Negativa lícita de cobertura de canabidiol por planos de saúde fora do Rol da ANS
Cinge-se a controvérsia quanto à obrigatoriedade ou não de cobertura, pela operadora de plano de saúde, de medicamento à base de canabidiol (pasta de canabidiol), de uso domiciliar, não previsto no rol da ANS, prescrito para o tratamento de beneficiária diagnosticada com transtorno do espectro autista. É clara a intenção do legislador, desde a redação originária da Lei 9.656/1998, de excluir os medicamentos de uso domiciliar da cobertura obrigatória imposta às operadoras de planos de saúde; por esse motivo, inclusive, de lá para cá, algumas poucas exceções a essa regra foram sendo acrescentadas à lei e ao rol da ANS. Admitir que há obrigação de cobertura de medicamentos de uso domiciliar quando preenchidos os requisitos do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998 é, na prática, fazer daquela regra uma exceção, considerando que estariam as operadoras obrigadas a prestar assistência farmacológica a um significativo número de beneficiários, portadores de variadas doenças crônicas, para cujo tratamento há, no mercado, inúmeros medicamentos de uso domiciliar de comprovada eficácia, nos moldes do que exige o § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998. Essas duas normas, portanto, conforme entendimento doutrinário, devem ser interpretadas como "partes de um só todo, destinadas a complementarem-se mutuamente". Dessa forma, por força do que dispõe o art. 10, VI, da Lei 9.656/1998, salvo nas hipóteses excepcional e expressamente previstas em lei, no contrato ou em norma regulamentar, a operadora não está obrigada à cobertura de medicamento de uso domiciliar (exceção legal), ainda que preenchidos os requisitos do § 13, porquanto tais requisitos, de acordo com a própria redação do dispositivo, estão relacionados à obrigação de cobertura de tratamento ou procedimento excluído do plano-referência apenas por não estar previsto no rol da ANS (exceção regulamentar). Especificamente quanto à cobertura de medicamento à base de canabidiol, é certo que há, na jurisprudência do STJ, julgados no sentido de impor a sua cobertura à operadora do plano de saúde (AgInt no REsp 2.107.501/SP, Terceira Turma, julgado em 14/10/2024, DJe de 17/10/2024; AgInt nos EDcl no REsp 2.107.741/SP, Terceira Turma, julgado em 26/8/2024, DJe de 29/8/2024; REsp 2.128.977/SP, Ministro Antônio Carlos Ferreira, DJe 09/09/2024; REsp 2.130.379/SP, Ministro João Otávio de Noronha, DJe 07/05/2024). No entanto, quando essa questão foi examinada sob a ótica da forma de administração do medicamento (domiciliar), como no presente recurso, a Terceira Turma do STJ afastou tal obrigação, concluindo que "a regra que impõe a obrigação de cobertura de tratamento ou procedimento não listado no rol da ANS (§ 13) não alcança as exceções previstas nos incisos do caput do art. 10 da Lei 9.656/1998, de modo que, salvo nas hipóteses estabelecidas na lei, no contrato ou em norma regulamentar, não pode a operadora ser obrigada à cobertura de medicamento de uso domiciliar, ainda que preenchidos os requisitos do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998" (REsp 2.071.955/RS, Terceira Turma, julgado em 5/3/2024, DJe de 7/3/2024). Convém ressaltar que não prospera o argumento de que "os medicamentos à base de canabidiol, embora sejam de uso domiciliar, não devem ser equiparados àqueles adquiridos diretamente pelos consumidores em farmácias comuns", porque o que caracteriza o medicamento como de uso domiciliar é a sua forma de administração - em ambiente externo ao de unidade de saúde. Convém ademais ressaltar, noutra toada, que a cobertura será obrigatória se a medicação, embora de uso domiciliar, for administrada durante a internação domiciliar substitutiva da hospitalar, nos termos do que estabelece o art. 12, II, d, da Lei 9.656/1998, e o art. 13 da Resolução ANS 465/2021. Igualmente, ainda que administrado em ambiente externo ao de unidade de saúde, como em domicílio, será obrigatória a sua cobertura se exigir a intervenção ou supervisão direta de profissional de saúde habilitado (REsp 1.927.566/RS, Terceira Turma, julgado em 24/8/2021, DJe de 30/8/2021; AgInt nos EREsp 1.895.659/PR, Segunda Seção, julgado em 29/11/2022, DJe de 9/12/2022). Por fim, insta salientar que tramita, no Senado Federal, o PL 89/2023, que visa ao fornecimento, pelo SUS, de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de canabidiol, de modo que espera-se, assim, que, em breve, todos aqueles que necessitam de medicamentos de uso domiciliar à base de canabidiol possam ter acesso gratuito ao fármaco devidamente prescrito.
