Requisitos e validade do reconhecimento de pessoas conforme artigo 226 do CPP
Cinge-se a controvérsia a saber se a determinação contida no art. 226 do Código de Processo Penal, constitui norma de observância obrigatória sob pena de nulidade e qual o seu alcance. Sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vinha entendendo que a eventual inobservância das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal para o reconhecimento não corresponderia a causa de nulidade, uma vez que não se trata de exigências, mas de meras recomendações a serem observadas na implementação da medida. Rompendo com a posição jurisprudencial majoritária até então, a Sexta Turma do STJ, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC, julgado em 27/10/2020, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, propôs nova interpretação do art. 226 do CPP, segundo a qual a inobservância do procedimento descrito no mencionado dispositivo legal torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo. No mesmo sentido, em recente julgado, a Quinta Turma do STJ, à unanimidade, reconheceu que, "Não obstante a relevância da palavra da vítima, em especial em crimes sexuais, não é possível manter a condenação do paciente com fundamento em reconhecimentos viciados, convalidados pela existência de outros reconhecimentos realizados com os mesmos vícios, e desconstituídos por meio de prova pericial que não identificou o perfil genético do paciente nos materiais coletados das vítimas" (PExt no HC n. 870.636/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 14/5/2024, DJe de 20/5/2024. A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, de maneira consistente, vem entendendo que "O reconhecimento fotográfico realizado sem a observância das formalidades do art. 226 do CPP não constitui prova válida para sustentar a autoria delitiva, especialmente quando realizado de forma isolada e sem acompanhamento de outras provas robustas" (HC 245.814 AgR, Relator: Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 27/11/2024, 5/12/2024). De outro lado, há julgados recentes da Primeira Turma admitindo a ratificação, em juízo, de reconhecimento fotográfico falho, desde que valorado com o restante do conjunto probatório. Diante da divergência, mais recentemente, o plenário do STF afetou o ARE 1.467.470/RG, para julgamento no rito de repercussão geral (Tema 1.380), cuja controvérsia discute se o reconhecimento de pessoa realizado em desconformidade com o art. 226 do Código de Processo Penal é inválido por afronta às garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da vedação às provas ilícitas. No estudo do tema, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 484, de 19/12/2022, que "estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário". A resolução é resultado do trabalho do grupo criado pelo CNJ em 2021, e que produziu, em 2024, um Manual de Procedimentos de Reconhecimento de Pessoas conforme a Resolução CNJ n. 484/2022, que se debruça, detalhadamente, tanto sobre dados indicativos de erros no reconhecimento de pessoas no Brasil e no mundo quanto sobre os processos e variáveis que afetam a memória humana identificados em estudos especializados sobre o tema. A partir dos aprofundados estudos realizados pelo grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça ou aqueles já mencionados no leading case da Sexta Turma do STJ, pode-se concluir que a rigorosa observância do art. 226 do CPP não é mero formalismo estéril; pelo contrário, possui fundamentação técnico-científica sólida e respaldo em políticas legais de redução de erros. Nesse cenário, a observância obrigatória das disposições postas no art. 226 do CPP se coaduna com uma compreensão do processo penal de matiz garantista voltada para a busca da verdade real de forma mais segura e precisa. Funciona como uma garantia procedimental alinhada com os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal. Sob o ângulo técnico-científico, a formalidade do art. 226 se justifica como um meio de controle de qualidade da prova testemunhal. É uma resposta normativa às vulnerabilidades inerentes da memória humana. A falta de cumprimento dessas cautelas aumenta exponencialmente a chance de identificação equivocada, podendo levar um inocente à prisão - resultado diametralmente