Este julgado integra o
Informativo STF nº 848
A Segunda Turma deferiu parcialmente medida liminar em mandado de segurança impetrado contra ato omissivo. No caso, houve atraso no repasse dos recursos correspondentes às dotações orçamentárias destinadas ao Poder Judiciário do Rio de Janeiro. O Colegiado assegurou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) o direito de receber, até o dia vinte de cada mês, em duodécimos, os recursos correspondentes às dotações orçamentárias. Facultou ao Poder Executivo proceder ao desconto uniforme de 19,6% da receita corrente líquida prevista na lei orçamentária em sua própria receita e na dos demais Poderes e órgãos autônomos, ressalvada, além da possibilidade de eventual compensação futura, a revisão desse provimento cautelar caso não se demonstre o decesso na arrecadação nem no percentual projetado de 19,6% em dezembro/2016. Na espécie, o impetrante alegava que o art. 168 da Constituição Federal (CF) estabelece o dever de repasse, pelo Poder Executivo, dos recursos financeiros previstos em lei orçamentária regularmente aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro — no caso, a Lei Orçamentária Anual estadual 7.210/2016 (LOA) — ao Poder Judiciário, obrigatoriamente, em duodécimos, até o vigésimo dia de cada mês. Entendia que a omissão do Poder Executivo caracterizaria violação do postulado da separação de Poderes, em razão de indevida interferência do governador do Estado na autonomia administrativa e financeira do TJRJ. Requeria, dessa forma, a concessão da medida liminar pleiteada, para garantir o repasse integral de seu duodécimo orçamentário até o vigésimo dia de cada mês, nos termos do previsto no mencionado dispositivo constitucional. A autoridade impetrada, ao prestar informações, postulava a incidência dos Enunciados 269 e 271 da Súmula do Supremo Tribunal Federal (STF), para obstar o conhecimento da presente ação mandamental quanto ao pedido de repasse da parcela relativa ao mês de outubro até o dia vinte desse mesmo mês. Sustentava, ainda, que o descumprimento da data prevista no art. 168 da Constituição Federal, para o repasse das dotações orçamentárias em duodécimos, não configuraria ofensa à autonomia financeira do Poder Judiciário (CF, art. 99), pois não decorreria de resistência injustificada do Poder Executivo, mas de frustração na realização do orçamento do Estado. Defendia não haver impedimento legal para utilização de recursos do Fundo Especial do Tribunal de Justiça (FETJ) para pagamento de despesas de pessoal e custeio do TJRJ. Prevaleceu o voto do ministro Dias Toffoli (relator). Para ele, a competência originária relativamente ao conhecimento do “writ” é do STF, porque todos os magistrados vinculados ao TJRJ possuem interesse econômico no julgamento do feito (CF, art. 102, I, “n”). Consignou, ademais, que o TJRJ, embora destituído de personalidade jurídica, detém legitimidade autônoma para ajuizar o presente mandado de segurança em defesa de sua autonomia institucional, estando, no caso, regularmente representado por advogado não vinculado aos quadros da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, em razão da natureza do direito pleiteado, nos termos da jurisprudência do STF. Entendeu, ainda, que as Súmulas 269 e 271 da Suprema Corte não incidem na espécie. Quanto ao mérito, ao reconhecer a complexidade da controvérsia, consignou que a resolução do litígio demanda diálogo entre Poderes e órgãos autônomos. Assim, é possível alcançar solução conciliatória para o quadro fático revelado pelas dificuldades declaradas pelo Estado do Rio de Janeiro em suas finanças, agravadas pela queda da arrecadação prevista para o orçamento de 2016. Além disso, o julgamento da medida cautelar não afasta a possibilidade de posterior audiência de conciliação entre as partes. No tocante à alegação do Estado-Membro de que não há impedimento legal para a utilização de recursos do FETJ para pagamento de salários dos servidores e magistrados, o relator ponderou ser inviável sua utilização para tal fim e para o custeio do TJRJ, nos termos do disposto no art. 2º da Lei estadual 2.524/1996 (“É vedada a aplicação da receita do Fundo Especial em despesas