Este julgado integra o
Informativo STF nº 849
O Tribunal, por maioria, rejeitou proposta de cancelamento da Súmula Vinculante 5 (“A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”). Para o proponente, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), o procedimento de edição da referida súmula vinculante não teria observado os pressupostos estabelecidos pela Constituição Federal (CF), entre os quais a exigência de reiteradas decisões da Corte sobre a matéria. Além dos vícios formais de inconstitucionalidade, alegava que a Súmula Vinculante 5 afrontaria materialmente o conteúdo normativo axiológico da CF por contrariar o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa. Em vista disso, postulava-se seu cancelamento. Prevaleceu o entendimento do ministro Ricardo Lewandowski, no que acompanhado pelos ministros Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Ao rejeitar a proposta, asseverou que o CFOAB buscou refutar cada um dos fundamentos que serviram de base para o julgamento do Recurso Extraordinário 434.059/DF (DJe de 12.9.2008). Rememorou que, no referido julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, concluiu que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a CF. Observou, também, que, durante as discussões em plenário, não se proibiu a participação dos advogados nos processos administrativos disciplinares. Pelo contrário, determinou-se que a Administração Pública viabilizasse a presença de advogado nesses procedimentos administrativos, bem como cientificasse os servidores públicos acerca da possibilidade de contratação desse profissional para sua defesa. Para o ministro, mero descontentamento ou divergência quanto ao conteúdo do verbete não propicia a reabertura das discussões sobre tema já debatido à exaustão pelo STF. Ademais, para se admitir a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante, é necessário que seja evidenciada a superação da jurisprudência da Corte no trato da matéria, e que haja alteração legislativa quanto ao tema ou modificação substantiva do contexto político, econômico ou social. Por fim, pontuou que o CFOAB não demonstrou a presença dos pressupostos de admissibilidade e não se desincumbiu da exigência constitucional de apresentar decisões reiteradas do STF que demonstrem a necessidade de alteração ou cancelamento da Súmula Vinculante 5. Tal circunstância impossibilita a análise da presente proposta. Para o ministro Roberto Barroso, há certa hesitação em equiparar plenamente o processo judicial ao processo administrativo, entre outras razões, pela possibilidade de revisão judicial deste último. Sob certos aspectos, no entanto, entendeu que o direito disciplinar sancionatório deve observar cautelas inerentes ao processo penal. Consignou que os precedentes relativos ao cometimento de falta grave no âmbito do sistema penitenciário não demonstram ter havido mudança da jurisprudência da Corte acerca da aplicação da Súmula Vinculante 5. Esta se refere ao típico processo administrativo disciplinar no âmbito da Administração Pública e não propriamente no de infrações cometidas no sistema penitenciário. Afirmou não ter havido mudança substancial na legislação, na jurisprudência ou na percepção da sociedade, a justificar a revisão ou o cancelamento da Súmula Vinculante 5. De acordo com o ministro, a súmula vinculante deve ter certo grau de estabilidade, a qual apenas deve ser removida por fatos suficientemente relevantes, não observados na espécie. Para o ministro Teori Zavascki, a edição de uma súmula vinculante, inclusive para se dar autoridade a ela, precisa atender aos requisitos apresentados na CF. Esse mesmo cuidado deve ser observado em caso de revisão, modificação ou cancelamento de súmulas, sob pena de se negar autoridade e se transformar o verbete vinculante num precedente qualquer, eliminando sua função no sistema, principalmente a de dar estabilidade e segurança às decisões da Corte. Entendeu que, após a edição da Súmula Vinculante 5, não houve alteração da jurisprudência STF sobre a matéria, de modo a não haver motivo para o cancelamento do verbete. Salientou que a referida súmula vinculante não eliminou o direito de defesa por advogado no âmbito dos processos administrativos disciplinares. Nela consta apenas que a presença desse profissional não é obrigatória em tais procedimentos. Ressaltou que, caso se reconheça que a Súmula Vinculante 5 viola a Constituição, também deveria ser reconhecida a inconstitucionalidade das normas que, em processo judicial, dispensam a presença de advogado (nos processos trabalhistas, nos juizados de