Revisão judicial de astreintes desproporcionais de ofício a qualquer tempo
Há, nos arestos confrontados, discussão de questão de direito processual, acerca de operar-se, ou não, a preclusão ou a coisa julgada a impossibilitar a revisão pelo julgador do valor fixado a título de astreintes . Há, outrossim, debate a respeito da possibilidade de revisão da multa cominatória se o valor alcançado ferir os princípios da razoabilidade e proporcionalidade ou a vedação do enriquecimento sem causa. É possível a revisão do quantum fixado a título de multa cominatória, na via do recurso uniformizador, por meio do exame da questão de direito processual adjacente - preclusão da discussão do valor da multa cominatória -, mormente diante do flagrante exagero da quantia alcançada, em afronta aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e à vedação do enriquecimento sem causa. Ressalte-se que a finalidade das astreintes é conferir efetividade ao comando judicial, coibindo o comportamento desidioso da parte contra a qual foi imposta obrigação judicial. Seu escopo não é indenizar ou substituir o adimplemento da obrigação, tampouco servir ao enriquecimento imotivado da parte credora, devendo, pois, serem observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Nessa toada, a própria legislação que prevê a possibilidade de imposição de multa cominatória autoriza o magistrado, a requerimento da parte ou de ofício, alterar o valor e a periodicidade da multa, quando, em observância aos referidos princípios, entender ser esta insuficiente ou excessiva, nos termos do art. 461, § 6º, do CPC/1973 e, atualmente, do art. 537, § 1º, do CPC/2015. Interpretando as referidas normas processuais, o Superior Tribunal de Justiça firmou orientação de que o valor das astreintes , previstas no citado art. 461 do Código de Processo Civil revogado (correspondente ao art. 536 do Código vigente), é estabelecido sob a cláusula rebus sic stantibus , de maneira que, quando se tornar irrisório ou exorbitante ou desnecessário, pode ser modificado ou até mesmo revogado pelo magistrado, a qualquer tempo, até mesmo de ofício, ainda que o feito esteja em fase de execução ou cumprimento de sentença, não havendo falar em preclusão ou ofensa à coisa julgada. Considera-se que a multa não tem uma finalidade em si mesma e assim como pode ser fixada de ofício pelo juiz, em qualquer fase do processo, também pode ser revista ex officio por este, a qualquer tempo. A propósito, no julgamento do Recurso Especial 1.333.988/SP, sob a sistemática dos recursos repetitivos, a Segunda Seção, no Tema 706, consolidou a tese de que "a decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada". Por sua vez, a Primeira Seção, também julgando Recurso Especial Repetitivo para analisar o Tema 98 (possibilidade de imposição de multa diária a ente público, para compeli-lo a fornecer medicamento a pessoa desprovida de recursos financeiros), afirmou a não incidência do instituto da coisa julgada na revisão do valor das astreintes . Nesse contexto, com respaldo na legislação e na jurisprudência desta Corte Superior, pode o julgador, a requerimento da parte ou de ofício, a qualquer tempo, ainda que o feito esteja em fase de cumprimento de sentença, modificar o valor das astreintes , seja para majorá-lo, para evitar a conduta recalcitrante do devedor em cumprir a decisão judicial, seja para minorá-lo, quando seu montante exorbitar da razoabilidade e da proporcionalidade, ou até mesmo para excluir a multa cominatória, quando não houver mais justa causa para sua mantença. Nessa linha de intelecção, ainda que já tenha havido redução anterior do valor da multa cominatória, não há vedação legal a que o magistrado, amparado na constatação de que o total devido a esse título alcançou montante elevado, reexamine a matéria novamente, caso identifique, diante de um novo quadro, que a cominação atingiu patamar desproporcional à finalidade da obrigação judicial imposta. Nesse diapasão, em atenção aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, é recomendável a redução, quantas vezes forem necessárias, do valor das astreintes , sobretudo nas hipóteses em que a sua fixação ensejar valor superior ao discutido na ação judicial em que foi imposta, a fim de evitar eventual enriquecimento sem causa. Desse modo, fixada a premissa de que as astreintes não se sujeitam à preclusão ou à coisa julgada, deve-se definir os critérios para a melhor adequação do valor da multa quando ele se