de pessoal”). Destacou, também, que a receita do FETJ origina-se, predominantemente, do pagamento de custas pelas partes que demandam no TJRJ e não são beneficiárias de gratuidade de Justiça, cuja destinação é exclusiva para custeio dos serviços afetos às atividades específicas do Poder Judiciário (CF, art. 98, § 2º). O relator afastou, em juízo liminar, a pretensão do Estado-Membro de compensar os duodécimos faltantes da receita orçamentária do TJRJ prevista para o exercício de 2016 com recursos do FETJ. Assentou que o direito prescrito no art. 168 da CF instrumentaliza o postulado da separação de Poderes, impedindo a sujeição dos demais Poderes e órgãos autônomos da República a arbítrios e ilegalidades perpetradas no âmbito do Executivo. Ponderou que a Corte, ao conceder medida liminar em caso semelhante (MS 31.671/RN, DJe de 30.10.2012), passou a avaliar a necessidade de se adequar a previsão orçamentária à receita efetivamente arrecadada, para fins de definição do direito ao repasse dos duodécimos aos demais Poderes e órgãos autônomos, sob o risco de se chegar a um impasse na execução orçamentária. Pontuou, ainda, que a lei orçamentária, no momento de sua elaboração, declara uma expectativa do montante a ser realizado a título de receita, que pode ou não vir a acontecer no exercício financeiro de referência, sendo o Poder Executivo responsável por proceder à arrecadação, conforme a política pública se desenvolva. Por essa razão, a Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF) instituiu o dever de cada um dos Poderes, por ato próprio, proceder aos ajustes necessários, com limitação da despesa, ante a frustração de receitas (art. 9º da LRF). Diante disso, o ministro ressaltou que, conforme debates travados no julgamento de mérito do MS 31.671/RN (suspenso em razão de pedido de vista), no âmbito federal, os contingenciamentos de receita e empenho operam em ambiente de diálogo entre o Poder Executivo — que sinaliza o montante de frustração da receita — e os demais Poderes e órgãos autônomos da República. No exercício da autonomia administrativa, tais instituições devem promover os cortes necessários em suas despesas, para adequarem as metas fiscais de sua responsabilidade aos limites constitucionais e legais autorizados e conforme a conveniência e a oportunidade. Reconheceu, no entanto, que esse ambiente de diálogo pode encontrar dificuldades no caso de algum Poder ou órgão autônomo se recusar a realizar essa autolimitação. Isso ocorreria em razão da suspensão, por força de cautelar proferida no julgamento da ADI 2.238/DF (DJe de 17.8.2007), da eficácia do § 3º do art. 9º da LRF, que prescreve a possibilidade de o Poder Executivo, por ato unilateral, estipular medida de austeridade nas esferas dos demais Poderes e órgãos autônomos. O que informa o julgamento da medida cautelar deferida nos autos da ADI 2.238/DF, no ponto, é a impossibilidade de se legitimar a atuação do Poder Executivo como julgador e executor de sua própria decisão. Segundo o relator, a Corte, ao deferir medida liminar no MS 31.671/RN, não pretendeu legitimar a atuação unilateral do Poder Executivo na constrição de recurso financeiro repassado ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN). Aliás, no caso do citado precedente, o contingenciamento foi admitido mediante decisão judicial, ressalvada a possibilidade de eventual compensação futura. Diante do déficit orçamentário, estimado em 19,6%, o Estado do Rio de Janeiro promulgou a Lei 7.483/2016, na qual reconheceu o estado de calamidade financeira declarado pelo Decreto 45.692/2016, bem como citou os esforços empreendidos pelo TJRJ, a fim de demonstrar seu compromisso com o alcance da regularidade fiscal e com a desoneração dos cofres públicos. Entendeu, contudo, que as medidas adotadas pelo TJRJ não se confundem com as de autolimitação previstas no art. 9º, “caput”, da LRF, no sentido de se limitarem as despesas previstas, para fins de adequação ao percentual da receita efetivamente arrecadada no exercício financeiro de 2016. Assentou, por fim, a inviabilidade de avaliação, em sede de mandado de segurança, da regularidade dos atos de governo e gestão praticados no Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro. Tais ações podem e devem ser submetidas a julgamento pelos órgãos competentes, não sendo a exigência de repasse integral dos duodécimos o meio adequado para se proceder à sanção de eventual ilegalidade, pois, nesse contexto, o real prejudicado acaba por ser o cidadão. Com razão, entretanto, a justificativa do TJRJ de que não se pode legitimar o cronograma orçamentário fixado pelo Executivo, em desrespeito ao art. 168 da CF. Afinal, retira a previsibilidade da disponibilização de recursos aos demais Poderes, subtraindo-lhes condições de gerir suas próprias finanças, considerada a frustração de receita, conforme sua conveniência e oportunidade. Entendeu que o repasse duodecimal deve ocorrer até o dia vinte de cada mês, nos termos do disposto no art. 168 da CF, de modo a garantir o autogoverno do Poder Judiciário — que não se sujeita à programação financeira e ao fluxo de arrecadação do Poder Executivo —, tendo em vista ser o repasse uma ordem de distribuição prioritária de satisfação de dotação orçamentária (MS 21.450/MT, DJU de 5.6.1992). O ministro Teori Zavascki acompanhou o relator. Asseverou que, em momentos de grave crise econômica, como os que vivem praticamente todos os Estados da Federação, devem ser asseguradas a autonomia e a igualdade entre os Poderes. Consignou que não faz sentido, em uma situação de acentuado déficit orçamentário — em que a realização do orçamento é muito inferior ao previsto —, que um determinado Poder ou órgão autônomo tenha seu duodécimo calculado com base em previsão de receita não realizada, em detrimento da participação de outros órgãos e Poderes. Concluiu que a base de cálculo dos duodécimos deve observar, além da participação percentual proporcional, o valor real de efetivo desempenho orçamentário e não o valor fictício previsto na lei orçamentária. Para o ministro Ricardo Lewandowski, que também acompanhou o relator, havendo frustração de receita, o ônus deve ser compartilhado de forma isonômica entre todos os Poderes.
CF, art. 98, §2º, art. 99, art. 168; LRF, art. 9º;
Número do Processo
34483
Tribunal
STF
Data de Julgamento
22/11/2016
Explore conteúdo relacionado para aprofundar seus estudos
Trata-se a discussão acerca do reconhecimento do benefício fiscal de isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI na aquisição de veículo novo por pessoa com deficiência visual (visão monocular). No ponto, a Lei n. 8.989/1995 dispõe sobre a isenção do IPI na aquisição de automóveis para utilização no transporte autônomo de passageiros, bem como por pessoa com deficiência. No seu art. 1º, IV (com a redação dada pela Lei n. 14.287/2021), a referida lei estabelece a isenção do IPI para pessoas com deficiência física, visual, auditiva e mental severa ou profunda e pessoas com transtorno do espectro autista. De início, importa registrar que a administração tributária encontra-se vinculada ao princípio da legalidade, devendo a sua atuação se dar nos limites do que a lei determina. Considerando essa premissa, a análise para a concessão do benefício fiscal de isenção do IPI deve ocorrer de acordo com as disposições estabelecidas em lei, especialmente a Lei n. 8.989/1995, não sendo legítima, portanto, a exigência de qualquer condição não prevista em lei. A controvérsia trazida à análise do Superior Tribunal de Justiça tem origem no entendimento do acórdão recorrido de que o fato de o contribuinte ser habilitado para dirigir automóveis de passeio, sem qualquer restrição na Carteira Nacional de Habilitação - CNH, seria impeditivo para a concessão do benefício pretendido, o que demonstraria a ausência de deficiência severa ou profunda e a inexistência de barreira para participação na sociedade. Ocorre que a Lei n. 8.989/1995 não faz qualquer exigência de restrição em relação à CNH daquele que pleiteia a isenção do IPI, bastando, para a concessão do benefício, a demonstração do quadro de deficiência, nos termos da lei. Desse modo, cabe afastar a interpretação dada pelo acórdão recorrido, a qual não encontra amparo na legislação, uma vez que não há qualquer exigência de restrição na CNH como condição para o reconhecimento da isenção do IPI.