pequenas causas, nos juizados especiais federais, etc.). Assentou que os processos administrativos estão sujeitos a ampla revisão no âmbito jurisdicional, no qual haverá a defesa técnica necessária. Concluiu que o cancelamento da súmula restauraria situação de insegurança total, pois se devolveria à jurisdição normal uma discussão que a súmula buscou eliminar. Vencidos os ministros Marco Aurélio, Edson Fachin, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia (Presidente), que acolhiam a proposta de cancelamento da Súmula Vinculante 5. O ministro Marco Aurélio observava, inicialmente, que sua edição implicou a superação da Súmula 343 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (“É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”) e que a referida proposta de cancelamento foi ajuizada pelo CFOAB dois meses e seis dias após a edição do verbete vinculante. Ponderava que deveria haver um cuidado maior na observância da norma constitucional que vincula a edição de verbetes vinculantes a reiterados pronunciamentos do Tribunal. Afirmava que a edição da Súmula Vinculante 5 foi motivada pelo que decidido no julgamento do Recurso Extraordinário 434.059/DF (DJe de 12.9.2008) e do Mandado de Segurança 24.961/DF (DJU de 1.4.2004), o qual, aliás, versou sobre tema que nada tinha a ver com processo administrativo disciplinar. Consignou, ademais, que, tanto quanto possível, deve ser garantida a participação de alguém que domine a ciência do Direito, ao menos para que o processo administrativo não seja simplesmente inquisitorial. O ministro Edson Fachin, preliminarmente, afastava qualquer objeção quanto ao conhecimento do pleito. Observava que, no julgamento das Propostas de Súmulas Vinculantes 13 e 54, as quais tinham por objeto o cancelamento e a revisão das Súmulas Vinculantes 11 e 25, a Corte assentou que, para se admitir a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante, seria necessário evidenciar a superação da jurisprudência do STF no trato da matéria, a alteração legislativa quanto ao tema ou, ainda, a modificação substantiva do contexto político, econômico ou social. Ponderava que, embora haja diversos precedentes da Corte no sentido da aplicação da Súmula Vinculante 5, o STF tem afastado a incidência do verbete para apurar infrações disciplinares no âmbito de execução penal. Tais precedentes abriram espaço para debate, rediscussão e eventual cancelamento da súmula. Quanto ao mérito, entendia que o ajuste da jurisprudência parece ter acompanhado o alcance dado — sobretudo pelas organizações internacionais de direitos humanos — aos princípios do contraditório e da ampla defesa. O ministro ressaltava, ainda, que a experiência do direito comparado tem estendido aos procedimentos disciplinares penitenciários as mesmas garantias do processo penal e que há na jurisprudência comparada e na doutrina brasileira uma tendência de aproximação entre o processo administrativo disciplinar e o processo penal. Ponderava que, não raro, as sanções de caráter administrativo assumem características muito próximas às sanções penais. Essa proximidade se dá pelo menos à luz de três critérios pelos quais as garantias penais devem ser estendidas aos acusados administrativos: a) a qualificação dada aos fatos pelo direito interno; b) a própria natureza da infração; e c) o grau de severidade da sanção aplicável ao acusado. Para ele, a riqueza da casuística coletada da experiência internacional está a revelar grande espaço de conformação do chamado direito à assistência legal aos procedimentos disciplinares e ao direito administrativo sancionatório. Destacava que as súmulas vinculantes acabam por colocar um selo jurídico em conquistas hermenêuticas, logo é preciso ter cautela a fim de evitar que o enunciado sumulado se torne autônomo. É certo que a adequada interpretação da súmula vinculante sempre depende dos casos que lhe deram origem e que, particularmente quanto à Súmula Vinculante 5, o principal precedente utilizado foi o Recurso Extraordinário 434.059/DF. Na oportunidade, o Tribunal definiu o direito à defesa, consagrado no art. 5º, LV, da CF, como o direito de informação, de manifestação e de ver os argumentos do interessado considerados. A referida decisão mostrou-se adequada àquele caso, da mesma forma que essa orientação, posteriormente sedimentada no verbete sumulado, serviu como razão de decidir em diversos outros julgados desta Corte. Sendo assim, não há falar em correção da solução adotada relativamente aos casos em que foi empregada. No entanto, as exceções reconhecidas e, assim, o alcance possível de ser