tornar excessivo ou irrisório. Acerca da temática, a Quarta Turma, em importante precedente, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão (AgInt no AgRg no AREsp 738.682/RJ), delineou que o julgador, na fixação e/ou alteração do valor da multa cominatória, deve-se balizar segundo dois "vetores de ponderação: a) efetividade da tutela prestada, para cuja realização as astreintes devem ser suficientemente persuasivas; e b) vedação ao enriquecimento sem causa do beneficiário, porquanto a multa não é, em si, um bem jurídico perseguido em juízo". Assim, lançou o eminente Relator alguns parâmetros para nortear o magistrado na difícil tarefa de fixar o quantum devido a título de astreintes: "i) valor da obrigação e importância do bem jurídico tutelado; ii) tempo para cumprimento (prazo razoável e periodicidade); iii) capacidade econômica e de resistência do devedor; iv) possibilidade de adoção de outros meios pelo magistrado e dever do credor de mitigar o próprio prejuízo ( duty to mitigate de loss )". Assim, entende-se que o magistrado, diante da desproporção que alcançou o valor da multa diária originariamente arbitrada, deve, com base nos referidos critérios, de ofício ou a requerimento da parte, fazer novo balizamento do quantum , garantindo, com isso, a eficácia da decisão judicial e, ao mesmo tempo, evitando o enriquecimento sem causa do beneficiário.
Indenização por dano moral coletivo em loteamento irregular com publicidade enganosa na venda de lotes
O dano moral transindividual - conhecido como "dano moral coletivo" -, caracteriza-se pela prática de conduta antijurídica que, de forma absolutamente injusta e intolerável, viola valores éticos essenciais da sociedade, implicando um dever de reparação, que tem por escopo prevenir novas condutas antissociais (função dissuasória), punir o comportamento ilícito (função sancionatório-pedagógica) e reverter, em favor da comunidade, o eventual proveito patrimonial obtido pelo ofensor (função compensatória indireta). Tal categoria de dano moral é aferível, portanto, in re ipsa , ou seja, reclama a mera apuração de uma conduta ilícita que, de maneira injusta e intolerável, viole valor ético-jurídico fundamental da sociedade, revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral. No presente caso, a pretensão reparatória de dano moral coletivo - deduzida pelo Ministério Público estadual na ação civil pública - tem por causas de pedir a alienação de terrenos em loteamento irregular (ante a violação de normas de uso e ocupação do solo) e a veiculação de publicidade enganosa a consumidores de baixa renda, que teriam sido submetidos a condições precárias de moradia. As instâncias ordinárias reconheceram a ilicitude da conduta dos réus que, utilizando-se de ardil e omitindo informações relevantes para os consumidores/adquirentes, anunciaram a venda de terrenos em loteamento irregular - com precárias condições urbanísticas - como se o empreendimento tivesse sido aprovado pela Municipalidade e devidamente registrado no cartório imobiliário competente; nada obstante, o pedido de indenização por dano moral coletivo foi julgado improcedente. No afã de resguardar os direitos básicos de informação adequada e de livre escolha dos consumidores - protegendo-os, de forma efetiva, contra métodos desleais e práticas comerciais abusivas -, é que o Código de Defesa do Consumidor procedeu à criminalização das condutas relacionadas à fraude em oferta e à publicidade abusiva ou enganosa. Os objetos jurídicos tutelados pelas citadas normas penais compreendem, os direitos de livre escolha e de informação adequada dos consumidores, cuja higidez da manifestação de vontade deve ser assegurada, de modo a atender o valor ético-jurídico encartado no princípio constitucional da dignidade humana, conformador do próprio conceito de Estado Democrático de Direito, que não se coaduna com a permanência de profundas desigualdades, tais como a existente entre o fornecedor e a parte vulnerável no mercado de consumo. Ambos os crimes são de mera conduta, não reclamando a consumação do resultado lesivo - efetivo comprometimento da manifestação da vontade do consumidor -, donde se extrai, a evidente intolerabilidade da lesão ao direito transindividual da coletividade ludibriada, não informada adequadamente ou exposta à oferta fraudulenta ou à publicidade enganosa ou abusiva. Sob a mesma ótica, destaca-se precedente da Segunda Turma - da relatoria do eminente Ministro Herman Benjamin -, firmado