ANPP natureza híbrida retroatividade e regime procedimental de proposição pelo Ministério Público
A Lei n. 13.964/2019, de 24/12/2019, com vigência superveniente a partir de 23/1/2020, conhecida como "Pacote Anticrime", inseriu no Código de Processo Penal o art. 28-A, que disciplina o instrumento de política criminal denominado Acordo de Não Persecução Penal - ANPP. Sobre o tema, a Terceira Seção desta Corte vinha consagrando o entendimento de que o Acordo de Não Persecução Penal - ANPP corresponde a um negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o investigado, juntamente com seu defensor, como alternativa à propositura de ação penal, para certos crimes, mediante o cumprimento de algumas condições e desde que preenchidos os requisitos legais. Ademais, a jurisprudência desta Corte assentou-se no sentido de que "o acordo de não persecução penal se aplica a fatos ocorridos antes da Lei n. 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. O caráter predominantemente processual do art. 28-A do CPP e a razão de ser do instituto conduzem a se sustentar que sua retroatividade, diversamente do que ocorre com as normas híbridas com prevalente conteúdo material, deve ser limitada à fase pré-processual da persecutio criminis" (AgRg no REsp 1.993.219/CE, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 9/8/2022). Ressalvava-se a possibilidade de aplicação do ANPP após o oferecimento da denúncia, em casos de superveniente alteração do enquadramento jurídico da conduta imputada ao réu que redundem no preenchimento dos requisitos objetivos de prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima em abstrato inferior a 4 (quatro) anos. Na mesma linha do entendimento, a Primeira Turma do STF, no julgamento do HC n. 191.464/SC, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso (DJe 18/9/2020), externou a impossibilidade de fazer-se incidir o ANPP quando já existente condenação, conquanto ela ainda esteja suscetível de impugnação. Na ocasião, o ilustre Relator da Corte Suprema manifestou seu entendimento no sentido de que a Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o ANPP, pode ser considerada lei penal de natureza híbrida, pois (i) tem natureza processual por estabelecer a possibilidade de composição entre as partes com o fim de evitar a instauração da ação penal; e (ii) tem natureza material em razão da previsão de extinção da punibilidade de quem cumpre os deveres estabelecidos no acordo (art. 28-A, § 13, do Código de Processo Penal - CPP). Relembrou, ainda, que, diante de leis penais híbridas, a conformação entre os postulados da retroatividade penal mais benéfica ao réu - prevista no art. 5º, XL, da CF e no art. 2º, parágrafo único, do Código Penal - e da aplicação imediata da lei processual penal segundo o postulado tempus regit actum (art. 2º do Código de Processo Penal) será realizada pelo intérprete da norma legal, caso não tenha sido efetuada expressamente pelo legislador. Com base nessas premissas, firmou a convicção de que o texto do art. 28-A do Código de Processo Penal evidenciava que a composição ali prevista se esgotava na fase anterior ao recebimento da denúncia, "Não apenas porque o dispositivo refere investigado (e não réu) ou porque aciona o juiz das garantias (que não atua na instrução processual), mas sobretudo porque a consequência do descumprimento ou da não homologação é especificamente inaugurar a fase de oferta e de recebimento da denúncia (art. 28-A, §§ 8º e 10)". Nessa toada, salientou que "a finalidade do acordo é evitar que se inicie processo, razão pela qual, por consequência lógica, não se justifica discutir a composição depois de recebida a denúncia" (HC 191.464/SC, Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 18/9/2020). Contudo, recentemente, em 18/9/2024, o Plenário do Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento do HC 185.913/DF, no qual, por maioria de votos, assentou a possibilidade de aplicação retroativa do art. 28-A do CPP aos casos em que ainda não haja trânsito em julgado da sentença condenatória. No referido julgamento, prevaleceu a compreensão externada pelo Ministro Gilmar Mendes, assim como pela Segunda Turma do STF, no sentido de que, muito embora o ANPP corresponda a um negócio jurídico processual penal, ele tem um impacto direto em relação ao poder punitivo estatal, na medida em que sua celebração implica a interdição da própria persecução penal. Nessa linha, o instituto também se reveste de conteúdo de direito material no que tange às suas consequências que dizem respeito à dicotomia "lícito-ilícito", intimamente ligada à dicotomia "punível - não punível", pelo que se caracteriza como norma processual de conteúdo material. Assim, por se tratar de lei processual de conteúdo material, a ela deve ser aplicada a regra intertemporal de direito penal material (art. 5º, XL, da CF) que autoriza a incidência retroativa do benefício aos processos ainda em andamento quando da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, desde que não haja condenação definitiva, pois se trata de medida despenalizadora mais benéfica ao réu. Nesse sentido: RHC 213.118 AgR, Ministro André Mendonça, Segunda Turma, DJe 7/7/2023). Portanto, diante desse novo panorama, deve ser alterada a atual compreensão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema para alinhar-se ao entendimento da maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de aplicação retroativa do art. 28-A do Código de Processo Penal. Isso posto, são fixadas as seguintes teses sobre a questão: 1 - O Acordo de não persecução penal constitui um negócio jurídico processual penal instituído por norma que possui natureza processual, no que diz respeito à possibilidade de composição entre as partes com o fim de evitar a instauração da ação penal, e, de outro lado, natureza material em razão da previsão de extinção da punibilidade de quem cumpre os deveres estabelecidos no acordo (art. 28-A, § 13, do Código de Processo Penal - CPP). 2 - Diante da natureza híbrida da norma, a ela deve se aplicar o princípio da retroatividade da norma penal benéfica (art. 5º, XL, da CF), pelo que é cabível a celebração de acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado da condenação. 3 - Nos processos penais em andamento em 18/09/2024 (data do julgamento do HC 185.913/DF, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal), nos quais seria cabível em tese o ANPP, mas ele não chegou a ser oferecido pelo Ministério Público ou não houve justificativa idônea para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo no caso concreto. 4 - Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir de 18/09/2024, será admissível a celebração de ANPP antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura do acordo, no curso da ação penal, se for o caso.
