Código Penal
No caso, trata-se de execução fiscal visando à cobrança de dívida ativa não-tributária referente à multa penal cominada cumulativamente com pena privativa de liberdade. O Tribunal de origem entendeu que a conversão da pena de multa em dívida de valor, na forma prevista no art. 51 do Código Penal, transmudaria sua natureza jurídica de sanção penal para dívida de caráter extrapenal. Por conseguinte, concluiu que seria aplicável o prazo de prescrição intercorrente estabelecido no art. 40 da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal - LEF), de modo a declarar extinta a execução fiscal. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do REsp 1.340.553/PR (Tema 566/STJ), sob a sistemática dos recursos repetitivos, em voto-vista da Ministra Assusete Magalhães, deixou assentado que o prazo de duração da prescrição intercorrente depende da natureza da dívida ativa, de modo que, embora a dívida ativa tributária tenha prazo quinquenal, há dívidas não tributárias, que são objeto de execução fiscal, com prazos prescricionais diversos, consoante os seguintes precedentes: REsp 1.117.903/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, DJe de 1/2/2010; REsp 1.373.292/PE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe de 4/8/2015. No julgamento do aludido REsp 1.340.553/PR, o Ministro Herman Benjamin, em voto-vista, consignou ainda que o prazo da prescrição intercorrente não será, necessariamente, quinquenal. Para os créditos de natureza não tributária, o prazo da prescrição intercorrente será idêntico ao da prescrição ordinária, estabelecido em legislação específica - ou, na inexistência desta, aquele disposto no art. 1º do Decreto n. 20.910/1932. Quanto ao prazo de prescrição aplicável à execução de multa penal, a jurisprudência do STJ orienta-se no sentido de que a nova redação do art. 51 do Código Penal não retirou o caráter penal da multa. Assim, embora se apliquem as causas suspensivas da prescrição previstas na Lei n. 6.830/1980 e as causas interruptivas disciplinadas no art. 174 do Código Tributário Nacional, o prazo prescricional continua regido pelo art. 114, II, do Código Penal.
Aprovação no ENEM garante remição da pena por estudo independentemente de ensino superior
Cinge-se a controvérsia sobre a possibilidade de concessão da remição pela aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ao apenado que já ostenta diploma de nível superior. O art. 126 da Lei de Execução Penal determina que o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. Como resultado de uma interpretação analógica in bonam partem da referida norma, segundo jurisprudência desta Corte, é possível hipóteses de abreviação da reprimenda em razão de atividades que não estejam expressas no texto legal. Nessa linha, a Resolução CNJ n. 391/2021 prevê que faz jus à remição o apenado que, embora não esteja vinculado a atividades regulares de ensino, realiza estudos por conta própria e obtém aprovação nos exames nacionais que certificam a conclusão do ensino fundamental ou médio. Quanto à abrangência dessa hipótese, a Terceira Seção do STJ, no julgamento dos EREsp 1.979.591/SP, decidiu que é possível a remição da pena por aprovação no ENEM ainda que o reeducando já tenha concluído o ensino médio anteriormente ao início do resgate da reprimenda. De fato, as normas da execução penal, notadamente aquela relacionada à remição pelos estudos, deve ser interpretada de modo mais favorável ao réu, especialmente em razão de inexistir, na regra contida no art. 126 da LEP, restrição à concessão do referido direito àqueles que já tenham concluído o ensino médio ou superior. É esse caminho interpretativo que o Superior Tribunal de Justiça tem adotado nas controvérsias relacionadas ao tema, porquanto vem considerando devidas benesses executórias que, apesar de não terem expressa previsão legal, prestigiam a ressocialização do recluso, como na espécie. Ademais, não se trata de se conferir espécie de crédito contra a justiça, porquanto a remição não é concedida pelo simples fato de o apenado já ter formação superior, mas, sim, por ele ter obtido êxito na aprovação do Exame Nacional do Ensino Médio por meio de conhecimentos por ele adquiridos.