por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.828.620/RO, segundo o qual "enganar o consumidor ou dele abusar vai muito além de dissabor irrelevante ou aborrecimento desprezível, de natural conduta cotidiana, aceitável na vida em sociedade", por configurar prática flagrantemente antiética e ilegal que não poupa "nem pobres nem vulneráveis, nem analfabetos nem enfermos". Outrossim, não é apenas à luz do CDC que se observa a configuração de dano moral transindividual inaceitável. Com efeito, a Lei n. 6.766/1979 - que dispõe sobre o parcelamento do solo para fins urbanos - em seus artigos 50 e 51 (notadamente os contidos nos incisos I e II do caput do artigo 50) consubstanciam crimes de mera conduta, tendo por objeto jurídico o respeito ao ordenamento urbanístico e, por conseguinte, a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, valor ético social - intergeracional e fundamental - consagrado pela Constituição de 1988 (artigo 225), que é vulnerado, de forma grave, pela prática do loteamento irregular (ou clandestino). Sendo clara a ofensa ao mínimo existencial da coletividade prejudicada pelo loteamento irregular - assim como a publicidade enganosa efetuada em detrimento dos consumidores -, tal conduta configura lesão intolerável a valor essencial da sociedade, o que torna a condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos plenamente viável.
Endosso-caução preserva crédito cambial do endossatário de boa-fé ante pagamento sem resgate da cártula
Registra-se, inicialmente, que "as normas das leis especiais que regem os títulos de crédito nominados, v.g., letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, cédulas e notas de crédito, continuam vigentes e se aplicam quando dispuserem diversamente do Código Civil de 2002, por força do art. 903 do Diploma civilista. Com efeito, com o advento do Diploma civilista, passou a existir uma dualidade de regramento legal: os títulos de crédito típicos ou nominados continuam a ser disciplinados pelas leis especiais de regência, enquanto os títulos atípicos ou inominados subordinam-se às normas do novo Código, desde que se enquadrem na definição de título de crédito constante no art. 887 do Código Civil" (REsp 1.633.399/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/11/2016, DJe 01/12/2016). Conquanto a duplicata seja causal apenas na sua origem/emissão, sua circulação - configurada após o aceite do sacado, ou, na sua falta, pela comprovação do negócio mercantil subjacente e o protesto - rege-se pelo princípio da abstração, desprendendo-se de sua causa original, sendo por isso inoponíveis exceções pessoais a terceiros de boa-fé, como a ausência da entrega das mercadorias compradas. Ademais, o endosso-caução tem por finalidade garantir, mediante o penhor do título, obrigação assumida pelo endossante perante o endossatário, que desse modo assume a condição de credor pignoratício do endossante. Verificado o cumprimento da obrigação por parte do endossante, o título deve ser-lhe restituído pelo endossatário, por isso não havendo, ordinariamente, propriamente a transferência do crédito representado pelo título. No entanto, é preciso ressaltar que o endossatário pignoratício é detentor dos direitos emergentes do título, não podendo os coobrigados invocar contra ele exceções fundadas sobre relações pessoais com o endossante, pois esse, "apesar de ser ainda o proprietário do título, transmitiu os direitos emergentes do mesmo ao endossatário, como acontece no endosso comum". Ademais, não se pode ignorar que a "quitação regular de débito estampado em título de crédito é a que ocorre com o resgate da cártula - tem o devedor, pois, o poder-dever de exigir daquele que se apresenta como credor cambial a entrega do título de crédito (o art. 324 do Código Civil, inclusive, dispõe que a entrega do título ao devedor" (REsp 1.236.701/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 05/11/2015, DJe 23/11/2015). Por outro lado, o art. 905 do CC, caput, estabelece que o possuidor de título ao portador tem direito à prestação nele indicada, mediante a sua simples apresentação ao devedor, e o parágrafo único estipula que a prestação é devida ainda que o título tenha entrado em circulação contra a vontade do emitente. Portanto, é temerário para o direito cambial, para a circulação dos títulos de crédito, que se admita a quitação de crédito cambial, sem a exigência do resgate da cártula, notadamente se ensejar prejuízo a terceiro de boa-fé.
