Competência federal em improbidade definida pela presença de pessoa jurídica do art. 109, I
No caso, o ente municipal ajuizou ação de improbidade administrativa, em razão de irregularidades na prestação de contas de verbas federais decorrentes de convênio. A competência para processar e julgar ações de ressarcimento ao erário e de improbidade administrativa, relacionadas à eventuais irregularidades na utilização ou prestação de contas de repasses de verbas federais aos demais entes federativos, estava sendo dirimida por esta Corte Superior sob o enfoque das Súmulas 208/STJ ("Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita à prestação de contas perante órgão federal") e 209/STJ ("Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal"). O art. 109, I, da Constituição Federal prevê, de maneira geral, a competência cível da Justiça Federal, delimitada objetivamente em razão da efetiva presença da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes na relação processual. Estabelece, portanto, competência absoluta em razão da pessoa (ratione personae), configurada pela presença dos entes elencados no dispositivo constitucional na relação processual, independentemente da natureza da relação jurídica litigiosa. Por outro lado, o art. 109, VI, da Constituição Federal dispõe sobre a competência penal da Justiça Federal, especificamente para os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, entidades autárquicas ou empresas públicas. Assim, para reconhecer a competência, em regra, bastaria o simples interesse da União, inexistindo a necessidade da efetiva presença em qualquer dos polos da demanda. Nesse contexto, a aplicação dos referidos enunciados sumulares, em processos de natureza cível, tem sido mitigada no âmbito deste Tribunal Superior. A Segunda Turma afirmou a necessidade de uma distinção (distinguishing) na aplicação das Súmulas 208 e 209 do STJ, no âmbito cível, pois tais enunciados provêm da Terceira Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação da competência em matéria penal, em que basta o interesse da União ou de suas autarquias para deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do inciso IV do art. 109 da CF. Logo adiante concluiu que a competência da Justiça Federal, em matéria cível, é aquela prevista no art. 109, I, da Constituição Federal, que tem por base critério objetivo, sendo fixada tão só em razão dos figurantes da relação processual, prescindindo da análise da matéria discutida na lide (REsp 1.325.491/BA, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 05/06/2014, DJe 25/06/2014). Assim, nas ações de ressarcimento ao erário e improbidade administrativa ajuizadas em face de eventuais irregularidades praticadas na utilização ou prestação de contas de valores decorrentes de convênio federal, o simples fato das verbas estarem sujeitas à prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União, por si só, não justifica a competência da Justiça Federal. O Supremo Tribunal Federal já afirmou que o fato dos valores envolvidos transferidos pela União para os demais entes federativos estarem eventualmente sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União não é capaz de alterar a competência, pois a competência cível da Justiça Federal exige o efetivo cumprimento da regra prevista no art. 109, I, da Constituição Federal. Igualmente, a mera transferência e incorporação ao patrimônio municipal de verba desviada, no âmbito civil, não pode impor de maneira absoluta a competência da Justiça Estadual. Se houver manifestação de interesse jurídico por ente federal que justifique a presença no processo, (v.g. União ou Ministério Público Federal) regularmente reconhecido pelo Juízo Federal nos termos da Súmula 150/STJ, a competência para processar e julgar a ação civil de improbidade administrativa será da Justiça Federal. Em síntese, é possível afirmar que a competência cível da Justiça Federal é definida em razão da presença das pessoas jurídicas de direito público previstas no art. 109, I, da CF na relação processual, seja como autora, ré, assistente ou oponente e não em razão da natureza da verba federal sujeita à fiscalização da Corte de Contas da União. No caso, não figura em nenhum dos pólos da relação processual ente federal indicado no art. 109, I, da Constituição Federal, o que afasta a competência da Justiça Federal para processar e julgar a referida ação. Ademais, não existe nenhuma manifestação de interesse em integrar o processo por parte de ente federal e o Juízo Federal consignou que o interesse que prevalece restringe-se à órbita do Município autor, o que atrai a competência da Justiça Estadual para processar e julgar a demanda.