atribuído ao direito de ampla defesa, à luz do indicado na jurisprudência comparada, permite compreender que o verbete sumular pode, de fato, prejudicar eventual aperfeiçoamento da compreensão do Tribunal sobre a matéria. Ressaltava, ademais, que o elastecimento do alcance do direito de defesa tem respaldo no próprio texto constitucional (arts. 5º, LV, e 133 da CF). Consignava que a Lei 9.784/1999 prevê, em seu art. 3º, IV, o direito a fazer-se assistir facultativamente por advogado, salvo quando obrigatória a representação por força de lei. O mencionado dispositivo legal reconheceu ao legislador espaço para conformação de situações em que a presença de advogado poderia ser considerada obrigatória. Além disso, não existe vedação constitucional ao reconhecimento do direito à assistência legal obrigatória no processo administrativo disciplinar. Concluía que, na espacialidade que se abre com o cancelamento da Súmula Vinculante 5, haveria a possibilidade de casuística de graduação sem ofensa a direitos fundamentais nem violação das prerrogativas da administração. Nesses termos, a súmula deve contribuir para a formação de uma cultura jurídica que respeite a integralidade do direito e a institucionalização de uma tradição. Por essa razão, em vista de um espaço ainda não sedimentado de conformação de um direito fundamental, o debate acerca do alcance do direito à assistência legal deve ser possível nas vias ordinárias, motivo por que a proposta de cancelamento da Súmula Vinculante 5 deveria ser acolhida. O ministro Luiz Fux, por sua vez, afirmava que a expressão “aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa”, contida na Constituição (art. 5º, LV), significa que, toda vez que puder haver invasão na esfera jurídica de um acusado, ele tem de ter assegurado o contraditório e a ampla defesa. Ressaltou, ademais, que o art. 156 da Lei 8.112/1991 contém norma expressa em sentido semelhante (“É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova pericial”). Asseverava que, seja no âmbito administrativo ou no âmbito judicial, é preciso observar essas garantias às quais a CF se refere, pois hoje a hermenêutica constitucional reclama que haja uma máxima efetividade dos direitos fundamentais consagrados na Carta Magna. Lembrava que a Súmula 343 do STJ foi editada com fundamento no entendimento de que a “presença obrigatória de advogado constituído ou de defensor dativo é elementar mesmo da garantia constitucional do direito à ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes, quer se trate de processo judicial ou administrativo, porque tem como sujeitos não apenas litigantes, mas acusados num sentido geral”. O ministro Celso de Mello ponderava que a observância dos direitos e garantias assegurados pela CF traduz fator de legitimação da atividade estatal, ainda mais quando o poder do Estado objetiva a imposição de sanção de natureza disciplinar a seus agentes e servidores. Enfatizava que, nos procedimentos administrativos, a Administração Pública não pode transgredir postulados básicos, notadamente a garantia do “due process”, que representam prerrogativa indisponível de índole constitucional, assegurada à generalidade das pessoas e não apenas aos agentes e servidores públicos. Mesmo em se tratando de procedimento administrativo, ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos, sem o devido processo legal, sobretudo naqueles casos em que se estabelece uma relação de polaridade conflitante entre o Estado, de um lado, e o indivíduo — inclusive o servidor —, de outro. Citava a jurisprudência da Corte, que se fixou no sentido de assistir ao interessado — no caso servidor público, mesmo em procedimentos de índole administrativa, inclusive naqueles de caráter eminentemente disciplinar, nos quais a Administração Pública exerce típica jurisdição censória —, como direta emanação da própria garantia fundamental do “due process”, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, consoante prescreve a Constituição da República (art. 5º, LIV e LV). Destacava que o respeito às prerrogativas profissionais do advogado constitui uma garantia da própria sociedade e das pessoas em geral. O advogado, nesse contexto, desempenha papel essencial na proteção e na defesa de direitos, garantias e liberdades fundamentais. Concluía, dessa forma, que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar ofende a CF. A ministra Cármen Lúcia ponderava que a redação da Súmula Vinculante 5 leva à interpretação equivocada de que toda e qualquer falta de defesa técnica não ofende a Constituição, o que muitas vezes pode de fato ocorrer.
