Audiência de repactuação por superendividamento credor não é obrigado a aderir ou contrapropor
Cinge-se a controvérsia à possibilidade, ou não, de se impor ao credor as penalidades do artigo 104-A, § 2º do CDC quando, embora devidamente representado por preposto e advogado com poderes para transigir na audiência preliminar atinente à repactuação de dívidas por superendividamento, deixe de aderir ou oferecer contraproposta ao plano de pagamento apresentado pelo devedor. O tema possui inegável relevância jurídica, espelhando importante desdobramento da aplicação prática da Lei n. 14.181/2021, que promoveu alterações no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto da Pessoa Idosa para aperfeiçoar a disciplina de concessão de crédito ao consumidor e, em especial, dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Assim, entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, às quais englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada, sem comprometer seu mínimo existencial, conforme artigo 54-A, § 1º e 2º do CDC. A Lei n. 14.181/2021 inovou ao introduzir, no CDC, tratamento amplo acerca do superendividamento, não mais limitado a pretensões revisionais em demandas judiciais ou renegociações individuais, em mutirões de dívidas. Nesse sentido, a novatio legis oferece uma espécie de antídoto à crise financeira do consumidor, mediante a organização de um plano para viabilizar o pagamento dos seus débitos, restabelecer seu acesso ao mercado e voltar a consumir, além de preservar o mínimo existencial. O procedimento estabelecido em lei prescreve uma fase conciliatória e preventiva à repactuação de dívidas, mediante realização de audiência preliminar com todos os credores, oportunidade na qual o consumidor apresentará um plano voluntário para o pagamento dos débitos. Nessa primeira etapa foram fixadas sanções contra comportamentos do credor que inviabilizem ou retirem a utilidade da própria audiência, quais sejam: o não comparecimento injustificado, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir (art. 104-A, § 2º, do CDC). Nessas hipóteses específicas, que colidem com os princípios nos quais se baseia a lei, em especial, a cooperação e a solidariedade, ocorrerá a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de adimplemento da dívida, caso o montante devido ao ausente for certo e conhecido pelo consumidor, circunstância na qual o pagamento do respectivo crédito somente ocorrerá após saldado o débito junto aos credores presentes à audiência conciliatória. Em que pese a importância da audiência e o prestígio dado pelo sistema à autocomposição, não há respaldo legal para a aplicação, por analogia, das penalidades acima referidas, isto é, caso não haja acordo entre as partes, ou na hipótese do credor não apresentar contraproposta. Dessa forma, a ausência de aceitação do plano de pagamento sugerido pelo devedor e a falta de apresentação de contraposta não geram, como consequência, a aplicação dos efeitos do § 2º do artigo 104-A do CDC, ensejando, apenas, a eventual instauração da segunda fase do processo de superendividamento para a revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas, ficando a cargo do juiz a possibilidade de conceder tutelas cautelares, as quais podem incluir, entre outras, as medidas do § 2º do artigo 104-A do CDC.
Negativa lícita de cobertura de canabidiol por planos de saúde fora do Rol da ANS
Cinge-se a controvérsia quanto à obrigatoriedade ou não de cobertura, pela operadora de plano de saúde, de medicamento à base de canabidiol (pasta de canabidiol), de uso domiciliar, não previsto no rol da ANS, prescrito para o tratamento de beneficiária diagnosticada com transtorno do espectro autista. É clara a intenção do legislador, desde a redação originária da Lei 9.656/1998, de excluir os medicamentos de uso domiciliar da cobertura obrigatória imposta às operadoras de planos de saúde; por esse motivo, inclusive, de lá para cá, algumas poucas exceções a essa regra foram sendo acrescentadas à lei e ao rol da ANS. Admitir que há obrigação de cobertura de medicamentos de uso domiciliar quando preenchidos os requisitos do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998 é, na prática, fazer daquela regra uma exceção, considerando que estariam as operadoras obrigadas a prestar assistência farmacológica a um significativo número de beneficiários, portadores de variadas doenças crônicas, para cujo tratamento há, no mercado, inúmeros medicamentos de uso domiciliar de comprovada eficácia, nos moldes do que exige o § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998. Essas duas normas, portanto, conforme entendimento doutrinário, devem ser interpretadas como "partes de um só todo, destinadas a complementarem-se mutuamente". Dessa forma, por força do que dispõe o art. 10, VI, da Lei 9.656/1998, salvo nas hipóteses excepcional e expressamente previstas em lei, no contrato ou em norma regulamentar, a