Gratuidade de justiça posterior à primeira manifestação dispensa prova de alteração econômica
O propósito recursal consiste em decidir se a concessão da gratuidade de justiça, requerida pela primeira vez em sede recursal, exige a comprovação do decréscimo patrimonial ou da redução da capacidade econômico-financeira do requerente. De acordo com o art. 99, caput e § 1º, do CPC, "o pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso", sendo que, "se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo". A corroborar o texto legal, a jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a gratuidade da justiça pode ser solicitada a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição (AgInt nos EDcl no AREsp 1.064.017/SC, Quarta Turma, DJe de 20/5/2019; AgInt no AREsp 862.843/PR, Quarta Turma, DJe de 28/8/2017; e AgRg no Ag 979.812/SP, Quarta Turma, DJe de 5/11/2008). Além disso, a legislação não impõe que o pedido superveniente de gratuidade, formulado após a primeira manifestação nos autos, venha acompanhado de provas da alteração da condição econômica do requerente. Portanto, a análise deve considerar a situação financeira no momento da solicitação, sendo irrelevante eventual variação patrimonial desde o início da demanda. Presentes os requisitos legais (insuficiência de recursos financeiros), o benefício será concedido; ausentes, será indeferido. Situação diversa ocorre quando a benesse houver sido anteriormente negada ou concedida e fatos supervenientes tenham o condão de possibilitara sua revisão. Apesar da possibilidade de requerer a gratuidade a qualquer momento, o benefício não retroage para alcançar encargos processuais anteriores ao pedido. Ou seja, o indivíduo que o pleitear em momento posterior não está desincumbido dos débitos anteriores ao deferimento da benesse, entre os quais se incluem os honorários advocatícios a que fora previamente condenado.
Assistência jurídica qualificada obrigatória na Lei Maria da Penha e nomeação provisória automática da Defensoria
As questões em discussão consistem em saber se (1) é obrigatória a chamada "assistência jurídica qualificada", prevista nos artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha, e se tem aplicação perante o Tribunal do Júri; (2) se atuação da Defensoria Pública em polos opostos nos mesmos autos configura ofensa à sua unidade e indivisibilidade; (3) se é legítima a atuação compulsória da Defensoria Pública como assistente da vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher, e se isso viola o direito de livre escolha da ofendida. Inicialmente, cumpre asseverar que a atuação da Defensoria Pública em polos opostos nos mesmos autos não configura ofensa à sua unidade e indivisibilidade (CF, art. 134, § 4º). A natureza institucional da Defensoria, que a distingue dos advogados privados, não obsta que defensores públicos diversos, investidos de independência funcional (LC n. 80/1994, art. 4º, § 6º), atuem simultaneamente em defesa do réu e da vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher no mesmo processo, desde que ausente qualquer identidade subjetiva entre os membros que os patrocinam. A Lei Maria da Penha traz diversos mecanismos, não apenas para coibir e prevenir a violência, mas para apoiar as mulheres vítimas dessa mazela social. Nesse contexto, albergou preceitos cogentes e de eficácia plena. Entre eles, o disposto no artigo 27, in verbis: "Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei". Trata-se de norma de comando vinculante, sem qualquer margem para discricionariedade judicial. O verbo "deverá" exprime mandamento obrigatório, não autorizando exegese que condicione sua eficácia à manifestação de vontade da vítima, sob pena de malferimento à própria mens legis do diploma. O artigo 28, por sua vez, garante à mulher o acesso aos serviços da Defensoria Pública ou de assistência judiciária gratuita "nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado", ou seja, direito de assistência jurídica distinta da prestada ao ofensor, de forma a se assegurar especialização e sensibilidade. Tais dispositivos de lei não criaram uma nova modalidade de intervenção de terceiros, apenas preconizaram a presença de advogado ou defensor público a fim de orientar, proteger e fazer valer os direitos da vítima de violência doméstica do sexo feminino. A representação processual da vítima prevista nos referidos artigos da Lei n. 11.340/2006 visa, ainda, evitar julgamentos com exteriorização de