CF, arts. 5º, LIV, LV; 133. Enunciado da Súmula Vinculante 5 do STF. Enunciado da Súmula 343 do STJ. Lei 9.784/1999, art. 3º, IV. Lei 8.112/1991, art. 156.
Número do Processo
58
Tribunal
STF
Data de Julgamento
30/11/2016
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Cinge-se a controvérsia em verificar se é possível a retificação de registro civil para redesignação de gênero neutro. A tábua axiológica da Constituição Federal funda-se especialmente na tutela da pessoa e na proteção e promoção da sua dignidade. Nesse sentido, quando se tutela a pessoa não se pode retirar do âmbito de proteção a sua personalidade. O princípio do livre desenvolvimento da personalidade garante a autonomia para a determinação de uma personalidade livre, sem interferência do Estado ou de particulares. O direito à autodeterminação de gênero e à identidade sexual, tutelado através da cláusula geral de proteção à personalidade presente no art. 12 do CC, está intimamente relacionado ao livre desenvolvimento da personalidade e da possibilidade de todo ser humano autodeterminar-se e escolher livremente as circunstâncias que dão sentido a sua existência. A evolução jurisprudencial que culminou nas alterações legislativas até então vigentes no ordenamento jurídico brasileiro resultou na possibilidade jurídica de pessoas transgêneras requererem extrajudicialmente a alteraçãode prenome e gênero de acordo com sua autoidentificação. No entanto, observa-se que tais alterações, até agora, levaram em conta a lógica binária de gênero masculino/feminino, uma vez que representam a normatividade padrão esperada pela sociedade, mesmo tratando-se de pessoas transgêneras. Embora não se verifique norma específica no ordenamento jurídico brasileiro que regule a alteração do assento de nascimento para inclusão de gênero neutro, não há razão jurídica para distinguir entre transgêneros binários e transgêneros não-binários. Seria incongruente admitir-se posicionamento diverso para a hipótese de transgeneridade binária e não-binária, uma vez que em ambas as experiências há dissonância com o gênero que foi atribuído ao nascimento, devendo prevalecer sua identidade autopercebida, como reflexo da autonomia privada e expressão máxima da dignidade humana. Todos que têm gêneros não-binários e que querem decidir sobre sua identidade de gênero devem receber respeito e dignidade, para que não sejam estigmatizados e que não fiquem à margem da lei. A lacuna legislativa não tem o condão de fazer com que o fato social da transgeneridade não-binária fique sem solução jurídica, sendo aplicável em tais casos o disposto nos arts. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e 140 do CPC, pois a falta de específica norma regulamentar de um direito não deve ser confundida com a ausência do próprio direito. Assim, é de ser reconhecido o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa transgênera não-binária de autodeterminar-se, possibilitando-se a retificação do registro civil para que conste gênero neutro.
