Multa do art. 249 do ECA por recusa parental de vacinação infantil contra COVID-19
Cinge-se a controvérsia em decidir se é obrigatória a vacinação de criança e adolescente contra a COVID-19 no território nacional. A autoridade parental teve sua significação modificada a partir da Constituição Federal de 1988: o que antes se entendia como um poder de chefia do marido para com seus filhos, a partir da Constituição passou-se a entender como um poder-dever dos pais e das mães de cuidarem e protegerem seus filhos. Encontra suas balizas no princípio da paternidade responsável e na doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, posto que, consoante determina o art. 5º do ECA, nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência aos seus direitos fundamentais. O exercício da parentalidade enfrenta diversas complexidades, uma vez que a intervenção parental é essencial, especialmente em tenra idade, pois a vulnerabilidade das crianças impede que compreendam o que é melhor para seu saudável desenvolvimento. Essa autonomia, no entanto, não é absoluta: quando a Constituição confia aos pais a tarefa primordial de cuidar dos filhos, não lhes credita permissão para abusos. O direito à saúde da criança e do adolescente é albergado pelo ECA, em seu art. 14, §1º, o qual determina a obrigatoriedade da vacinação de crianças quando recomendado por autoridades sanitárias. Salvo eventual risco concreto à integridade psicofísica da criança ou adolescente, não lhe sendo recomendável o uso de determinada vacina, a escusa dos pais será considerada negligência parental, passível de sanção estatal, ante a preponderância do melhor interesse sobre sua autonomia. O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do ARE n. 1267879/SP, fixou o Tema n. 1103, estabelecendo como requisitos para a obrigatoriedade de vacinação: a) inclusão no Programa Nacional de Imunizações; ou b) determinação da obrigatoriedade prevista em lei; ou c) determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, fundada em consenso médico-científico. A vacinação infantil não significa, apenas, a proteção individual de crianças e adolescentes, mas representa um pacto coletivo pela saúde de todos, a fim de erradicar doenças ou minimizar suas sequelas, garantindo-se uma infância saudável e protegida. Portanto, a vacinação de crianças e adolescentes é obrigatória, pois assim prevê o art. 14, §4º do ECA. A recusa em vacinar criança ou adolescente contra a COVID-19, mesmo advertidos dos riscos de sua conduta pelo Conselho Tutelar Municipal e pelo Ministério Público Estadual, caracteriza o descumprimento dos deveres inerentes à autoridade familiar, autorizando a aplicação da sanção pecuniária prevista no art. 249 do ECA.
Aplicação intertemporal da Lei 6.880/1980 ao ex-militar temporário desligado antes de 2019
Trata-se de controvérsia a envolver matéria de Direito Intertemporal. Com efeito, o caso em análise volta-se a situação envolvendo militar temporário licenciado quando da vigência da Lei n. 13.954/2019. Como é cediço, a relação jurídica existente entre os militares em atividade das Forças Armadas e a Administração Pública é de trato sucessivo e, portanto, sujeita-se à cláusula rebus sic stantibus, no que concerne aos efeitos dessa relação jurídica que se protrai no tempo. Essa compreensão se ampara na premissa de que os militares não possuem direito adquirido a regime jurídico, tal como decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema n. 24/STF (RE n. 563.708); sendo assim, inexistindo ressalva em sentido contrário, as modificações introduzidas pela Lei n. 13.954, de 16/12/2019, às Leis n. 6.880/1980 (Estatuto dos Militares) e 4.375/1965 (Lei do Serviço Militar) são plenamente aplicáveis aos militares que, à época, já se encontravam no serviço ativo das Forças Armadas, temporários ou de carreira. Contudo, ao contrário da hipótese mencionada acima, é a do o ex-militar temporário que, ao tempo do início da vigência da Lei n. 13.954/2019 já se encontrava licenciado das Forças Armadas, não possuía vínculo jurídico com a União. Em tal situação, uma vez que não é possível falar em uma relação jurídica de trato sucessivo, o eventual direito à reintegração e à reforma do ex-militar temporário deve ser examinado segundo o princípio tempus regit actum, levando-se em consideração a legislação vigente ao tempo do licenciamento tido por ilegal. Portanto, ao ex-militar temporário licenciado do serviço ativo das Forças Armadas antes da vigência da Lei n. 13.954/2019, deve-se aplicar legislação vigente ao tempo do licenciamento, motivo pelo qual seu eventual direito à reintegração e à reforma militar deve ser apreciado à luz das disposições contidas na Lei n. 6.880/1980 (anteriores à Lei n. 13.954/2019).