preconceitos, estereótipos e considerações depreciativas sobre o comportamento da ofendida, prevenindo-se a continuação da violência, na forma institucional. Em relação à aplicabilidade nos feitos de competência do Tribunal do Júri, não há razões jurídicas para discordar que o instituto da assistência qualificada às vítimas de feminicídio também vige no âmbito dessa Corte especializada. A expressão "em todos os atos processuais, cíveis e criminais", ao contrário de afastar, corrobora a necessidade da assistência especializada e humanizada no Tribunal do Júri, notadamente quando considerada a complexidade do julgamento, feito por pares, além de todas as etapas processuais existentes naquele procedimento, sem falar na maior fragilidade psicológica imprimida às vítimas de feminicídio e seus familiares. Vale ressaltar que a tipificação do crime feminicídio, através da Lei n. 13.104/2015, impôs à análise desse grave delito sob a perspectiva de gênero, assegurando, ainda que indiretamente, o sistema protetivo da Lei Maria da Penha às vítimas sobreviventes e aos familiares de quem não dispôs de proteção estatal efetiva e veio a falecer. Isso porque é no Tribunal do Júri onde a memória da vítima sofre as maiores incursões. A Lei n. 14.245/2021, corroborando o processo de não revitimização da vítima de violência doméstica, em relação aos atos praticados no Plenário do Júri, impôs a todas partes o respeito à sua dignidade, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, "vedando a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objetos de apuração nos autos e a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas" (CPP, art. 474-A, I e II). É nesse contexto que se pode inferir que a assistência jurídica qualificada da vítima adquire caráter cogente também no Tribunal do Júri, devendo a mulher vítima de feminicídio, em situação de violência doméstica e familiar, estar acompanhada de advogado em todos os atos processuais. A Lei n. 11.340/2006 criou uma modalidade de assistência obrigatória, que não comporta juízo de discricionariedade, e implica dizer que independe de autorização judicial e de oitiva do órgão acusador. Nas ações penais públicas, condicionadas ou não, não cabe ao Ministério Público defender ou pleitear interesses individuais da mulher vítima de violência doméstica. O único órgão estatal que tem por escopo garantir os direitos da vítima vulnerável é a Defensoria Pública, condição que foi erigida pela Constituição Federal de 1988. Por fim, a nomeação judicial da Defensoria Pública sem prévia anuência da vítima não afronta a sua liberdade de escolha e nem ignora a sistemática supletiva prevista implicitamente na própria Lei Maria da Penha. Em verdade, o que a norma contempla é a obrigatoriedade da presença de defensor técnico - não necessariamente da Defensoria Pública -, sendo certo que, caso a vítima constitua advogado de sua confiança, este substituirá a Defensoria, exonerando-a do munus. A nomeação judicial opera, nesse cenário, como medida de tutela provisória, à míngua de manifestação expressa da ofendida.
Critérios de fruição da alíquota zero do PERSE no setor de turismo
A controvérsia repetitiva foi assim delimitada: Definir 1) se é necessário (ou não) que o contribuinte esteja previamente inscrito no CADASTUR, conforme previsto na Lei n. 11.771/2008, para que possa usufruir dos benefícios previstos no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE), instituído pela Lei 14.148/2021; 2) se o contribuinte optante pelo SIMPLES Nacional pode (ou não) beneficiar-se da alíquota zero relativa ao PIS/COFINS, à CSLL e ao IRPJ, prevista no PERSE, considerando a vedação legal inserta no art. 24, § 1º, da LC n. 123/2006. O PERSE estabeleceu ações emergenciais e temporárias destinadas ao setor de eventos para compensar os efeitos decorrentes das medidas de isolamento ou de quarentena realizadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19, estabelecendo um benefício de alíquota 0% (zero por cento) para a Contribuição PIS/Pasep, Cofins, CSLL e IRPJ (art. 4º da Lei n. 14.148/2021).. A primeira questão diz com a interpretação conjunta do art. 2º, § 1º, IV, da Lei n. 14.148/2021, e dos arts. 21 e 22 da Lei n. 11.771/2008. Busca-se a uniformização da jurisprudência quanto a legitimidade da exigência de prévia inscrição no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos - CADASTUR, na data da publicação da Lei n. 14.148/2021, a fim de que as empresas prestadoras de serviços turísticos