Obrigatoriedade de cobertura de glotoplastia para feminilização da voz pelos planos de saúde
Cinge-se a controvérsia em definir se a glotoplastia, no contexto do processo transexualizador, é procedimento de cobertura obrigatória pelos planos de saúde, mesmo sem previsão expressa no rol da ANS e determinar se a negativa de cobertura justifica a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. A Lei n. 14.454/2022 alterou a Lei n. 9.656/1998 para admitir a cobertura de tratamentos não previstos no rol da ANS, desde que respaldados por evidências científicas, indicados por médico assistente e aprovados por órgãos técnicos, afastando a taxatividade do rol de procedimentos. A glotoplastia, indicada para remodelamento vocal de mulheres transexuais com diagnóstico de disforia vocal, integra o processo terapêutico singular de afirmação de gênero, com finalidade clínica e psicológica, sendo reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina e incorporada ao SUS, não se tratando de procedimento experimental ou estético. A negativa de cobertura, com base apenas na ausência do procedimento no rol da ANS, configura conduta abusiva, por violar a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o direito fundamental à saúde, especialmente quando demonstrada a indicação médica e a eficácia terapêutica do tratamento. Conforme jurisprudência consolidada no STJ, a recusa injustificada de cobertura por plano de saúde enseja dano moral in re ipsa , sobretudo quando agrava a vulnerabilidade da beneficiária e compromete sua saúde psicossocial. A aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, conforme Resolução CNJ n. 492/2023, é indispensável à adequada compreensão da vulnerabilidade interseccional enfrentada por mulheres trans na judicialização do acesso à saúde.
Gratuidade de justiça da pessoa natural: presunção de hipossuficiência e limites a critérios objetivos
A questão submetida a julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, nos termos do art. 1.036 do Código de Processo Civil, para formação de precedente vinculante previsto no art. 927, III, do Código de Processo Civil, é a seguinte: "definir se é legítima a adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural, levando em conta as disposições dos arts. 98 e 99, § 2º, do Código de Processo Civil". A análise das normas que regulamentam a gratuidade judiciária tem por premissa interpretativa a finalidade para a qual foi estabelecido o referido instituto, que é afastar a escassez de recursos como fator de exclusão do acesso à justiça. O benefício da justiça gratuita depende de requerimento formulado ao juiz da causa e não se relaciona com a demonstração da plausibilidade do direito vindicado na demanda. Está atrelado, exclusivamente, à insuficiência de recursos para o pagamento das despesas processuais. O Código de Processo Civil adotou parâmetro abstrato de elegibilidade para a gratuidade judiciária, pois não detalhou como será avaliada a condição de hipossuficiência econômica, tampouco os meios para sua comprovação. Há apenas a utilização da expressão aberta "insuficiência de recursos" e a indicação de que o benefício será conferido na forma da lei. A opção legislativa pela utilização de parâmetro abstrato de elegibilidade para a gratuidade judiciária (insuficiência de recursos), conjugada com a expressão "na forma da lei" disposta na parte final do art. 98 do CPC, leva-nos à conclusão de que a concessão desse benefício deve pautar-se por critérios subjetivos. Nesse sentido, cumpre ao magistrado analisar as condições econômicas e financeiras da parte postulante da justiça gratuita com fundamento nas peculiaridades do caso concreto. Não há amparo legal, portanto, para sujeitar-se o deferimento do benefício à observância de determinados requisitos objetivos preestabelecidos judicialmente. O argumento da isonomia, ao invés de justificar a implementação de parâmetros objetivos para a gratuidade judiciária, reforça a necessidade de que o exame da insuficiência de recursos seja realizado casuisticamente, tomando-se por consideração as peculiaridades do caso. A igualdade não deve ser concebida exclusivamente sob o aspecto formal. Deve ser observada também sob a perspectiva material ou substantiva, com a finalidade de reduzir as desigualdades de fato para a promoção do acesso à justiça. A declaração de hipossuficiência econômica apresentada por pessoa natural, todavia, apresenta presunção relativa de veracidade. O art. 99, § 2º, do CPC estabelece que o magistrado poderá indeferir o pedido de gratuidade, caso existam nos autos elementos de prova que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a sua concessão. Em todo caso, faz-se necessário que o juiz, antes de indeferir o pedido, intime a parte requerente para que comprove o preenchimento dos requisitos à obtenção da justiça gratuita. Essa norma procedimental é deveras importante, pois realça não apenas a presunção iuris tantum da declaração de pobreza da pessoa natural, mas, principalmente, a opção legislativa pelo caráter eminentemente subjetivo da análise do requisito da insuficiência de recursos para a concessão da gratuidade judiciária. Dessa forma, mesmo que existam nos autos elementos de prova que, em princípio, conduziriam ao indeferimento do pedido de gratuidade, deve o magistrado intimar a parte requerente para comprovar a hipossuficiência econômica com base nas circunstâncias do caso concreto. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, tanto sob a ótica da Lei n. 1.060/1950 como a partir da regulamentação promovida pelo atual Código de Processo Civil, tem sido firme quanto à impossibilidade de utilização de parâmetros unicamente objetivos para o exame do pedido de justiça gratuita. Entende-se que a hipossuficiência econômica da parte requerente deve ser avaliada com fundamento em um conjunto de condições factualmente aferíveis, considerando-se a situação particular de cada litigante em arcar com as despesas processuais. Da mesma forma, também está consolidado o entendimento jurisprudencial a respeito da presunção relativa ( iuris tantum ) de veracidade da declaração de pobreza formulada por pessoa natural. Essa orientação deve ser ratificada neste precedente qualificado para que não seja autorizada a adoção exclusiva de critérios objetivos para a aferição da hipossuficiência econômica no exame do pedido de gratuidade judiciária. Com efeito, são razoáveis as preocupações relacionadas ao ajuizamento de lides temerárias a sobrecarregar o funcionamento do Poder Judiciário. Nesse particular, a concessão indiscriminada do benefício da justiça gratuita com base na simples declaração de hipossuficiência poderia, em tese, contribuir para a utilização abusiva desse direito, comprometendo o próprio princípio de acesso à justiça, sob o viés da efetividade da tutela jurisdicional. Contudo, a diversidade das situações presentes no plano fático assim como as discrepâncias sociais, culturais e econômicas existentes entre as regiões do Brasil tornam impossível a padronização de critérios adequados a compatibilizar a concessão da gratuidade judiciária com o direito de acesso à justiça. Deve-se salientar que o art. 98 do CPC, ao se referir à expressão "insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios", trouxe novos horizontes à antiga correlação existente na Lei n. 1.060/1950 entre a justiça gratuita e a figura do necessitado, conceituado como aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas sem o comprometimento do sustento próprio ou da família. No contexto atual, a concessão da gratuidade pode ocorrer apenas em relação à prática de determinado ato ou diligência processual, ou ainda consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento. O CPC prevê, inclusive, a possibilidade de o juiz conceder o parcelamento de despesas processuais. O benefício da gratuidade judiciária não deve se fundar na lógica do tudo ou nada, mas sim na técnica da granularidade, permitindo-se a concessão parcial do benefício (limitado a um ou alguns atos previstos em lei), o deferimento de benefício reduzido (em que há a redução percentual do valor a ser pago para viabilizar proporcionalmente o acesso à justiça) ou ainda o parcelamento das despesas processuais. Tais circunstâncias reforçam o entendimento de que o legislador optou por adotar um parâmetro abstrato de elegibilidade para a gratuidade judiciária, o que nos leva à conclusão de que a concessão desse benefício deve pautar-se por critérios subjetivos e não exclusivamente objetivos. Portanto, cumpre ao magistrado analisar as condições econômicas e financeiras da parte postulante da justiça gratuita com base nas peculiaridades do caso concreto, considerando não apenas o processo judicial como um todo, mas eventuais impactos financeiros da diligência processual a ser realizada. A esse respeito, existem inúmeras variáveis que podem nortear a atuação do magistrado quando estiver diante de um pedido de gratuidade judiciária, tendo em vista a necessidade de equilibrar a realização do direito fundamental de acesso à justiça, sem, contudo, banalizar o referido benefício e comprometer a própria finalidade. Nessa linha, a percepção de renda mínima por pessoa natural, a participação em programas sociais destinados à população de baixa renda, a situação de superendividamento, o acometimento de doença grave ou incapacitante, a propriedade de bens são referenciais igualmente válidos para a aferição do requisito insuficiência de recursos para o custeio das despesas processuais. Em todo caso, não é possível que o exame da condição de vulnerabilidade econômica prenda-se a um único parâmetro ou critério objetivo, a exemplo do rendimento da parte requerente, devendo ser consideradas e ponderadas as demais circunstâncias e particularidades existentes no caso concreto. Diante de tudo o que foi exposto, a recorrência a parâmetros objetivos deve ser admitida tão somente em caráter suplementar, isto é, não se prestando ao indeferimento de plano do pedido de gratuidade, mas para justificar o procedimento previsto no art. 99, § 2º, do CPC, permitindo que o juiz intime a parte requerente para comprovar a situação de miserabilidade jurídica perante o caso concreto. Assim, fixam-se a seguintes teses do Tema Repetitivo 1178/STJ: i) É vedado o uso de critérios objetivos para o indeferimento imediato da gratuidade judiciária requerida por pessoa natural; ii) Verificada a existência nos autos de elementos aptos a afastar a presunção de hipossuficiência econômica da pessoa natural, o juiz deverá determinar ao requerente a comprovação de sua condição, indicando de modo preciso as razões que justificam tal afastamento, nos termos do art. 99, § 2º, do CPC; iii) Cumprida a diligência, a adoção de parâmetros objetivos pelo magistrado pode ser realizada em caráter meramente suplementar e desde que não sirva como fundamento exclusivo para o indeferimento do pedido de gratuidade.