Ilegalidade da requisição de dados fiscais pelo Ministério Público sem ordem judicial
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário 1.055.941/SP, em sede de repercussão geral, firmou a orientação de que é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional (Tema 990). Da leitura desatenta da ementa do julgado, poder-se-ia chegar à conclusão de que o entendimento consolidado autorizaria a requisição direta de dados pelo Ministério Público à Receita Federal, para fins criminais. No entanto, a análise acurada do acórdão demonstra que tal conclusão não foi compreendida no julgado, que trata da Representação Fiscal para fins penais, instituto legal que autoriza o compartilhamento, de ofício, pela Receita Federal, de dados relacionados a supostos ilícitos tributários ou previdenciários após devido procedimento administrativo fiscal. Assim, a requisição ou o requerimento, de forma direta, pelo órgão da acusação à Receita Federal, com o fim de coletar indícios para subsidiar investigação ou instrução criminal, além de não ter sido satisfatoriamente enfrentada no julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.055.941/SP, não se encontra abarcada pela tese firmada no âmbito da repercussão geral em questão. Ainda, as poucas referências que o acórdão faz ao acesso direto pelo Ministério Público aos dados, sem intervenção judicial, é no sentido de sua ilegalidade. Em um estado de direito não é possível se admitir que órgãos de investigação, em procedimentos informais e não urgentes, solicitem informações detalhadas sobre indivíduos ou empresas, informações essas constitucionalmente protegidas, salvo autorização judicial. Uma coisa é órgão de fiscalização financeira, dentro de suas atribuições, identificar indícios de crime e comunicar suas suspeitas aos órgãos de investigação para que, dentro da legalidade e de suas atribuições, investiguem a procedência de tais suspeitas. Outra, é o órgão de investigação, a polícia ou o Ministério Público, sem qualquer tipo de controle, alegando a possibilidade de ocorrência de algum crime, solicitar ao COAF ou à Receita Federal informações financeiras sigilosas detalhadas sobre determinada pessoa, física ou jurídica, sem a prévia autorização judicial. Assim, é ilegal a requisição, sem autorização judicial, de dados fiscais pelo Ministério Público.
Cabimento de honorários advocatícios na reclamação indeferida liminarmente com comparecimento espontâneo
Com a vigência do Código de Processo Civil de 2015, a jurisprudência se firmou no sentido de que a reclamação possui natureza de ação, prevendo o artigo 989, III, do referido Código, a angularização da relação processual, com a citação do beneficiário, que passou a ter um tratamento semelhante ao da parte, podendo promover a defesa de seus interesses, com a consequente condenação ao pagamento de honorários de acordo com a sucumbência. Assim, na hipótese de indeferimento inicial da reclamação, é firme a jurisprudência do STJ no sentido de que a relação processual não se aperfeiçoou, não sendo cabível a condenação em honorários. É preciso diferenciar, porém, o simples indeferimento da inicial daquelas situações em que o reclamante ingressa com recurso contra a decisão que indefere a petição inicial ou contra a que julga o pedido improcedente liminarmente. Com efeito, de acordo com o artigo 331 do CPC/2015, nas hipóteses em que a petição inicial é indeferida e contra essa decisão é interposta apelação, não havendo reconsideração, o réu é citado ou, se já tiver comparecido aos autos, é intimado para apresentar defesa e, sendo mantida a decisão, é cabível a condenação em honorários. Assim, trazendo a situação para a reclamação, uma vez interposto recurso contra decisão que liminarmente indeferiu a petição inicial, não sendo o caso de reconsideração, o beneficiário que comparecer aos autos, apresentando contrarrazões, faz jus ao recebimento de honorários advocatícios.