possam ingressar no PERSE. O art. 21 da Lei n. 11.771/2008 traz um rol de atividades econômicas que são consideradas como prestação de serviço de turismo em seu caput. Já, no parágrafo único, dispõe que as sociedades empresárias que prestam atividades enquadradas em um segundo rol de atividades econômicas "poderão ser cadastradas no Ministério do Turismo". Anote-se que a Lei n. 14.978, de 18 de setembro de 2024, fez ampliações no conceito de "prestadores de serviços turísticos", transformou o parágrafo único em § 1º, dentre outras alterações, sem relevância para o deslinde desta controvérsia. Por sua vez, o art. 22 da Lei n. 11.771/2008 diz que as prestadoras de serviços turísticos, definidas no artigo anterior, "estão obrigados ao cadastro no Ministério do Turismo", o mencionado CADASTUR. O entendimento adotado pelo Ministério da Economia e pela Receita Federal do Brasil foi no sentido de que a "prestação de serviços turísticos" só dá jus ao benefício fiscal se a sociedade empresária estiver inscrita e em situação regular no CADASTUR no momento da publicação das partes vetadas da Lei n. 14.148/2021 (18/3/2022). Nesse mesmo sentido, as normas complementares contêm listas de códigos na CNAE que são potencialmente entendidos como "prestação de serviços turísticos". O enquadramento nos códigos listados, no entanto, não é tido por suficiente: exige-se a combinação com a inscrição regular no CADASTUR por ocasião da publicação da lei que criou o PERSE. Esse entendimento do Poder Executivo foi posteriormente positivado em lei. A Medida Provisória n. 1.147/2022, convertida na Lei n. 14.592/2023, introduziu § 5º no art. 4º da Lei n. 14.148/2021, condicionando o benefício "à regularidade, em 18 de março de 2022, de sua situação perante o Cadastro dos Prestadores de Serviços Turísticos (CADASTUR)". Ademais, alguns setores são apenas eventualmente ligados à cadeia produtiva do turismo, como o setor de "restaurantes, cafeterias, bares e similares" (art. 21, parágrafo único, I, atual § 1º, I, da Lei n. 11.771/2008), a depender da clientela para o qual o estabelecimento é voltado. Justamente por essa razão, a pessoa prestadora de tais serviços têm a prerrogativa de se cadastrar ou não no CADASTUR, de modo que, somente se cadastrada, terá que observar as obrigações e fará jus aos direitos pertinentes do status de prestador de serviços turísticos, sendo, sob esse aspecto, o cadastro é facultativo. Assim, para esses setores, a opção pelo cadastro é constitutiva da situação de prestador de serviços turísticos, e é nesse sentido que deve ser compreendida a obrigatoriedade do cadastro, prevista no art. 22, em relação àqueles que poderão ser cadastrados, na forma do art. 21, § 1º, da Lei n. 11.771/2008. Assim, a exigência da regularidade no CADASTUR foi o critério elemento indicativo adicional para indicar que, naquele caso, o contribuinte do ramo de restaurantes, cafeterias, bares e similares é um prestador de serviços turísticos. O § 2º do art. 2º da Lei n. 14.148/2021 é relevante porque autoriza o Poder Executivo a complementar a lei e estabelecer o código do CNAE como critério de enquadramento no Programa. Em um momento em que o distanciamento social era uma exigência de saúde pública, esse mandado conferido pelo legislador ao Poder Executivo simplificava a demonstração do direito ao benefício. No entanto, esse dispositivo não exclui a articulação com outros elementos indicativos, que sejam demonstrativos do conceito legal em tela. No caso da prestação de serviços turísticos, é perfeitamente adequada a articulação com o CADASTUR, cadastro com previsão legal específica. Se o CADASTUR não fosse usado como elemento indicativo, todo e qualquer restaurante ou assemelhado faria jus ao PERSE. A lei não deu essa amplitude ao universo de beneficiados, na medida em que o benefício foi ligado ao setor de turismo, não de alimentação. Dessa forma, a leitura conjunta do inciso IV do § 1º do art. 2º, Lei n. 14.148/2021, que menciona a "prestação de serviços turísticos", remetendo sua definição a dispositivo de outra lei (art. 21 da Lei n. 11.771/2008); com o § 2º do mesmo artigo, que estabelece o código da CNAE como elemento indicativo do enquadramento na definição, permite buscar outros elementos indicativos da medida de comparação na legislação específica sobre a prestação de serviços turísticos. A inscrição regular no CADASTUR em dado momento complementa a demonstração da hipótese legal de tratamento diferenciado e está em