A controvérsia consiste em saber se a prova oriunda do exterior, utilizada no processo penal, é admissível, considerando a alegada ausência de preservação da cadeia de custódia. O Tribunal de origem consignou que "as provas remetidas pelas autoridades estrangeiras, além de serem chanceladas pelo Poder Judiciário do Reino Unido, [...] encontram confirmação na prova obtida por meio do cumprimento do mandado de busca e apreensão pela Polícia Federal". De fato, o ponto de partida da investigação foi uma comunicação internacional - quando autoridades britânicas, ao investigarem uma rede de pedofilia, identificaram conexões com usuários no Brasil. Esta comunicação entre autoridades constitui prática usual e legítima de cooperação internacional no combate a crimes transnacionais, notadamente aqueles relacionados à exploração sexual infantil, que frequentemente operam em redes que transcendem fronteiras nacionais. Contudo, no caso, o conjunto probatório que efetivamente alicerçou a condenação do acusado não é oriundo do exterior, mas foi legitimamente colhido em território nacional, mediante procedimentos que observaram integralmente as garantias constitucionais e processuais exigidas pelo ordenamento jurídico brasileiro. A referida comunicação inicial serviu apenas como notitia criminis , elemento catalisador que desencadeou uma investigação autônoma em território brasileiro. A partir deste ponto, todas as medidas investigativas seguiram rigorosamente o devido processo legal brasileiro: (i) as autoridades policiais federais, ao receberem as informações do exterior, formalizaram um inquérito policial próprio, conduzido segundo a legislação brasileira; (ii) o Ministério Público Federal, no exercício de suas atribuições constitucionais, avaliou os elementos iniciais e representou pela expedição de mandado de busca e apreensão; (iii) o magistrado competente, após análise fundamentada dos requisitos legais, expediu mandado de busca e apreensão, medida cautelar sujeita a estrito controle judicial; (iv) a diligência foi executada por autoridades brasileiras, em território nacional, com observância das formalidades legais; (v) os dispositivos eletrônicos apreendidos foram submetidos à perícia técnica oficial, realizada por peritos federais, seguindo os protocolos nacionais de análise forense digital; (vi) o Laudo Pericial, produzido por expert brasileiro, identificou em equipamentos encontrados na residência do acusado elementos que comprovaram a materialidade delitiva. A condenação do réu baseou-se nas provas produzidas em solo brasileiro. Assim, as alegações relacionadas à quebra da cadeia de custódia das provas estrangeiras tornam-se irrelevantes para o deslinde da causa, uma vez que a condenação não se baseou nas provas enviadas pelas autoridades britânicas, mas no material colhido em operação integralmente realizada em território nacional. Portanto, o argumento defensivo ignora esta distinção fundamental entre a notícia-crime internacional - que apenas iniciou as investigações - e as provas efetivamente produzidas em solo brasileiro, que foram submetidas ao contraditório e à ampla defesa, e que constituíram a base probatória para a condenação.
A controvérsia tem origem em uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal buscando a destruição das intervenções na Área de Preservação Permanente - APP no entorno de reservatório de água de Usina Hidroelétrica (UHE), além de reparação e imposição de deveres de fiscalização, O acórdão recorrido assentou que a ocupação antrópica da área debatida nos autos é antiga. Diga-se, ainda, que não se demonstrou a existência de intervenções humanas posteriores ao marco temporal de 22/7/2008. Logo, a questão controvertida resume-se à pretensão de reconhecimento, em caráter declaratório, da extensão da APP, conforme as disposições do atual Código Florestal. Assim, o objeto recursal é a declaração de que as ocupações antrópicas a partir de 22/7/2008 devem respeitar a APP, tal qual definida na licença ambiental de operação. A Lei n. 12.651/2012, atual Código Florestal, entrou em vigor no curso do processo judicial e suas disposições são dúbias. Não há, porém, maior dúvida quanto à aplicabilidade da lei nova - atual Código Florestal. O ponto nodal está em saber se a disposição transitória do art. 62 do Código Florestal desconstitui a APP delimitada na licença ambiental, na forma do art. 4º, III; ou se a APP definida na licença deve ser respeitada, ainda que apenas para ocupações antrópicas posteriores. A definição é importante, porque a ocupação antrópica em APP deve obedecer a um regime jurídico estrito e rigoroso. A proteção aplica-se