oposto à finalidade do processo penal. Ademais, um ponto científico crucial apontado pela Sexta Turma do STJ é a irrepetibilidade cognitiva do reconhecimento. Diferentemente de certas provas (v.g., perícias) que podem ser refeitas, o ato de reconhecimento não pode ser simplesmente reproduzido depois sem o risco de viés, porque a primeira exposição do suspeito à testemunha altera a memória desta. Estudos mostram que, após um reconhecimento, a testemunha pode incorporar a imagem do suspeito em sua memória como sendo a do autor - mesmo que estivesse incerta antes -, fenômeno conhecido como "efeito do reforço da confiança". Assim, se a primeira identificação foi errônea ou conduzida de forma inadequada, todas as subsequentes estarão comprometidas. Esse é o fundamento científico da regra jurisprudencial que veda convalidação posterior: a contaminação da memória é irreversível, motivo pelo qual a única forma de garantir justiça é prevenir o erro na origem, seguindo o procedimento adequado. Quanto aos efeitos processuais e probatórios da inobservância do art. 226 do CPP, o reconhecimento fotográfico e/ou pessoal irregular é prova inválida, devendo ser desconsiderada pelo julgador, na formação de seu convencimento. Assim, mesmo diante de posterior ratificação em juízo, com a observância dos ditames do art. 226 do CPP, o reconhecimento inicialmente viciado tem o potencial de macular a percepção futura do identificador, pelo que esvazia o seu grau de certeza. E, mais recentemente, a Quinta Turma do STJ, no AgRg no HC 819.550/SP, publicado em 6/11/2024, corroborando a tese, afirmou que "A nulidade do reconhecimento inicial contamina os subsequentes, conforme entendimento consolidado por esta Corte, especialmente quando não há outras provas independentes que confirmem a autoria delitiva". Por outro lado, se vítima e/ou testemunha já conheciam previamente o suspeito de cometimento do delito e são capazes de identificá-lo, o reconhecimento pessoal é desnecessário. No que concerne à possibilidade de decretação de prisão preventiva, recebimento de denúncia e pronúncia com base em reconhecimento fotográfico e/ou pessoal efetuado em descompasso com o art. 226 do CPP, há precedentes da Quinta e da Sexta Turma afirmando que "A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, satisfazendo-se, tão somente, pelo exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não demandando juízo de certeza necessário à sentença condenatória", bem como que "O reconhecimento fotográfico, ainda que questionável, é considerado indício mínimo de autoria para justificar a prisão cautelar". No entanto, diante das ponderações trazidas tanto pelo julgado da Sexta Turma do STJ no HC 712.781/RJ quanto no precedente da Segunda Turma do STF no RHC 206.486/SP, tem-se que, com efeito, o reconhecimento (fotográfico e/ou pessoal) comprovadamente efetuado em descompasso com as diretivas do art. 226 do CPP não é apto, de forma isolada e por si só, a consubstanciar indício suficiente de autoria para lastrear decretação de prisão preventiva, recebimento de denúncia ou pronúncia. Quanto à sentença condenatória, o reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, somente se presta a identificar o réu e a consubstanciar evidência da autoria delitiva se observadas as formalidades previstas no art. 226 do CPP e após sua submissão ao crivo do contraditório e da ampla defesa, na fase judicial. Ademais, diante das várias nuances capazes de afetar a memória humana, é de todo conveniente que mesmo o reconhecimento efetuado com observância aos preceitos do art. 226 do CPP seja confrontado com as demais evidências existentes nos autos, de modo a atenuar a fragilidade epistêmica que caracteriza a prova produzida por meio do reconhecimento pessoal. Cumpre ressalvar, contudo, que "É possível que o julgador, destinatário das provas, convença-se da autoria delitiva a partir de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato do reconhecimento pessoal falho, porquanto, sem prejuízo da nova orientação, não se pode olvidar que vigora no sistema probatório brasileiro o princípio do livre convencimento motivado, desde que existam provas produzidas em contraditório judicial" (AREsp 2.852.641/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 1/4/2025, DJEN 10/4/2025).