conformidade com o texto e a finalidade da lei. A segunda questão diz respeito à restrição da fruição do mesmo benefício fiscal de redução a 0% (zero por cento) da alíquota para a Contribuição PIS/Pasep, Cofins, CSLL e IRPJ, previsto no art. 4º da Lei n. 14.148/2021, pelas pessoas jurídicas optantes pelo Simples Nacional, tendo em vista a interpretação do art. 24, § 1º, da Lei Complementar n. 123/2006. O Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional é um regime especial e opcional de tributação que permite o recolhimento unificado dos principais impostos e contribuições (arts. 12 e 13 da Lei Complementar n. 123/2006). Como regime especial, o Simples Nacional é regido por uma série de normas aplicáveis aos optantes. Uma dessas normas é a regra que veda a cumulação do regime simplificado com benefícios fiscais (art. 24, § 1º, da Lei Complementar n. 123/2006). A vedação de cumulação faz parte do Simples Nacional, sendo ela aplicável, ainda que não haja reprodução na legislação de regência do benefício fiscal. Essa vedação de cumulação é peremptória e inexorável. Não se deixou espaço para aplicação de legislação excepcional ou temporária, como é o caso da Lei n. 14.148/2021, que trata de medidas de combate à pandemia da Covid-19. A Lei Complementar despreza as benesses estabelecidas no exercício da competência tributária por quaisquer dos entes da federação, "exceto as previstas ou autorizadas nesta Lei Complementar". Além disso, tendo em vista o caráter opcional do regime simplificado, aos contribuintes não cabe invocar o princípio da igualdade para exigir o tratamento favorecido. A microempresa ou empresa de pequeno porte não é obrigada a recolher seus tributos pelo regime do Simples Nacional, podendo seguir os regimes não simplificados de tributação, se assim for de seu interesse. Logo, o benefício fiscal não pode ser estendido, com base na isonomia. Dessa forma, os optantes do Simples Nacional não fazem jus ao benefício do art. 4º da Lei n. 14.148/2021.
Exclusão da responsabilidade do motorista por fortuito externo decorrente de defeito do pneu
O propósito da controvérsia consiste em decidir se deve ser afastada a responsabilidade do motorista por fato de terceiro (fortuito externo), diante de acidente de carro, comprovadamente causado por defeito de fabricação no pneu, que resultou em danos a outrem. No caso, o motorista de carro, em razão do estouro de pneu por defeito de fabricação, perdeu o controle da direção e colidiu com caminhão, o que ocasionou a morte do primeiro condutor e danos materiais ao segundo. Diante da responsabilidade civil extracontratual derivada de acidentes automobilísticos, o Superior Tribunal de Justiça tem realizado interpretação a partir da teoria do corpo neutro, segundo a qual há a exclusão do nexo de causalidade por fato de terceiro quando este for a única causa do dano, sendo que tal se verifica quando não há ato volitivo do agente utilizado como instrumento. A teoria, usualmente invocada em situações de engavetamento, abrange também hipóteses nas quais o agente é, de modo inevitável, reduzido a mero instrumento físico por meio do qual terceiro ocasiona o dano. Nos sinistros veiculares, a decisão acerca da existência de fortuito externo (com o rompimento do nexo de causalidade) guarda intrínseca relação com a voluntariedade do agente no momento do acidente, isto é, com os elementos subjetivos da responsabilidade civil (dolo ou culpa). Compreende-se como involuntária e não volitiva a atuação do motorista de carro que, em razão do estouro de pneu por - comprovado - defeito de fabricação, perde o controle da direção e colide com caminhão, ocasionando a morte do primeiro condutor e danos materiais ao segundo. Nesta situação, o defeito do produto (art. 12 do CDC) configura fortuito externo que, por si só, é capaz de romper o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano ocasionado a outrem. Sem desconsiderar que os automóveis são instrumentos com potencialidade lesiva, não se pode conceber que a mera condução de veículo seja, de per si, causa suficiente para aplicação automática da responsabilidade objetiva (art. 927, parágrafo único, do Código Civil), ainda mais quando o automóvel se encontra em velocidade compatível com a via e com sinais de manutenção regular. Conclui-se que o defeito do produto (art. 12 do CDC) configura fortuito externo que, por si só, é capaz de romper o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano ocasionado a outrem.