operadora não está obrigada à cobertura de medicamento de uso domiciliar (exceção legal), ainda que preenchidos os requisitos do § 13, porquanto tais requisitos, de acordo com a própria redação do dispositivo, estão relacionados à obrigação de cobertura de tratamento ou procedimento excluído do plano-referência apenas por não estar previsto no rol da ANS (exceção regulamentar). Especificamente quanto à cobertura de medicamento à base de canabidiol, é certo que há, na jurisprudência do STJ, julgados no sentido de impor a sua cobertura à operadora do plano de saúde (AgInt no REsp 2.107.501/SP, Terceira Turma, julgado em 14/10/2024, DJe de 17/10/2024; AgInt nos EDcl no REsp 2.107.741/SP, Terceira Turma, julgado em 26/8/2024, DJe de 29/8/2024; REsp 2.128.977/SP, Ministro Antônio Carlos Ferreira, DJe 09/09/2024; REsp 2.130.379/SP, Ministro João Otávio de Noronha, DJe 07/05/2024). No entanto, quando essa questão foi examinada sob a ótica da forma de administração do medicamento (domiciliar), como no presente recurso, a Terceira Turma do STJ afastou tal obrigação, concluindo que "a regra que impõe a obrigação de cobertura de tratamento ou procedimento não listado no rol da ANS (§ 13) não alcança as exceções previstas nos incisos do caput do art. 10 da Lei 9.656/1998, de modo que, salvo nas hipóteses estabelecidas na lei, no contrato ou em norma regulamentar, não pode a operadora ser obrigada à cobertura de medicamento de uso domiciliar, ainda que preenchidos os requisitos do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998" (REsp 2.071.955/RS, Terceira Turma, julgado em 5/3/2024, DJe de 7/3/2024). Convém ressaltar que não prospera o argumento de que "os medicamentos à base de canabidiol, embora sejam de uso domiciliar, não devem ser equiparados àqueles adquiridos diretamente pelos consumidores em farmácias comuns", porque o que caracteriza o medicamento como de uso domiciliar é a sua forma de administração - em ambiente externo ao de unidade de saúde. Convém ademais ressaltar, noutra toada, que a cobertura será obrigatória se a medicação, embora de uso domiciliar, for administrada durante a internação domiciliar substitutiva da hospitalar, nos termos do que estabelece o art. 12, II, d, da Lei 9.656/1998, e o art. 13 da Resolução ANS 465/2021. Igualmente, ainda que administrado em ambiente externo ao de unidade de saúde, como em domicílio, será obrigatória a sua cobertura se exigir a intervenção ou supervisão direta de profissional de saúde habilitado (REsp 1.927.566/RS, Terceira Turma, julgado em 24/8/2021, DJe de 30/8/2021; AgInt nos EREsp 1.895.659/PR, Segunda Seção, julgado em 29/11/2022, DJe de 9/12/2022). Por fim, insta salientar que tramita, no Senado Federal, o PL 89/2023, que visa ao fornecimento, pelo SUS, de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de canabidiol, de modo que espera-se, assim, que, em breve, todos aqueles que necessitam de medicamentos de uso domiciliar à base de canabidiol possam ter acesso gratuito ao fármaco devidamente prescrito.
Gratuidade de justiça posterior à primeira manifestação dispensa prova de alteração econômica
O propósito recursal consiste em decidir se a concessão da gratuidade de justiça, requerida pela primeira vez em sede recursal, exige a comprovação do decréscimo patrimonial ou da redução da capacidade econômico-financeira do requerente. De acordo com o art. 99, caput e § 1º, do CPC, "o pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso", sendo que, "se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo". A corroborar o texto legal, a jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a gratuidade da justiça pode ser solicitada a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição (AgInt nos EDcl no AREsp 1.064.017/SC, Quarta Turma, DJe de 20/5/2019; AgInt no AREsp 862.843/PR, Quarta Turma, DJe de 28/8/2017; e AgRg no Ag 979.812/SP, Quarta Turma, DJe de 5/11/2008). Além disso, a legislação não impõe que o pedido superveniente de gratuidade, formulado após a primeira manifestação nos autos, venha acompanhado de provas da alteração da condição econômica do requerente. Portanto, a análise deve considerar a situação financeira no momento da solicitação, sendo irrelevante eventual variação patrimonial desde o início da demanda. Presentes os requisitos legais (insuficiência de recursos financeiros), o benefício será concedido; ausentes, será indeferido. Situação diversa ocorre quando a benesse houver sido anteriormente negada ou concedida e fatos supervenientes tenham o condão de possibilitara sua revisão. Apesar da possibilidade de requerer a gratuidade a qualquer momento, o benefício não retroage para alcançar encargos processuais anteriores ao pedido. Ou seja, o indivíduo que o pleitear em momento posterior não está desincumbido dos débitos anteriores ao deferimento da benesse, entre os quais se incluem os honorários advocatícios a que fora previamente condenado.