Discute-se se o arresto eletrônico de ativos financeiros pode ser deferido após a tentativa de citação do devedor por via postal ou se seria necessário tentar citá-lo por oficial de justiça. A participação do oficial de justiça na execução por quantia certa não se dará de forma imperativa no momento do ato citatório, mas sim quando for necessária a expropriação de bens que, por sua natureza ou condição, não possam ser constritos e alienados sem a atuação desse auxiliar da Justiça. Em consulta à base de julgados do Superior Tribunal de Justiça, é possível localizar acórdão da Quarta Turma perfilhando o entendimento de que a citação, mesmo no processo de execução por quantia certa, pode também ser levada a efeito por via postal. No caso, não se discute, propriamente, qual seria a modalidade citatória a ser observada no processo executivo, mas sim, os requisitos para o deferimento do arresto de bens contra devedor não citado. No cenário hipotético desenhado pelos artigos 829 e 830 do Código de Processo Civil, a citação deveria ser realizada preferencialmente por oficial de justiça porque este, não logrando cumprir o mandado, estaria autorizado, desde logo, a proceder ao arresto de tantos bens quantos necessários para garantir a execução. Desautorizada a premissa desse raciocínio, isto é, admitindo-se que a citação pode ser feita por via eletrônica ou por via postal e considerando-se, de outra parte, que as medidas constritivas ocorrem, muitas vezes, sem a participação do oficial de justiça (BACENJUD, RENAJUD, SREI e ARISP), não se mostra razoável condicionar o arresto de bens a uma tentativa prévia de citação via oficial de justiça. Se a citação não precisa ser realizada por oficial de justiça e se ele nem mesmo tem condições materiais de promover o arresto de ativos financeiros, não há como condicionar o deferimento dessa medida constritiva a uma tentativa prévia de citação por este servidor. Com efeito, havendo tentativa, mesmo que frustrada, de localização do devedor, seja por via postal, seja por oficial de justiça, isso bastará para se deferir o arresto de bens. Na linha dos precedentes do STJ, não é possível exigir nem sequer o exaurimento das tentativas de localizar do executado.
Cinge-se a controvérsia quanto à possibilidade de condenação solidária dos réus ao ressarcimento dos danos pela prática de ato de improbidade administrativa. O art. 17-C, §2º, da Lei n. 8.429/1992, incluído pela Lei n. 14.230/2021, estabeleceu que "Na hipótese de litisconsórcio passivo, a condenação ocorrerá no limite da participação e dos benefícios diretos, vedada qualquer solidariedade". Quando do exame do Tema n. 1.199, o Supremo Tribunal Federal concluiu pela irretroatividade da Lei n. 14.230/2021, ocasião em que se limitou, a Corte Suprema, a reconhecer a aplicação das novas normas às hipóteses em que evidenciada uma abolição da tipicidade da conduta, sem que tenha, ainda, ocorrido o trânsito em julgado da decisão condenatória. Ao disciplinar o ressarcimento dos danos, quando da edição da Lei n. 14.230/2021, o legislador andara, claramente, ao largo do sistema de responsabilização por danos patrimoniais decorrentes de ato ilícito estabelecido desde o Código Civil de 1916. A disparidade se evidencia, ainda, em relação a variadas outras normas a disciplinar o controle interno dos entes públicos, a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração, o sistema de licitações para celebração de contratos administrativos, a preverem a existência de solidariedade entre coautores/partícipes de atos ilícitos, conforme art. 74, §1º, da CF; art. 4º, §2º, da Lei n. 12.846/2013; e artigos 8º, §2º, 15, V, 41, IV, 73 e 121, §2º da Lei n. 14.133/2021. O Código de Bevilácqua já dispunha, no início do século passado, no art. 1.518 que: "Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outros ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis como autores os cúmplices e as pessoas designadas do artigo 1.521". O Código Civil de 2002 também assim disciplinou a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos decorrentes de atos ilícitos, na forma do art. 942. Nesse sentido, a exegese que mais bem harmoniza o art. 17-C, §2º da LIA com o sistema de ressarcimento de danos causados por atos ilícitos é a de que, considerada as participações dos réus e as provas produzidas, em sendo possível ao julgador, deverá ele delimitar a responsabilidade de cada um dos demandados sobre os danos a serem ressarcidos de acordo com os seus comprovados desígnios. Em havendo, no entanto, a atribuição de participações de mesma intensidade entre todos os demandados na realização do ato ímprobo e, assim, na causação dos danos, não sendo viável individualizar em relação àqueles que contribuíram igualmente no cometimento do ato ilícito a vontade de participar de determinada porção desse ato à qual se pudesse compartimentalizar o dano correlato, possível será o reconhecimento da solidariedade. Sobre essa questão, conforme doutrina "[...] a única interpretação razoável do art. 17-C, §2º, da nova redação da LIA, é de que não há solidariedade entre os litisconsortes passivos quanto às sanções derivadas da condenação por ato de improbidade administrativa, como a multa civil e a perda do proveito próprio obtido por cada agente, ressalvado quanto à reparação do dano derivado daquele ato, que, em consonância com toda a secular construção legal e doutrinária sobre a responsabilidade por atos ilícitos, preconiza a solidariedade da obrigação passiva de reparação entre os agentes causadores". Com efeito, diferem, relevantemente, o ressarcimento dos danos e a aplicação das penas por força da condenação pela prática de atos ímprobos. Na expectativa de garantir a observância do princípio da intranscendência da pena, previsto artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal, o legislador de 2021 confundiu ressarcimento com sanção. A natureza das sanções é personalíssima, incidindo o princípio constitucional da individualização das penas, razão por que a sua imputação considera a efetiva participação de cada um dos condenados no empreendimento ilícito. O ressarcimento dos danos causados ao erário, por outro lado, decorre logicamente do reconhecimento do ato ilícito, da presença do dano efetivo e do nexo causal, e é informado pelo princípio da reparação integral, cabendo aos causadores do dano ao patrimônio da coletividade, a mais completa indenização. Logo, são efetivamente diversas as naturezas ressarcitória e sancionatória, razão por que é possível a conclusão no sentido de que o art. 17-C, §2º, da Lei n. 8.429/1992, dentro de uma interpretação sistemática com as demais normas do sistema jurídico brasileiro, é aplicável quando individualizáveis os desígnios dos agentes ativos do ato ilícito, mas não quando tenham, todos eles, participado em unidade de vontades no cometimento da improbidade, oportunidade em que se poderá atribuir a todos o dever de ressarcir integralmente os danos causados, na forma do art. 942 do CC.
A questão consiste em saber se a aplicação da agravante do art. 61, II, f, do Código Penal, em conjunto com o art. 24-A da Lei Maria da Penha, configura bis in idem. O Tribunal a quo entendendo configurar bis in idem afastou a agravante em questão, pois "... o crime de descumprimento de medidas protetivas está previsto na própria Lei n. 11.340/2006, sendo certo que o cometimento do delito em contexto de violência doméstica contra a mulher caracteriza circunstância elementar do crime, já considerada pelo legislador ao tipificar a conduta e cominar a pena". Sobre o tema, verifica-se que a Sexta Turma do STJ, julgando caso similar (AgRg no AREsp 2.593.440/SC, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe de 