Impossibilidade do Juízo da Execução Penal impor condições não previstas no acordo de colaboração premiada
A pena decorrente do acordo de colaboração premiado não constitui reprimenda no sentido estrito da palavra, pois não decorre de sentença de natureza condenatória decretada pelo Poder Judiciário, mas sim de pacto firmado entre o Ministério Público e o agente dentro das hipóteses previstas no nosso ordenamento jurídico. Eventual descumprimento dos termos do acordo pelo colaborador implica na sua revogação e no oferecimento de denúncia pelo Parquet em seu desfavor, com o regular andamento da ação penal até a prolação de sentença. Sobre o tema, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgRg na Pet 12.673/DF, relator Ministro Raul Araújo, já assentou que "a privação de liberdade oriunda do acordo de colaboração premiada não equivale à prisão-pena" e, desta forma, por não possuir a natureza jurídica de sanção penal, na sua execução não se deve obedecer as regras previstas na Lei de Execução Penal para o cumprimento de reprimenda decorrente de uma sentença condenatória. Assim, o cumprimento do que foi pactuado entre o Ministério Público e o acusado obedece aos termos que restaram assentados no acordo de colaboração premiada e não as regras da Lei de Execução Penal, pois deve "ser respeitado o limite máximo e global da sanção ajustada no ato cooperativo" (STF, RE 1.366.665 AgR, Relator Min. Edson Fachin, Segunda Turma, DJe de 22/8/2024). Desta forma, na execução do acordo de colaboração premiada devem ser observados os termos nele fixados, por não se tratar de execução penal típica.
Fixação equitativa de honorários sucumbenciais em proveito econômico inestimável artigo 85 parágrafo 8 CPC
O arbitramento dos honorários sucumbenciais, de acordo com a ordem de preferência estabelecida no § 2º do art. 85 do Código de Processo Civil (CPC), deve seguir os seguintes critérios objetivos: 1º) nas causas em que houver condenação, esse é o critério a ser utilizado pelo magistrado, observando o parâmetro legal entre 10% e 20%; 2º) nas causas em que não houver condenação, deve o magistrado arbitrar os honorários de acordo com o proveito econômico aferido; e 3º) não sendo possível mensurar o proveito econômico, sendo ele inestimável ou irrisório, a verba sucumbencial deve ser arbitrada de acordo com o valor da causa. Com o CPC de 2015, o legislador pretendeu atribuir regras diferentes àquelas previstas no código revogado, de forma a coibir o ajuizamento de demandas sem probabilidade de êxito. Ademais, a condenação em honorários advocatícios passou a ter também caráter sancionador. Já o § 8º do art. 85 do CPC contemplou a regra excepcional de apreciação equitativa do juiz para fixar os honorários quando o valor da causa for muito baixo ou o proveito econômico for inestimável ou irrisório. Nesse sentido, são de valor inestimável as causas relativas a bens jurídicos a que não se possa atribuir um valor econômico, que não podem ser mensurados, avaliados ou calculados. A indenização, "em casos de danos morais, não visa reparar, no sentido literal, a dor, a alegria, a honra, a tristeza ou a humilhação; são valores inestimáveis, mas isso não impede que seja precisado um valor compensatório, que amenize o respectivo dano, com base em alguns elementos como a gravidade objetiva do dano, a personalidade da vítima, sua situação familiar e social, a gravidade da falta, ou mesmo a condição econômica das partes" (REsp n. 239.973/RN, Quinta Turma). Ainda que obrigatória a indicação do valor da causa (art. 292, V, do CPC), a pretensão do autor de ação de indenização é ver reconhecida a responsabilidade pelo dano que lhe foi causado e obter a reparação pelo dano moral sofrido. Por isso, o valor da causa especificado pelo demandante na inicial tem caráter meramente indicativo. Logo, caberá ao magistrado ponderar os elementos trazidos aos autos e, se decidir pela procedência do pedido reparatório, fixar quantum indenizatório suficiente para reparar os danos imateriais suportados pela vítima do ato danoso. O entendimento de que o valor indicado na inicial de ação de indenização é mero referencial que pode ser útil para balizar a decisão do juízo é reforçado pelo fato de que não se configura sucumbência recíproca quando o demandado em ação de indenização por dano moral for condenado em montante inferior àquele postulado na inicial (Súmula n. 326/STJ). Considerando que o "direito à compensação de dano moral, conforme a expressa disposição do art. 12 do Código Civil (CC), exsurge de condutas que ofendam direitos da personalidade (como os que se extraem dos arts. 11 a 21 do CC), bens tutelados que não têm, per se, conteúdo patrimonial, mas extrema relevância conferida pelo ordenamento jurídico, quais sejam: higidez física e psicológica, vida, liberdade (física e de pensamento), privacidade, honra, imagem, nome, direitos morais do autor de obra intelectual" (AgInt no REsp n. 1.884.984/SP, Quarta Turma), o pedido de reconhecimento de violação de direito de imagem deve ser considerado de valor inestimável, atraindo a incidência do art. 85, § 8º, do CPC.