Critérios de fruição da alíquota zero do PERSE no setor de turismo
A controvérsia repetitiva foi assim delimitada: Definir 1) se é necessário (ou não) que o contribuinte esteja previamente inscrito no CADASTUR, conforme previsto na Lei n. 11.771/2008, para que possa usufruir dos benefícios previstos no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE), instituído pela Lei 14.148/2021; 2) se o contribuinte optante pelo SIMPLES Nacional pode (ou não) beneficiar-se da alíquota zero relativa ao PIS/COFINS, à CSLL e ao IRPJ, prevista no PERSE, considerando a vedação legal inserta no art. 24, § 1º, da LC n. 123/2006. O PERSE estabeleceu ações emergenciais e temporárias destinadas ao setor de eventos para compensar os efeitos decorrentes das medidas de isolamento ou de quarentena realizadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19, estabelecendo um benefício de alíquota 0% (zero por cento) para a Contribuição PIS/Pasep, Cofins, CSLL e IRPJ (art. 4º da Lei n. 14.148/2021).. A primeira questão diz com a interpretação conjunta do art. 2º, § 1º, IV, da Lei n. 14.148/2021, e dos arts. 21 e 22 da Lei n. 11.771/2008. Busca-se a uniformização da jurisprudência quanto a legitimidade da exigência de prévia inscrição no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos - CADASTUR, na data da publicação da Lei n. 14.148/2021, a fim de que as empresas prestadoras de serviços turísticos possam ingressar no PERSE. O art. 21 da Lei n. 11.771/2008 traz um rol de atividades econômicas que são consideradas como prestação de serviço de turismo em seu caput. Já, no parágrafo único, dispõe que as sociedades empresárias que prestam atividades enquadradas em um segundo rol de atividades econômicas "poderão ser cadastradas no Ministério do Turismo". Anote-se que a Lei n. 14.978, de 18 de setembro de 2024, fez ampliações no conceito de "prestadores de serviços turísticos", transformou o parágrafo único em § 1º, dentre outras alterações, sem relevância para o deslinde desta controvérsia. Por sua vez, o art. 22 da Lei n. 11.771/2008 diz que as prestadoras de serviços turísticos, definidas no artigo anterior, "estão obrigados ao cadastro no Ministério do Turismo", o mencionado CADASTUR. O entendimento adotado pelo Ministério da Economia e pela Receita Federal do Brasil foi no sentido de que a "prestação de serviços turísticos" só dá jus ao benefício fiscal se a sociedade empresária estiver inscrita e em situação regular no CADASTUR no momento da publicação das partes vetadas da Lei n. 14.148/2021 (18/3/2022). Nesse mesmo sentido, as normas complementares contêm listas de códigos na CNAE que são potencialmente entendidos como "prestação de serviços turísticos". O enquadramento nos códigos listados, no entanto, não é tido por suficiente: exige-se a combinação com a inscrição regular no CADASTUR por ocasião da publicação da lei que criou o PERSE. Esse entendimento do Poder Executivo foi posteriormente positivado em lei. A Medida Provisória n. 1.147/2022, convertida na Lei n. 14.592/2023, introduziu § 5º no art. 4º da Lei n. 14.148/2021, condicionando o benefício "à regularidade, em 18 de março de 2022, de sua situação perante o Cadastro dos Prestadores de Serviços Turísticos (CADASTUR)". Ademais, alguns setores são apenas eventualmente ligados à cadeia produtiva do turismo, como o setor de "restaurantes, cafeterias, bares e similares" (art. 21, parágrafo único, I, atual § 1º, I, da Lei n. 11.771/2008), a depender da clientela para o qual o estabelecimento é voltado. Justamente por essa razão, a pessoa prestadora de tais serviços têm a prerrogativa de se cadastrar ou não no CADASTUR, de modo que, somente se cadastrada, terá que observar as obrigações e fará jus aos direitos pertinentes do status de prestador de serviços turísticos, sendo, sob esse aspecto, o cadastro é facultativo. Assim, para esses setores, a opção pelo cadastro é constitutiva da situação de prestador de serviços turísticos, e