16/8/2024), entendeu que a agravante prevista no art. 61, II, f, do Código Penal se aplicaria ao crime de descumprimento de medida protetiva previsto no art. 24-A da Lei n. 11.340/2006. No entanto, ao examinar as razões que fundamentaram a conclusão do julgamento dos recursos especiais sob a sistemática dos recursos repetitivos, constata-se que a lógica empregada na fixação do Tema 1.197/STJ difere do contexto em que se insere a aplicação da mesma agravante ao delito de descumprimento de medida protetiva previsto na Lei Maria da Penha. Isso porque, a ratio decidendi que orientou a inteligência do STJ, no Tema 1.197/STJ, ao estabelecer a aplicabilidade da agravante insculpida no art. 61, II, f, do Código Penal ao delito descrito no art. 129, § 9º, do mesmo diploma legal, reside na necessidade de assegurar uma resposta penal mais rigorosa às condutas caracterizadas pelo abuso de autoridade ou pelo exercício de relações de intimidade, sejam elas de coabitação, hospitalidade ou vinculação doméstica, mormente quando envolvem violência contra a mulher, consoante definido pela legislação específica. Tais condutas representam uma violação à dignidade da pessoa humana, demandando uma intervenção consentânea à gravidade do comportamento delituoso. O art. 129, § 9º, do Código Penal possui como desiderato punir o crime de lesão corporal perpetrado no âmbito de relações domésticas ou familiares, independentemente do gênero da vítima. A norma busca tutelar o ambiente de convivência pessoal e familiar, preservando a harmonia e a segurança nesses espaços, sendo aplicável a todas as vítimas, indistintamente. Destarte, a lei não circunscreve sua proteção apenas a pessoas que se identificam com o gênero feminino. A Lei n. 11.340/2006 foi instituída para coibir a violência doméstica, reconhecendo as assimetrias históricas nas relações de gênero e demandando tutela diferenciada, seja no âmbito doméstico ou extradoméstico. Seus dispositivos encontram fundamento na compreensão de que tais relações demandam medidas mais rigorosas para enfrentar a violência decorrente de desigualdades estruturais. A aplicação simultânea de normas penais exige rigorosa análise hermenêutica, mormente quando se trata de dispositivos que tutelam idêntico bem jurídico. No caso específico da agravante do art. 61, II, f, do Código Penal e das disposições da Lei Maria da Penha, verifica-se potencial risco de duplicidade punitiva, porquanto ambas as normas convergem na reprovação de condutas que vulneram a dignidade da mulher em contextos de violência doméstica e familiar. A Lei n. 11.340/2006, detentora de natureza especial, destaca-se em face das disposições gerais do Código Penal ao tutelar especificamente as dinâmicas de violência de gênero. Fundamentada no princípio da especialidade, que privilegia a norma especial em situações de coexistência normativa, a Lei Maria da Penha já integra, em seus dispositivos, os elementos justificadores de agravamento da sanção previstos no art. 61, inciso II, alínea f, do Código Penal. Embora o art. 61, inciso II, alínea f, do Código Penal possa encontrar aplicação em contextos diversos daqueles abrangidos pela Lei Maria da Penha, no caso específico do art. 24-A, verifica-se sobreposição quanto ao fundamento e aos objetivos perseguidos por ambos os dispositivos. Impõe-se, portanto, a primazia da norma especial, resguardando-se a coerência do sistema jurídico e evitando-se a duplicidade sancionatória por razões idênticas. Resta evidente, assim, a ocorrência de bis in idem na aplicação simultânea do disposto no art. 61, inciso II, alínea f, do Código Penal e no art. 24-A da Lei Maria da Penha, pois ambos qualificam a mesma conduta de violência contra a mulher. Tal prática, ao desconsiderar os limites sistemáticos do ordenamento jurídico, viola os postulados da proporcionalidade e da vedação à dupla valoração punitiva.