Vedação de interrupção do fornecimento estatal de medicamento infantil como punição
No caso, a genitora de um menor incapaz levantou do Estado valores em dinheiro para aquisição de medicamentos em favor de seu filho e adquiriu outros remédios, em caráter de urgência, destinados à mesma criança, após a cirurgia. O Tribunal de origem reconheceu o emprego ilícito da verba pública e, ante a impossibilidade material de devolução do dinheiro, determinou a compensação do erário por meio da suspensão do fornecimento do medicamento por um mês. Contudo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça aponta para a responsabilidade não só subsidiária do incapaz, como pela sua responsabilidade mitigada e condicional. Nesse sentido, ele apenas responde por seus atos próprios quando os responsáveis não tiverem, eles próprios, condições de arcar com as despesas ressarcitórias (responsabilidade subsidiária), e quando essa indenização não comprometer seu próprio sustento ou de seus dependentes (responsabilidade condicional e mitigada). Dessa forma, o menor incapaz e doente não é responsável nem mesmo pelos ilícitos que ele próprio comete (art. 932, I, do Código Civil - CC/2002), podendo, ainda menos, arcar pessoal e fisicamente pelas ilicitudes eventualmente cometidas por seus responsáveis. Ademais, no caso em discussão, nem sequer é inequívoco o caráter ilícito do ato, tendo em conta que a verba foi destinada ao tratamento médico da mesma criança, ainda que em medicamento diverso do originalmente (art. 188, I, do CC/2002). Sendo assim, em qualquer situação, a interrupção do fornecimento de medicamento ao doente como meio sancionador é desarrazoada, até mesmo ante a vedação constitucional (e do próprio direito natural) de imposição de penas cruéis (art. 5º, XLVII, e, da Constituição Federal - CF/1988).
Querela nullitatis como questão incidental dispensa ação declaratória autônoma de nulidade
A controvérsia consiste em decidir se, para fins de verificação do interesse de agir como condição da ação, a pretensão de querela nullitatis (para declaração de nulidade de sentença transitada em julgado por vício transrescisório) deve ser requerida em ação declaratória específica e autônoma ou se pode ser formulada em demanda em que se apresenta como questão incidental ou prejudicial para o exame de outros pedidos. Inicialmente, é válido esclarecer que, após o prazo decadencial de dois anos para ação rescisória (art. 975 do Código de Processo Civil), como regra, forma-se a chamada "coisa julgada soberana". No entanto, conforme leciona a doutrina, "existem nulidades absolutas tão graves, tão ofensivas ao sistema jurídico, que a sua manutenção é algo absolutamente indesejado; surgem os chamados vícios transrescisórios, que apesar de serem situados no plano da validade não se convalidam, podendo ser alegados a qualquer momento, como ocorre com o vício ou inexistência da citação". Nesse contexto, vício transrescisório representa nulidade que, dado seu elevado grau de ofensividade ao sistema jurídico, não pode ser mantida ainda que decorrente de decisão transitada em julgado e após ultrapassado o prazo decadencial da ação rescisória. Diante da gravidade dos vícios transrescisórios (como ocorre diante da falta de citação), a ordem jurídica admite o reconhecimento da nulidade da decisão transitada em julgado a qualquer momento, por meio da chamada querela nullitatis insanabilis (reclamação de nulidade incurável), ou apenas querela nullitatis. A pretensão da querela nullitatis, no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, tem recebido tratamento direcionado à promoção do princípio da instrumentalidade das formas, de modo a garantir celeridade, economia e efetividade processual (artigos 3º, 4º, 6º e 8º do CPC). Em decorrência disso, o STJ tem admitido a invocação da nulidade de decisões transitadas em julgado eivadas de vícios transrescisórios sem a exigência de propositura de uma ação específica. É dizer que a querela nullitatis, ou reclamação de nulidade, para o reconhecimento de vício transrescisório, tem sido visualizada, pelo STJ, como pretensão e não como procedimento. Com isso, afasta-se o excesso de formalismo, para admitir o reconhecimento da nulidade de decisões maculadas por defeitos transrescisórios por meio de diferentes formas de tutela jurisdicional. Ademais, segundo o STJ, a decisão maculada por tal tipo de vício "jamais transita em julgado, constituindo a ação anulatória (querella nullitatis) a via mais comumente utilizada para o reconhecimento dessa nulidade, não obstante seja possível a provocação do juízo por diversos outros meios". Outro relevante exemplo que se extrai da jurisprudência do STJ é a possibilidade de que a pretensão da querela nullitatis seja julgada por meio de ação rescisória ajuizada após o prazo decadencial. Em tais casos, a demanda não deve ser extinta, por falta de interesse de agir e inadequação da via eleita, mas deve ser remetida pelo Tribunal de ofício ao primeiro grau, para apreciada como ação declaratória de nulidade. Portanto, a pretensão da querela nullitatis, a depender das circunstâncias de cada hipótese, pode estar inserida em questão prejudicial ou principal da demanda, bem como pode ser arguida através de diferentes meios processuais (como ações declaratórias em geral, alegação incidental em peças defensivas, cumprimento de sentença, ação civil pública e mandado de segurança).