Irretroatividade de mudança interpretativa da Administração Tributária na cobrança de tributos
Cinge-se a controvérsia em saber se ausência de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços - ICMS sobre a subvenção advinda da conta de Desenvolvimento Energético (CDE) importa em mudança de orientação reiterada para os fins do art. 146 do Código Tributário Nacional (CTN). Nesse sentido, para a referida análise se faz necessária a interpretação conjunta do art. 146 do CTN, com o art. 100 do mesmo diploma legal. O art. 100 do CTN assim está plasmado: "São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos: I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; II - as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa; III - as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas; IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo". No caso, o Estado recorrente não cobrava ICMS sobre a subvenção referida, o que implica na caracterização de uma prática reiterada da administração tributária, ou seja, norma complementar para os fins do inciso III do art. 100 do CTN. Por sua vez, o art. 146 do CTN tem o seguinte teor: "A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução". O parágrafo único do art. 100 do CTN acrescenta a disposição no sentido de que devem ser excluídas as penalidades, juros e correção monetária da base de cálculo do tributo. Todavia, a tese de que apenas essas parcelas deveriam ser excluídas, sendo impositivo o pagamento de tributo de fatos geradores ocorrentes quando daquela prática reiterada, vai de encontro à disposição do referido normativo de caracterizar como norma complementar essa prática da administração, porquanto como norma tributária deve obedecer aos princípio da irretroatividade, vedando que a alteração dessas práticas possa atingir fatos já realizados na égide dessa norma complementar. Dessa forma, com a análise dos dois dispositivos acima transcritos, verifica-se que a alteração na cobrança de imposto que não estava sendo cobrado, em face de uma decisão administrativa, determina que o tributo somente pode incidir quanto a fato gerador posterior à modificação administrativa.
Autonomia universitária na escolha da banca de concurso docente e controle judicial limitado
Cinge-se a controvérsia acerca da possibilidade de interferência do Poder Judiciário na escolha dos membros da banca examinadora de concurso público, diante da autonomia assegurada às universidades. A autonomia universitária está expressamente prevista na Constituição da República, a qual dispõe, em seu art. 207, que "[a]s universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão". O art. 53, parágrafo único, inciso V (então vigente), da Lei n. 9.394/1996, por sua vez, estabelece que caberá aos colegiados de ensino e pesquisa das universidades decidir acerca da contratação e dispensa de servidores, o que engloba, por óbvio, as regras a serem observadas no concurso público para ingresso de novos professores. Com efeito, o "art. 53 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional traz, em rol exemplificativo, os atributos vinculados à autonomia universitária, aspectos que guardam liame como a gestão administrativa e as diretrizes didático-pedagógicas da universidade, a respeito dos quais, em regra, não cabe a ingerência do Poder Judiciário" (AgRg no REsp n. 1.434.254/PE, relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 27/3/2014, DJe de 2/4/2014). Ademais, nos termos da remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a atuação do Poder Judiciário, em matéria de concurso público, limita-se à averiguação da observância dos princípios da legalidade e da vinculação ao edital, tendo presente a discricionariedade da Administração Pública quanto à fixação dos critérios e normas reguladoras do certame. Nesse sentido: AgInt no RMS n. 69.589/BA, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 6/3/2023, DJe de 15/3/2023. No caso em discussão, os incisos IX e X do art. 39 do Regimento Geral da Universidade de São Paulo dispunham que competia à Congregação decidir sobre a composição das comissões julgadoras dos concursos da carreira docente e de livre-docência e homologar o relatório da comissão julgadora de concursos da carreira docente e de livre-docência. Assim, ao tecer considerações acerca da banca examinadora escolhida pela Congregação da Faculdade de Direito da referida Universidade, em especial quanto à presença de dois professores sem formação jurídica e em relação à suposta desídia da Universidade na tentativa de adequar a data do concurso com as agendas dos professores, a Corte de origem culminou por interferir no próprio mérito administrativo, o que é vedado ao Poder Judiciário. Dessa forma, tendo em vista que a escolha dos integrantes da banca examinadora do concurso é atribuição própria da Universidade, deve-se ter especial deferência à decisão do órgão administrativo, a qual não se mostra, no caso, ilegal; ao contrário, está devidamente fundamentada na autonomia universitária assegurada nos arts. 53 e 54 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.