é nesse sentido que deve ser compreendida a obrigatoriedade do cadastro, prevista no art. 22, em relação àqueles que poderão ser cadastrados, na forma do art. 21, § 1º, da Lei n. 11.771/2008. Assim, a exigência da regularidade no CADASTUR foi o critério elemento indicativo adicional para indicar que, naquele caso, o contribuinte do ramo de restaurantes, cafeterias, bares e similares é um prestador de serviços turísticos. O § 2º do art. 2º da Lei n. 14.148/2021 é relevante porque autoriza o Poder Executivo a complementar a lei e estabelecer o código do CNAE como critério de enquadramento no Programa. Em um momento em que o distanciamento social era uma exigência de saúde pública, esse mandado conferido pelo legislador ao Poder Executivo simplificava a demonstração do direito ao benefício. No entanto, esse dispositivo não exclui a articulação com outros elementos indicativos, que sejam demonstrativos do conceito legal em tela. No caso da prestação de serviços turísticos, é perfeitamente adequada a articulação com o CADASTUR, cadastro com previsão legal específica. Se o CADASTUR não fosse usado como elemento indicativo, todo e qualquer restaurante ou assemelhado faria jus ao PERSE. A lei não deu essa amplitude ao universo de beneficiados, na medida em que o benefício foi ligado ao setor de turismo, não de alimentação. Dessa forma, a leitura conjunta do inciso IV do § 1º do art. 2º, Lei n. 14.148/2021, que menciona a "prestação de serviços turísticos", remetendo sua definição a dispositivo de outra lei (art. 21 da Lei n. 11.771/2008); com o § 2º do mesmo artigo, que estabelece o código da CNAE como elemento indicativo do enquadramento na definição, permite buscar outros elementos indicativos da medida de comparação na legislação específica sobre a prestação de serviços turísticos. A inscrição regular no CADASTUR em dado momento complementa a demonstração da hipótese legal de tratamento diferenciado e está em conformidade com o texto e a finalidade da lei. A segunda questão diz respeito à restrição da fruição do mesmo benefício fiscal de redução a 0% (zero por cento) da alíquota para a Contribuição PIS/Pasep, Cofins, CSLL e IRPJ, previsto no art. 4º da Lei n. 14.148/2021, pelas pessoas jurídicas optantes pelo Simples Nacional, tendo em vista a interpretação do art. 24, § 1º, da Lei Complementar n. 123/2006. O Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional é um regime especial e opcional de tributação que permite o recolhimento unificado dos principais impostos e contribuições (arts. 12 e 13 da Lei Complementar n. 123/2006). Como regime especial, o Simples Nacional é regido por uma série de normas aplicáveis aos optantes. Uma dessas normas é a regra que veda a cumulação do regime simplificado com benefícios fiscais (art. 24, § 1º, da Lei Complementar n. 123/2006). A vedação de cumulação faz parte do Simples Nacional, sendo ela aplicável, ainda que não haja reprodução na legislação de regência do benefício fiscal. Essa vedação de cumulação é peremptória e inexorável. Não se deixou espaço para aplicação de legislação excepcional ou temporária, como é o caso da Lei n. 14.148/2021, que trata de medidas de combate à pandemia da Covid-19. A Lei Complementar despreza as benesses estabelecidas no exercício da competência tributária por quaisquer dos entes da federação, "exceto as previstas ou autorizadas nesta Lei Complementar". Além disso, tendo em vista o caráter opcional do regime simplificado, aos contribuintes não cabe invocar o princípio da igualdade para exigir o tratamento favorecido. A microempresa ou empresa de pequeno porte não é obrigada a recolher seus tributos pelo regime do Simples Nacional, podendo seguir os regimes não simplificados de tributação, se assim for de seu interesse. Logo, o benefício fiscal não pode ser estendido, com base na isonomia. Dessa forma, os optantes do Simples Nacional não fazem jus ao benefício do art. 4º da Lei n. 14.148/2021.