Responsabilidade da credenciadora de arranjo de pagamentos por fraudes de credenciamento com prova pericial
Ressalta-se, de início que o Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de descrever o papel dos diversos agentes que integram os denominados meios ou arranjos de pagamento, a partir do conteúdo extraído de cartilha disponibilizada pela Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs). De acordo com a referida publicação, incumbe à credenciadora: i) habilitar os lojistas a aceitarem pagamentos com instrumentos de pagamento/cartões com os quais possui relacionamento contratual, além de habilitar facilitadores de pagamento, que fazem a ponte entre o lojista e a credenciadora; ii) implantar rede de captura e terminais eletrônicos, máquinas de venda (POS e outros equipamentos), que são locados ou vendidos aos lojistas para realizar transações de pagamento com instrumentos de pagamento/cartões, e iii) efetuar pagamentos aos lojistas (liquidação de transação). A partir da análise dessa mesma estrutura, esta Corte Superior já teve a oportunidade de examinar algumas demandas em que contendiam i) o portador e o emissor (REsp 1.898.812/SP e REsp 1.633.785/SP); ii) o lojista, a credenciadora e a subcredenciadora (REsp 1.990.962/RS), e iii) o lojista e a credenciadora (REsp 2.180.780/SP e REsp 2.036.764/SP). No caso em apreço, diferentemente, o litígio se estabeleceu entre o emissor e a credenciadora, estando a causa de pedir atrelada à atividade de credenciamento de usuários. A esse respeito, é importante ressaltar que, na atualidade, o credenciamento de novos usuários das conhecidas maquininhas de pagamento (Point Of Sale e outros tipos de equipamento) não se restringe a lojistas, com todas as características inerentes à atividade comercial, não sendo incomum encontrar esse tipo de equipamento com vendedores ambulantes, com pequenos prestadores de serviços de forma não habitual e não profissional e até com os conhecidos "flanelinhas", que delas se utilizam para recebimento de gorjetas, tamanha a facilidade de acesso e credenciamento. Também é importante salientar que o uso das referidas maquininhas não está mais restrito a operações de crédito e débito, sendo possível, atualmente, realizar pagamentos via "QR Code" e "Pix", mediante utilização conjugada do equipamento fornecido pela credenciadora com o aplicativo bancário do cliente, além de diversas outras operações (antecipação de recebíveis, geração de relatórios de vendas, gestão de estoque etc.). Diante desse expressivo aumento de operações possíveis, diversas normas foram e continuam sendo constantemente editadas pelas autoridades competentes com o intuito de regulamentar esse setor, surgindo, a partir delas, diversas obrigações para todos os personagens envolvidos. Esse cenário não seria diferente para as entidades credenciadoras, que, além de estarem obrigadas a prestar informações aos diversos órgãos de fiscalização, dos mais variados setores (tributário, financeiro etc.), estão submetidas a um emaranhado de normas regulamentares, a exemplo da Resolução BCB nº 150, de 6 de outubro de 2021, e às próprias disposições da Lei nº 12.865/2013. No caso, o autor afirma que a credenciadora ré não teria observado esses deveres legais e regulamentares a ela impostos ao permitir o credenciamento de um agente fraudador, em favor de quem teriam sido efetuados diversos pagamentos indevidos. É importante recordar que os arranjos de pagamento constituem operação de alta complexidade, resultante da pluralidade de contratos que se inter-relacionam com vistas a alcançar um objetivo comum. Dessa complexa teia de relações jurídicas, exsurgem responsabilidades para todos os entes envolvidos no arranjo de pagamento - portador, emissor, bandeira, credenciador, subcredenciador e lojista, - sendo igualmente certo que, para o sucesso de atos fraudulentos, todos eles podem concorrer, ao menos com culpa. Diante desse cenário, além de responder perante o lojista por falhas no processamento de transações de pagamento realizadas com os instrumentos que elas disponibilizam (maquininhas), as credenciadoras também poderiam, em tese, responder perante os demais entes envolvidos em tais operações na hipótese de comprovação de falha no credenciamento de usuários. Com efeito, em casos de fraudes, a credenciadora pode ser responsabilizada por danos aos demais integrantes do arranjo de pagamento caso não ofereça segurança mínima e não cumpra as disposições regulamentares, podendo sua responsabilidade também exsurgir das próprias disposições contratuais entabuladas entre ela e os demais personagens envolvidos em tais operações. Nesse contexto, a realização de prova pericial, com foco nas áreas de compliance e de gestão de riscos, mostra-se necessária para apurar se a credenciadora de arranjos de pagamento, no desempenho de sua atividade, não vem cumprindo suas obrigações legais e regulamentares.