Impugnação fazendária por excesso de execução no cumprimento de sentença conhecida sem memória de cálculos
O art. 535, § 2º, do CPC prevê consequência específica para a não indicação do valor que a Fazenda Pública entende correto em sua impugnação ao cumprimento de sentença, qual seja, o não conhecimento da arguição de excesso de execução. Todavia, esta Corte possui jurisprudência no sentido de que "eventuais erros materiais nos cálculos apresentados para o cumprimento de sentença não estão sujeitos à preclusão, sendo possível ao magistrado, inclusive, encaminhar os autos à contadoria, de ofício, para apurar se os cálculos estão em conformidade com o título em execução" (AgInt no AREsp 1.364.410/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 4/5/2020, DJe 8/5/2020). Assim, em regra, a ausência de indicação do valor que a Fazenda Pública entende como devido na impugnação enseja o não conhecimento da arguição de excesso, por existência de previsão legal específica nesse sentido (art. 535, §2º, do CPC). No entanto, tal previsão legal não afasta o poder-dever de o magistrado averiguar a exatidão dos cálculos à luz do título judicial que lastreia o cumprimento de sentença, quando verificar a possibilidade de existência de excesso de execução. Tal entendimento encontra respaldo inclusive no próprio Código de Ritos, em seu art. 526, §§ 1º e 2º, cuja aplicação é cabível nos cumprimentos de sentença contra a Fazenda Pública, com as devidas adaptações. Nesse sentido, se é cabível a remessa dos autos à contadoria do juízo para a verificação dos cálculos, é razoável a concessão de prazo para apresentação da respectiva planilha pela Fazenda Pública, documento que pode inclusive vir a facilitar o trabalho daquele órgão auxiliar em eventual necessidade de manifestação.
Prescrição da pretensão de expedir novo precatório ou RPV e termo inicial no cancelamento
Conforme o entendimento da Segunda Turma desta Corte Superior, é prescritível a pretensão de expedição de novo precatório ou RPV após o cancelamento estabelecido pelo art. 2º da Lei n. 13.463/2017. Nos termos do REsp 1.859.409/RN, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 16/6/2020, DJe 25/6/2020: "1. Estabelecem, respectivamente, os arts. 2º e 3º da Lei 13.463/2017: "Ficam cancelados os precatórios e as RPV federais expedidos e cujos valores não tenham sido levantados pelo credor e estejam depositados há mais de dois anos em instituição financeira oficial", "cancelado o precatório ou a RPV, poderá ser expedido novo ofício requisitório, a requerimento do credor". 2. A pretensão de expedição de novo precatório ou nova RPV, após o cancelamento de que trata o art. 2º da Lei nº 13.463/2017, não é imprescritível." O fundamento é o de que, por aplicação do princípio da actio nata , conforme o referido precedente, "o direito do credor de que seja expedido novo precatório ou nova RPV começa a existir na data em que houve o cancelamento do precatório ou RPV cujos valores, embora depositados, não tenham sido levantados".