Impossibilidade de rediscussão de cláusulas de acordo de não persecução penal homologado por boa-fé objetiva
A questão em discussão consiste em saber se é possível rediscutir as cláusulas de acordo de não persecução penal já celebrado e homologado, sob alegação de onerosidade excessiva, sem violar o princípio da boa-fé objetiva e a vedação ao comportamento contraditório. O ANPP, previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n. 13.964/2019, constitui negócio jurídico de natureza pré-processual celebrado entre o Ministério Público e o investigado, que visa obstar o oferecimento da denúncia mediante o cumprimento de determinadas condições. Trata-se de instituto que expressa o modelo consensual de justiça criminal, no qual se privilegia a autonomia da vontade do investigado que, assistido por defesa técnica, aceita cumprir determinadas condições em troca do não oferecimento da denúncia, para não se submeter ao processo penal tradicional, com todos os seus ônus e possíveis consequências mais gravosas. A jurisprudência desta Corte tem sido firme no sentido de que, uma vez celebrado e homologado o ANPP, não é possível a rediscussão de suas cláusulas, sob pena de violação do princípio da boa-fé objetiva e da vedação ao comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium). Com efeito, consoante já decidido pela Quinta Turma do STJ, "comportamentos contraditórios como o da defesa, além de violar o princípio da boa-fé objetiva (art. 5º do CPC), aplicável a todos os sujeitos processuais e ao processo penal, vai de encontro ao objetivo da justiça penal negocial, gerando processos e gastos que deveriam ser evitados com o ANPP, além de enfraquecer o instituto, que acaba sendo utilizado como subterfúgio para postergar o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público." (AgRg no RHC 196.094/SP, Ministro Reynaldo Soreas da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 18/9/2024). No caso, a defesa sustenta que as cláusulas do ANPP são mais onerosas do que uma eventual pena condenatória, especialmente no que concerne ao perdimento da motocicleta em favor da União e à prestação de serviços à comunidade, notadamente considerando a ausência de antecedentes criminais do paciente. Contudo, observa-se que o paciente foi assistido por defensor público por ocasião da celebração do acordo, e ainda assim optou por aceitá-lo nos termos propostos pelo Ministério Público. A alegação posterior de que as cláusulas seriam excessivamente onerosas caracteriza inequívoco comportamento contraditório, incompatível com o princípio da boa-fé objetiva, que deve permear todas as relações processuais. Nesse sentido, o art. 565 do Código de Processo Penal estabelece que nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, reforçando a vedação ao comportamento contraditório no âmbito processual penal. Ora, a reanálise da proporcionalidade das condições pactuadas, após a homologação judicial do acordo, além de violar o princípio da boa-fé objetiva, comprometeria a própria segurança jurídica e a credibilidade do instituto, desestimulando o Ministério Público a oferecer novos acordos e prejudicando futuros investigados que poderiam se beneficiar dessa alternativa à persecução penal tradicional. Por fim, cabe destacar que o habeas corpus, por seu rito célere e natureza urgente, não constitui via adequada para a rediscussão das cláusulas de um acordo validamente celebrado e homologado, sobretudo quando não há demonstração de flagrante ilegalidade que justifique a intervenção excepcional desta Corte.