Agravante do art. 61 II f no abandono material em contexto doméstico e de coabitação
A agravante do art. 61, inciso II, alínea f, do Código Penal é de natureza objetiva e visa a recrudescer a censurabilidade da conduta delitiva em contextos de relações de proximidade e vulnerabilidade intensificada. As relações domésticas referem-se àquelas estabelecidas entre membros de um núcleo familiar, independentemente de vínculo consanguíneo, sendo suficiente a convivência sob laços de afetividade e assistência mútua. Trata-se de conceito amplo, abrangendo situações em que há dependência material ou emocional, sendo prescindível a existência de parentesco formal. A coabitação, por sua vez, denota a partilha de um mesmo espaço habitacional, caracterizando uma convivência sob o mesmo teto que, por sua própria natureza, propicia um ambiente de controle e influência recíproca. É nesse cenário de proximidade cotidiana que se potencializam os riscos de abusos e violências, o que justifica, sob a ótica do legislador, a exacerbação da resposta penal quando da prática de ilícitos sob essas circunstâncias. No que tange ao abandono material, tipificado no art. 244 do Código Penal, cuida-se de crime omissivo próprio, cuja consumação prescinde de resultado naturalístico, bastando a conduta negativa do agente em prover os meios de subsistência aos seus dependentes legais. A reprovabilidade do tipo penal assenta-se na quebra do dever jurídico de assistência material, especialmente em contextos de vulnerabilidade acentuada. A análise dos fundamentos normativos da agravante permite vislumbrar que sua aplicação transcende a mera constatação de vínculo familiar ou de coabitação. A prevalência de relações domésticas ou de convivência sob o mesmo teto, quando utilizada como instrumento de controle, dominação ou abuso para perpetração do abandono material, eleva a reprovabilidade da conduta. No caso em análise, a situação de abandono e negligência ficou evidenciada, pois as vítimas (crianças em situação de extrema vulnerabilidade) eram submetidas a condições de vida indignas, marcadas pela privação de alimentação adequada, falta de higiene básica e ausência de cuidados médicos essenciais. A coabitação entre os acusados (a mãe e o padrasto) e as vítimas é aspecto determinante para a aplicação da referida majorante. Isso porque, a convivência sob o mesmo teto, revela que a exposição das crianças à situação de abandono se dava em ambiente doméstico, espaço que, por natureza, deveria representar segurança e proteção. Nesse contexto, a responsabilidade dos acusados, por serem os responsáveis diretos, transcende a mera obrigação legal de sustento, alcançando o campo da tutela integral e contínua, que se manifesta no dever de cuidado, zelo e assistência. Com efeito, o vínculo de convivência doméstica acentua a gravidade da omissão, uma vez que a exposição constante das vítimas à situação de negligência reforça a vulnerabilidade, potencializando os efeitos deletérios da conduta omissiva. Diante desse panorama, indiscutível a aplicação da agravante, haja vista a coexistência dos requisitos normativos previstos no art. 61, II, f, do Código Penal: (i) a relação de coabitação entre agentes e vítimas; (ii) a preexistência de um vínculo doméstico que impunha aos acusados o dever de amparo e proteção; e (iii) a perpetração do abandono material no ambiente familiar, agravando a situação de vulnerabilidade das crianças.