ainda que a área não esteja coberta por vegetação nativa (art. 3º, II) e exige a manutenção (art. 7º do Código Florestal) ou a recuperação da flora suprimida (art. 7º, §1º). Intervenção ou supressão da vegetação são toleradas apenas em hipóteses excepcionais (art. 8º do Código Florestal). O Código Florestal define Área de Preservação Permanente como a "área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas" (art. 3º, II). Trata-se, portanto, de fração da superfície sujeita a um regime de proteção, criada em razão de um fato jurídico - existência de um acidente geográfico (rios, lagos, nascentes, encostas, restingas, manguezais, bordas de chapadas, todos de morros, veredas, etc., art. 4º do Código Florestal) -, para atender a uma finalidade especial (art. 6º do Código Florestal), De acordo com a legislação anterior, a APP seria delimitada no licenciamento ambiental, devendo ser de no mínimo 30 (trinta) metros para reservatórios em áreas urbanas e 100 (cem) metros para áreas rurais, contados em projeção horizontal a partir do nível máximo normal, na forma do art. 3º, I, e § 1º, da Resolução n. 302/2002 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA, a qual foi expedida no exercício da competência atribuída pelo art. 4º, § 6º, da Lei n. 4.771/1965 (antigo Código Florestal), com redação dada pela MP n. 2.166-67/2001. As normas definitivas do atual Código Florestal seguem linha bastante semelhante. O "entorno dos reservatórios d'água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d'águas naturais" é Área de Preservação Permanente (art. 4º, III). A extensão da APP não é dada diretamente pela lei, mas pela licença ambiental. A lei estabelece que a área corresponde à "faixa definida na licença ambiental do empreendimento" (art. 4º, III). A redação original previa um mínimo de 15 (quinze) metros para reservatórios "situados em áreas rurais com até 20 (vinte) hectares de superfície", mas essa disposição foi revogada (Lei n. 12.727/2012). Resta em vigor apenas dispositivo que define uma faixa mínima e máxima para a APP, conforme o art. 5º do Código Florestal. Por sua vez, o art. 62 está inserido na Seção II, denominada "Das Áreas Consolidadas em Áreas de Preservação Permanente", no Capítulo XIII, "DAS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS". Esse artigo incide apenas para os reservatórios antigos - "reservatórios artificiais de água destinados a geração de energia ou abastecimento público que foram registrados ou tiveram seus contratos de concessão ou autorização assinados anteriormente à Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001". Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça vem interpretando restritivamente as disposições do Código Florestal que consolidam ilícitos ambientais, perenizando ocupações antrópicas em áreas protegidas. É numa perspectiva de hermenêutica restritiva que o art. 62 do Código Florestal deve ser encarado. Esse artigo, como indica sua própria localização topográfica, apenas consolida ocupações antrópicas preexistentes. A consolidação de ocupações antrópicas anteriores a 22/7/2008 permeia o atual Código Florestal. Em vários de seus artigos, intervenções humanas e supressões da vegetação são tidas por regularizadas, ou abrandadas sanções aplicáveis, no intuito de regularizar situações que, embora contrárias ao direito, são tidas por consumadas. O dia 22/7/2008 é adotado pela lei como o marco temporal dessa tolerância. Todavia, o art. 62 não menciona o marco temporal de 22/7/2008. No entanto, também ele se insere num contexto de consolidação de ocupações antigas, sem revogar o regime perene. Assim, o dispositivo deve ser compreendido como uma tolerância, uma consolidação de ocupações anteriores ao marco temporal. Para ocupações posteriores a essa data, vale a Área de Preservação Permanente definida na forma das normas definitivas do Código Florestal, ou seja, aquela definida na licença ambiental. Destarte, o art. 62 do Código Florestal não desconstitui a APP delimitada na licença de operação. Ele apenas tolera as ocupações anteriores a 22/7/2008. Em suma, mesmo para os reservatórios artificiais de água destinados à geração de energia ou ao abastecimento público que foram registrados ou tiveram seus contratos de concessão ou autorização assinados anteriormente à Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, a faixa da Área de Preservação Permanente é definida na licença ambiental do empreendimento, na forma do art. 4º, III, do Código Florestal, aplicando-se o art. 62 do Código Florestal apenas para consolidar e dar por regularizadas as ocupações antrópicas preexistentes a 22/7/2008.