Reconhecimento de guardas municipais e agentes de trânsito como segurança pública para antiguidade penitenciária
Cinge-se a controvérsia a discutir a possibilidade de reconhecimento das atividades de Agente Municipal de Trânsito e de Guarda Municipal como de segurança pública, para fins de promoção por antiguidade na atual carreira de Agente Penitenciário. Na origem, concluiu-se pela taxatividade do rol dos órgãos encarregados da segurança pública contidos no caput do art. 144 da Constituição da República. Contudo, esse entendimento é contrário à atual legislação e à orientação jurisprudencial das Cortes de vértice. Quanto à atividade de Guarda Municipal, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento na ADPF n. 995 de que é considerada como de segurança pública, nos termos do art. 144, § 8º, da Constituição Federal. Relativamente à atividade de Agente de Trânsito, cumpre destacar que a Emenda Constitucional n. 82/2014 a incluiu no § 10 do art. 144 da Constituição Federal, estabelecendo que a segurança viária tem como objetivo "a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas". Ressalta-se, ainda, que a Lei n. 13.675/2018, que disciplinou a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, nos termos do § 7° do art. 144 da Constituição Federal, dispõe, em seu art. 9°, § 2°, incisos VII e XV, que os guardas municipais e os agentes de trânsito são integrantes operacionais do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Portanto, o período exercido nos mencionados cargos deve ser considerado para promoção por antiguidade na atual carreira de Agente Penitenciário.
Nervosismo ao avistar polícia caracteriza fundadas razões para busca pessoal
A validade da busca pessoal está condicionada à existência de fundadas suspeitas, amparadas em situação fática que denote - diante das peculiaridades e da dinâmica dos acontecimentos próprios da diligência policial - clareza e objetividade quanto à posse, pelo investigado, de objeto que constitua corpo de delito. Quanto à busca domiciliar, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 603.616/RO, ao analisar a questão das provas obtidas por policiais sem mandado de busca e apreensão, fixou a tese constante no Tema n. 280 do STF da repercussão geral, que valida a entrada forçada em domicílio "[...] mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito [...]". Sobre a dinâmica dos fatos, consignou-se nos autos que os agentes policiais, em patrulhamento de rotina, fizeram a abordagem porque visualizaram um carro parado em uma casa de esquina, local que estavam o agravante e outro rapaz, sendo que o agravante estava com tornozeleira eletrônica e demonstrou entregar ou pegar algo dentro do veículo, situação que despertou a suspeita de ocorrência de delito. Ao avistar a viatura policial, o agravante apresentou nervosismo, instante em que os militares realizaram a abordagem para averiguações de rotina. Em busca pessoal, os militares encontraram no bolso do agravante 2 (dois) comprimidos de ecstasy e 1 (uma) porção de cocaína. Ao ser questionado pela equipe policial, o agravante informou aos militares que realizava o comércio de entorpecentes com o auxílio de um indivíduo que guardava as substâncias em outra residência e que havia mais substâncias ilícitas em sua residência. Diante das informações, os militares compareceram na residência do agravante. Realizada a busca domiciliar, os policiais encontraram 12 (doze) porções de cocaína e 26 (vinte e seis) comprimidos de ecstasy e 1 (um) caderno de anotações. Ato contínuo, o agravante indicou aos militares o endereço da residência do indivíduo que o auxiliava. Diante das informações, a equipe policial compareceu no local informado. O total de entorpecentes encontrados na ocorrência policial (posse e residência) consiste em 4 (quatro) porções de maconha, como massa bruta de 470g (quatrocentos e setenta gramas), 16 (dezesseis) porções de cocaína, com massa bruta total de 432,31g (quatrocentos e trinta e dois gramas e trinta e um miligramas), 1 (uma) porção