Ilegalidade da cobrança de honorários pela Fazenda Pública em transação tributária sem previsão legal
Discute-se, no caso, se a parte recorrida, que renunciou ao direito pleiteado na presente ação como condição para aderir à transação tributária prevista na Lei n. 13.988/2020, deve ser condenada ao pagamento de honorários advocatícios, com base no artigo 90 do Código de Processo Civil/2015, aplicado subsidiariamente. Dentre os compromissos a serem assumidos pelo administrado/contribuinte na celebração da transação, previstos no art. 3º da Lei n. 13.988/2020, está a renúncia do direito objeto do litígio, independentemente de qual ação judicial está sendo utilizada para discutir o valor cobrado pelo fisco. O parágrafo 1º deixa evidente que o administrado/contribuinte deve aceitar todas as condições estabelecidas na Lei e sua regulamentação, confessando o débito. Diferentemente de outros acordos que possam ser realizados, os dispositivos legais transcritos deixam clara a supremacia da Fazenda Nacional na celebração da transação, ao fixar suas condições no edital que a parte aderirá ou não. Não há negociação e sim aceite ou não pelo administrado/contribuinte das condições impostas, ou seja, não há horizontalidade na relação. Por sua vez, quanto à incidência dos honorários advocatícios na renúncia, pelo contribuinte, das ações judiciais nas quais o valor transacionado está sendo discutido a Lei n. 13.988/2020 é omissa. Assim, essa é a questão que se coloca: realizada a adesão do contribuinte à transação, em caso de silêncio da respectiva lei regente, deve ser aplicado subsidiariamente o CPC/2015, como lei geral, para arbitramento de honorários quando da renúncia ao direito em que se fundam ações judiciais em andamento? A transação apresenta verdadeira novação em relação ao crédito tributário que estava sendo discutido judicialmente. Toma-se o valor do crédito, divide-se pelo número de parcelas, e eis o valor que será cobrado do contribuinte. Não é possível admitir que, após a transação, se venha a incluir no montante transacionado novos valores não previstos na lei que a instituiu nem no edital com o qual o contribuinte concordou. A cobrança de honorários advocatícios não previstos no instrumento de transação - elaborado pela própria Fazenda Nacional - viola os princípios da boa-fé e da não-surpresa. Nessa esteira de raciocínio está o venire contra factum proprium, implícito na cláusula geral da boa-fé objetiva, pois não há previsão de honorários na lei que rege a matéria nem na Portaria da transação elaborada pela própria Fazenda Nacional. Assim, não cabe a ela requerer ao Poder Judiciário que supra uma lacuna que ela mesma criou. Não se trata aqui de negar vigência ao art. 90 do CPC/2015, que versa sobre a incidência de honorários sucumbenciais em caso de renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação. É que a renúncia, em geral, é o ato unilateral da parte, a qual havia ingressado em Juízo e, por qualquer razão, desejou deixar de litigar. Aplica-se a regra geral do CPC/2015. Contudo, no caso da transação tributária, o negócio jurídico realizado tem todas as suas condições estabelecidas na nova lei que a instituiu. E elas estão todas previstas no artigo 3º da Lei n. 13.988/2020 e respectivas regulamentações. No tocante ao princípio da segurança jurídica, o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que: "a proteção da confiança no âmbito tributário, uma das faces do princípio da segurança jurídica, prestigiado pelo CTN, deve ser homenageada, sob pena de olvidar-se a boa-fé do contribuinte, que aderiu à política fiscal de inclusão social, concebida mediante condições onerosas para o gozo da alíquota zero de tributos." (REsp 1.928.635/SP, rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 10/8/2021, DJe de 16/8/2021). Aqui a renúncia não é totalmente voluntária. É uma condição para a realização da transação a que o contribuinte aderiu, como a própria Fazenda Nacional alega em seu recurso especial. Por isso, somente podem ser incluídos no instrumento de transação as verbas expressamente previstas na legislação que a permitiu. Ou seja, a situação foge ao que ordinariamente se encontra, e não se pode aplicar a regra do CPC/2015 de forma subsidiária. Aplica-se o art. 171 do Código Tributário Nacional: somente valem as condições expressas na lei. Desse modo, sem previsão na legislação que instituiu as condições da transação, a Fazenda Pública não pode cobrar honorários sem violar os princípios da segurança jurídica, da boa-fé do administrado e da proteção da confiança. O silêncio da norma quanto à aplicação de honorários advocatícios não permite a aplicação do artigo 90 do CPC/2015 ao caso, pelas razões já expostas. Sendo assim, o fato de a Lei n. 13.988/2020 e a Portaria PGFN n. 14.402/2020 silenciarem a respeito da inclusão de honorários sucumbenciais por ocasião da renúncia em ações em andamento não constitui uma omissão a ser suprida pela aplicação subsidiária do CPC/2015. É um silêncio deliberado, que leva à aplicação da lei especial, o art. 171 do CTN e a lei específica que regula a transação e exclui a aplicação da lei geral.