A presente controvérsia consiste em decidir se: (I) é obrigatória a intervenção da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) em ação de adoção de criança indígena; e (II) se sim, qual o Juízo competente para o processamento de ação de adoção de criança indígena. Trata-se, na origem, de ação de adoção intuitu personae com pedido de tutela de urgência objetivando a adoção de criança indígena promovida por pessoa também indígena que cuida da referida criança desde o seu nascimento, pois convive em união estável com a genitora da infante. Inicialmente ajuizada na Justiça Estadual do Pará, houve declínio de competência para a Justiça Federal fundamentado na necessidade de intervenção da Fundação Nacional dos Povos Indígenas - FUNAI, ante a previsão dos artigos 109, I, da Constituição Federal; e 28, § 6º, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tem-se que o ECA, em seu art. 28, § 6º, III, determina que, na hipótese de procedimento de guarda, tutela ou adoção de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é obrigatória a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável por política indigenista e de antropólogos perante a equipe multidisciplinar que acompanhará o procedimento. Trata-se de determinação que busca respeitar a identidade social e cultural tanto das crianças e adolescentes indígenas quanto daquelas cujos pais sejam de origem indígena. Assim, seus costumes e tradições devem ser considerados no procedimento de colocação em família substituta, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pelo ECA e pela CF (art. 28, § 6º, I). Destarte, a obrigatoriedade da intervenção da FUNAI, pois, não deve ser vista como formalismo processual exacerbado, mas, ao revés, é mecanismo que legitima o processo adotivo de criança e adolescente oriundos de família indígena. Assim, maiores serão as chances de resguardar o melhor interesse da criança e do adolescente de origem indígena, de modo que a inobservância da regra que determina a participação da FUNAI no processo de adoção traz consigo a presunção de efetivo prejuízo, que somente se pode afastar em hipóteses excepcionalíssimas. Visto isso, verificada a obrigatoriedade de intervenção da FUNAI em processos de guarda, tutela ou adoção de criança e adolescente de origem indígena, busca-se analisar se essa intervenção atrai, por si só, a competência da Justiça Federal. A competência da Justiça Federal está prevista nos incisos I a XI do art. 109 da CF. O inciso I do referido dispositivo determina que serão julgadas pela Justiça Federal "as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho". Por sua vez, o inciso XI determina que compete aos juízes federais processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas. No que concerne à temática aqui analisada, conclui-se que será de competência da Justiça Federal o julgamento de demandas em que (I) autarquias federais sejam autoras, rés, assistentes ou oponentes; bem como se (II) a ação tratar de disputa de direitos indígenas. Ainda, observa-se que, nos termos da Súmula 150/STJ, é a Justiça Federal quem deve decidir se há interesse jurídico que justifique a presença da União, suas autarquias ou empresas públicas no processo. Por tudo isso, tem-se que a presença da FUNAI no processo não atrai, necessariamente, a competência da Justiça Federal. A participação da FUNAI em demandas de adoção visa auxiliar o Poder Judiciário na colocação de crianças e adolescentes de origem indígena em família substituta, compreendendo seus costumes e tradições. Na ação de adoção de criança indígena, portanto, a FUNAI não exerce direito próprio, não figurando como autora, ré, assistente ou oponente. Trata-se, em verdade, de atuação consultiva perante a equipe multidisciplinar que acompanhará a demanda (art. 28, § 6º, ECA). Ademais, a ação de adoção de criança indígena não tem como escopo a disputa de direitos indígenas (como definidos no art. 231, CF), mas, sim, o resguardo da integridade psicofísica da criança ou adolescente de origem indígena, a fim de que possam ser colocados em família substituta capaz de acolhê-los com carinho e respeito necessários ao seu livre desenvolvimento, respeitando sua etnia. Portanto, o fato de a criança ou o adolescente adotandos pertencerem a etnia indígena não atrai, por si só, a competência da Justiça Federal para o processamento da ação de adoção. Com efeito, o procedimento de adoção diz respeito a direito privado, uma vez se tratar de interesse particular de criança ou adolescente, ainda que de origem indígena, não sendo devida a aplicação da competência prevista no art. 109, I e XI, da CF. É de se reconhecer que a Vara da Infância e Juventude apresenta maiores e melhores condições de acompanhar procedimento de adoção de crianças e adolescentes de origem indígena, porquanto conta com equipe interprofissional ou multidisciplinar especializada para acompanhar demandas dessa espécie. Assim, é do melhor interesse de crianças e adolescentes indígenas a competência da Justiça Estadual para processar e julgar ações de adoção, uma vez que a Vara da Infância e Juventude terá maiores e melhores condições de acompanhar o procedimento, contando com equipe técnica qualificada e especializada. Nesse contexto, a intervenção da FUNAI em tais situações, ainda que obrigatória, não atrai a competência automática da Justiça Federal.