Legitimidade da cobrança de laudêmio em permuta onerosa de terreno de marinha com unidades futuras
Cinge-se a controvérsia sobre a possibilidade de cobrança do laudêmio pela transferência onerosa de imóveis edificados sobre terreno de marinha, em caso de "permuta no local", espécie de negócio pelo qual a incorporadora recebe o terreno em troca dos imóveis futuramente construídos. Segundo o Tribunal de origem, a incidência não estaria justificada porque a parte recorrida reservou para si, desde o início, a parcela de 22,43% da fração ideal do terreno, por ocasião da primeira etapa da permuta. Essa parcela seria equivalente aos imóveis construídos que, portanto, jamais teriam saído da titularidade do cedente do domínio útil. Contudo, para o Superior Tribunal de Justiça, no âmbito privado, essa entrega dos imóveis construídos é uma relação autônoma, pela qual o ex-proprietário do terreno paga, com ele, pelos novos imóveis que recebe. Isto é: a permuta não desnatura o negócio consumerista de compra do imóvel construído (REsp n. 686.198/RJ, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/10/2007, DJ de 1/2/2008), nem a relação tributária imobiliária das duas etapas da troca (REsp n. 722.752/RJ, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 5/3/2009, DJe de 11/11/2009). Não há nem mesmo possibilidade de confusão entre o domínio útil do terreno e dos imóveis construídos, como parece ter concluído a origem. Pela natureza do negócio entabulado, o que se pode compreender é que as construções transferidas ao ex-titular do domínio útil sobre o terreno equivaleriam, financeiramente, a aproximados 78% do valor do domínio útil do terreno todo, razão pela qual a parte recorrida reservou a titularidade da parcela remanescente. Essa questão, porém, diz respeito unicamente aos particulares e ao valor do negócio entre eles. Caso fossem relações privadas, haveria regular cobrança de ITBI (ou tributos sobre a renda, conforme o caso) sobre ambas as etapas da troca, tanto na transferência do terreno à construtora quanto na entrega dos imóveis construídos ao ex-proprietário do terreno. Em analogia, sendo aqui abordada relação de direito administrativo, há incidência do laudêmio pela transferência dos imóveis edificados, que não se confundem, de qualquer maneira, com o terreno anteriormente existente. Concluída a obra, portanto, aperfeiçoa a permuta pela transferência do novo imóvel ao ex-titular do domínio útil do terreno. É dizer, em outros termos, que a permuta no local não se confunde com contrato de empreitada, realizada esta pela construtora, em troca do domínio útil do terreno. Assim, no que tange ao pagamento do laudêmio sobre as edificações, o acórdão comporta reforma. Quanto à questão do laudêmio sobre o terreno nu, conforme a inicial, a autora reservou para si 22% das benfeitorias existentes sobre o terreno, e não sobre o próprio terreno. Não é possível compreender essa condição como reserva da titularidade do domínio útil sobre o terreno de marinha. Ainda que a reserva tivesse sido efetivada sobre o terreno, o que se extrairia seria a existência de uma espécie de "contrato de gaveta" sobre a titularidade do domínio útil do terreno de marinha, eventualmente válido entre os particulares, mas inoponível à União, ainda que registrado. Isso porque a transferência parcial do domínio útil demandaria novo aforamento e desmembramento do imóvel. Nesse mesmo sentido, por analogia, são as teses fixadas nos Temas a n. 1.142/STJ e n. 419/STJ. Nesse sentido, a transferência do domínio útil poderia ser parcial, disso não há dúvida, e somente seria cobrado o laudêmio sobre a parcela transferida, mas para isso seria necessária a atribuição da propriedade. Porém, o anterior titular do domínio não providenciou esse ato, tanto assim que foi necessário o recolhimento integral do laudêmio. Inexiste nessa exigência administrativa ilicitude apta a desconstituir a cobrança. Seria indispensável evidenciar a nulidade do ato administrativo, em primeiro lugar, ainda que pela regularização da titularidade do terreno de marinha, para posteriormente discutir-se a eventual insubsistência da cobrança. Dessa forma, mantida a premissa de que a transferência, no que tange à União, foi integral, não é viável restituir o laudêmio por força de contrato entre os particulares.