de crack, com massa bruta de 127,723g (cento e vinte e sete gramas e setecentos e vinte e três miligramas) e 28 (vinte e oito) comprimidos de ecstasy . Note-se que a busca domiciliar na residência do agravante se deu de modo imediato e que ele revelou que terceira pessoa guardava drogas que traficavam em conjunto, o que gerou uma segunda apreensão. Nesse contexto, o entendimento do Tribunal local está em consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quanto à licitude da busca pessoal, pois a diligência foi amparada na fundada suspeita de que o acusado estaria na posse de objeto de crime. Ademais, quanto a circunstância do "nervosismo", o Supremo Tribunal Federal, já a entendeu como apta a demonstrar a possibilidade de atuação policial. Nesse ponto, com base na análise de julgados da Primeira e segunda Turmas, constata-se que a maioria do Plenário do STF reconhece a tese de que, no mínimo, o "nervosismo" pode caracterizar as "fundadas razões". Nesse sentido: ARE 1.493.264-AgR, Ministro Cristiano Zanin, Primeira Turma, DJe de 4/7/2024 e RE 1.533.503-AgR, relator Ministro Edson Fachin, relator para o acórdão Ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, DJe de 13/5/2005. Da mesma forma, o ingresso no imóvel e a consequente busca e apreensão domiciliar empreendida foram evidentemente precedidas de fundadas razões. Isso porque os policiais conseguiram verificar os indícios da ocorrência do delito permanente ainda no exterior da residência, por meio da apreensão das drogas que o agravante portava e de sua confissão de que armazenava mais drogas para revenda no interior da residência, o que justificou o ingresso no domicílio. Acrescenta-se que, tratando-se de delito praticado, em tese, na modalidade "ter em depósito", a consumação se prolonga no tempo e, enquanto configurada essa situação, a flagrância permite a busca domiciliar, independentemente da expedição de mandado judicial, desde que presentes fundadas razões de que, no interior do imóvel, ocorre a prática de crime. A justa causa, nesse contexto, não exigiria a certeza da ocorrência de delito, mas sim a existência de fundadas razões que a justifiquem.
Vale-pedágio adiantado e separado pelo embarcador com indenização em dobro supressio inaplicável
No caso, o Tribunal de origem, deu provimento ao recurso de apelação interposto por transportadora para afastar a multa do art. 8º da Lei n. 10.209/2001, reconhecendo que as partes haviam ajustado previamente a inclusão dos valores do pedágio no montante do frete. Essa prática foi corroborada por e-mails trocados entre as partes, nos quais o representante da autora indicou que o valor do frete incluía demais despesas. Contudo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que, "a Lei n. 10.209/2001 tornou obrigatório o pagamento, pelo embarcador, do vale-pedágio de forma adiantada e em separado, sendo que, em caso de descumprimento, o art. 8º da Lei prevê a penalidade denominada 'dobra do frete', pela qual o embarcador será obrigado a indenizar o transportador em quantia equivalente a duas vezes o valor do frete contratado" (AgInt no AREsp 1.865.155/SP, Relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 16/10/2023). No mesmo sentido: "A penalidade prevista no art. 8º da Lei n. 10.209/2001 é uma sanção legal, de caráter especial, prevista na lei que instituiu o vale-pedágio obrigatório para o transporte rodoviário de carga, razão pela qual não é possível a convenção das partes para lhe alterar o conteúdo, bem assim a de se fazer incidir o ponderado art. 412 do CC/2002" (REsp 1.694.324/SP, Rel. p/ acórdão Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 27/11/2018, DJe de 05/12/2018). Ainda, a jurisprudência do STJ também é assente no sentido de que não se aplica o instituto da supressio na relação entre o transportador e o contratante do serviço de transporte a fim de tornar inexigível o pagamento do vale-pedágio de forma adiantada e em separado, tendo em vista a natureza cogente da norma que institui a multa denominada de "dobra do frete".