Impossibilidade de revisão judicial do índice de correção em plano de recuperação judicial homologado
Cinge-se a controvérsia em saber se é possível a revisão judicial do índice de correção monetária estabelecido no plano de recuperação judicial regularmente homologado. Embora a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça - STJ, no REsp 2.081.432/SC, tenha uniformizado o entendimento de que a taxa do Certificado de Depósito Interbancário (CDI) não pode ser adotado como índice de correção monetária em contratos bancários, por não representar a desvalorização do valor da moeda em razão da inflação, forçoso reconhecer que este entendimento não se estende aos casos em que referida taxa foi prevista no plano de recuperação judicial, regularmente aprovado pela Assembleia Geral de Credores e homologado. Isso porque, o controle da legalidade é a atividade jurisdicional voltada à verificação da regularidade formal e material do plano de recuperação, em respeito às normas legais e constitucionais, sem interferência na autonomia privada dos credores, salvo em casos de flagrante ilegalidade, abusos ou vícios que comprometam o interesse público ou os direitos indisponíveis. Por seu turno, o juiz não pode rejeitar o plano com base em juízo subjetivo de viabilidade econômica, pois isso compete exclusivamente aos credores, nem alterar cláusulas do plano, exceto se forem ilegais. E, no caso dos autos, não foi constatado nenhum abuso ou ilegalidade que justificasse a intervenção do Poder Judiciário no mérito da decisão negocial deliberada pelos credores no 5º Aditivo do Plano, homologado em 02.02.2022 e juntado no REsp 2.193.929/SP. Não obstante as recuperandas impugnarem a taxa CDI utilizada como remuneração do capital, não há como desconsiderar que o aditivo foi apresentado pela própria empresa recuperanda, portanto, sabedora do impacto que essa escolha poderia resultar ao longo dos anos. Na recuperação judicial, a boa-fé fica ainda mais acentuada na execução do plano aprovado, de modo que a alteração unilateral de alguma de suas cláusulas pelas devedoras causaria flagrante desequilíbrio e insegurança jurídica, em um ato que pressupõe renúncia e perda financeira dos credores em prol do soerguimento da empresa. Desse modo, a pretensão de mudança de índice após a aprovação (e cumprimento parcial) do plano esbarra no princípio da boa-fé, que exige lealdade, transparência, cooperação e confiança mútua entre as partes. Aliás, essa conduta processual contraditória não pode ser legitimada em decorrência do princípio do venire contra factum proprium, considerado como um desdobramento da boa-fé objetiva. Nesse sentido, o STJ já se manifestou expressamente sobre a impossibilidade de revisão judicial do índice de correção monetária estabelecido no plano de recuperação homologado (AgInt no REsp 2.107.336/SP, relator Ministro Marco Aurélio Belizze, Terceira Turma, julgado em 8/4/2024, DJe de 11/4/2024). ] Dessa forma, no caso em análise, tendo-se em vista que os temas discutidos no plano relativos a correção monetária e os juros enquadram-se nas matérias passíveis de deliberação entre os credores e devedores, fica afastada a possibilidade de revisão judicial do índice estabelecido no plano que foi regularmente aprovado.