Requisição extrajudicial de guarda além do prazo legal de registros de acesso e conexão
Controverte-se sobre a possibilidade de preservação do conteúdo telemático junto aos provedores de internet, a pedido do Ministério Público, sem autorização judicial. A Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) dispõe que "a guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet", nela tratados, "bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas" (art. 10). Mas ressalva que o provedor responsável pela guarda está obrigado a disponibilizar os registros (de conexão e de acesso a aplicações da internet), mediante ordem judicial (art. 10, §§ 1º e 2º), com a finalidade de "formar conjunto probatório em processo judicial cível ou criminal, em caráter incidental ou autônomo" (art.22), a pedido da parte interessada, desde que haja "indícios fundados da ocorrência do ilícito", "justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória" e "período ao qual se referem os registros" (art. 22, incisos I, II e III). Trata-se de matéria que recebe tratamento específico da Lei n. 12.965/2014, ao dispor que constitui dever jurídico do administrador do respectivo sistema autônomo manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano (art. 13); e, do provedor de aplicações de internet, por sua vez, manter os registros de acesso, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses (art. 15). Dispõe, ainda, que a autoridade policial, administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente que os registros de conexão sejam guardados por prazo superior a 1 (um) ano (art. 13, § 2º), e os registros de acesso a aplicações de internet por prazo superior a 6 (seis) meses (art. 15, § 2º), devendo, nas duas situações, e no prazo de 60 (sessenta) dias, contados do requerimento administrativo, ingressar com o pedido de autorização judicial de acesso aos (dois) registros (arts. 13, § 3º, e 15, § 2º): Nesse ponto, ao dispor que a autoridade policial, administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente - que os registros de conexão sejam guardados por prazo superior a 1 (um) ano (art. 13, § 2º), e os registros de acesso a aplicações de internet por prazo superior a 6 (seis) meses (art. 15, § 2º) -, a Lei disse menos do que pretendia. É que, quem requer alguma coisa, pura e simplesmente pode tê-la deferida ou não, e, no caso, até mesmo pelo uso do termo "cautelarmente", seguido da previsão de pedido judicial de acesso no prazo de 60 (sessenta) dias, contados do requerimento administrativo, sob pena de caducidade, tem-se que o administrador de sistema autônomo e o provedor de aplicações de internet estariam obrigados a atender às solicitações da autoridade policial, administrativa ou do Ministério Público, para que os registros sejam guardados por prazo superior. Disso se infere que, no caso, o pedido de "congelamento" de dados pelo Ministério Público não precisa necessariamente de prévia decisão judicial para ser atendido pelo provedor, mesmo porque - e esse é o ponto nodal da discussão, visto em face do direito à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes (CF, art. 5º, X, e Lei n. 12.965/2014, art. 10) - não equivale a que o requerente tenha acesso aos dados "congelados" sem ordem judicial. A jurisprudência do STF tem afirmado que o inciso XII do art. 5º da Constituição protege somente o sigilo das comunicações em fluxo (troca de dados e mensagens em tempo real), e que o sigilo das comunicações armazenadas, como depósito registral, é tutelado pela previsão constitucional do direito à privacidade do inciso X do art. 5º (HC 91.867, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 24/04/2012). Mas, em verdade, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata a Lei n. 12.965/2014 (dados intercambiados), em atenção à referida cláusula constitucional, deverá ser precedida de autorização judicial, sendo estabelecido, inclusive, um prazo de 60 dias, contados a partir do requerimento de preservação dos dados, para que o Ministério Público ingresse com esse pedido de autorização judicial de acesso aos registros, sob pena de caducidade (art.13, § 4º). Por fim, frisa-se que o normativo em questão, a fim de viabilizar investigações criminais, que, normalmente, são de difícil realização em ambientes eletrônicos, tornou mais eficiente o acesso a dados e informações relevantes ao possibilitar que o Ministério Público, diretamente, requeira ao provedor apenas a guarda, em ambiente seguro e sigiloso, dos registros de acesso a aplicações de internet, mas a disponibilização ao requerente dos conteúdos dos registros - dados cadastrais, histórico de pesquisa, todo conteúdo de e-mail e iMessages, fotos, contatos e históricos de localização etc. - deve sempre ser precedida de autorização judicial devidamente fundamentada.