Cinge-se a controvérsia em definir se o crédito que tem como fato gerador data anterior ao primeiro pedido de recuperação judicial deve ser atualizado, para o fim de habilitação, até o ajuizamento do segundo pedido de recuperação judicial. No caso, foi proferida sentença encerrando a primeira recuperação judicial, tendo a empresa ingressado com um segundo pedido de recuperação judicial. A Corte local entendeu que o crédito deve ser atualizado até a data da primeira recuperação judicial e não até a data do pedido da segunda recuperação. O artigo 9º, inciso II, da Lei n. 11.101/2005, determina que o crédito a ser habilitado pelo credor deve ser atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial. No que tange à recuperação judicial, duas questões devem ser levadas em consideração. Em primeiro lugar, a atualização dos créditos até determinada data tem como objetivo equalizar os parâmetros de correção para uniformizar os direitos dos credores no momento da votação do plano de recuperação judicial. De fato, nas deliberações da assembleia geral de credores, em regra, o voto do credor é proporcional ao valor de seu crédito (art. 38 da LREF). Assim, é necessário que se chegue a uma forma da atualização equânime dos créditos para garantir paridade na votação. Além disso, a justificativa para que o crédito seja atualizado somente até a data do pedido é que, posteriormente, ele será atualizado na forma que dispuser o plano de recuperação judicial, tratando-se de uma garantia mínima. Firmadas essas premissas, é necessário registrar que, no caso, o credor não mais exercerá o direito de voto, seja na primeira, seja na segunda recuperação judicial, que teve seu plano aprovado e homologado. Assim, a atualização terá como finalidade apenas definir um valor sobre o qual irão incidir as regras do plano. Cumpre assinalar que, apesar de o credor não ter se habilitado na primeira recuperação judicial da empresa, sofre os efeitos do que foi decidido naquele primeiro plano. Nesse sentido: "O reconhecimento judicial da concursalidade do crédito, seja antes ou depois do encerramento do procedimento recuperacional, torna obrigatória a sua submissão aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, caput , da Lei n. 11.101/2005." (REsp 1.655.705/SP, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, DJe de 25/5/2022). Nesse contexto, para manter a paridade com os demais credores submetidos ao primeiro plano de recuperação judicial, o crédito deve ser corrigido até a data do primeiro pedido e, em sequência, sofrer os eventuais deságios e atualizações previstos no primeiro plano. Ajuizada a segunda recuperação judicial, deverá seguir o mesmo destino que os créditos remanescentes da primeira recuperação, ainda não quitados, terão.
A questão consiste em saber se o desvio de clientela realizado no curso da relação de trabalho configura concorrência desleal, assim como se há limitação da conduta quanto ao período do contrato de trabalho. No caso, trata-se de ação indenizatória, ajuizada por ex-empregadoras contra ex-empregados e concorrente, por concorrência desleal fundada em desvio de clientela. A busca por clientela é o objetivo de todo empresário. Conquistar clientes significa, de certo modo, "desviar" clientes de outrem. Nesse contexto, é possível, dentro do campo da licitude, que o agente econômico cause danos justos (mesmo que extensos) aos concorrentes. A distinção entre a licitude e a ilicitude está, portanto, na forma como a conquista de clientes é feita. Se a concorrência se dá a partir de atos de eficiência próprios ou de ineficiência alheia, esse ato tende a ser leal. Por outro lado, se a concorrência é estabelecida a partir de atos injustos, em muito se aproximando da lógica do abuso de direito, é que se pode falar em concorrência desleal. Trata-se, portanto, de escolha do contratante que pode decorrer de sua anterior experiência com aquele produto, da indicação de utilização por outrem, do marketing realizado pelo empresário, do prestígio da marca, da qualidade do serviço, da solidez do nome empresarial - situações que envolvem o esforço do empresário. Para a análise dos limites que norteiam a concorrência lícita, há que se considerar, ainda, as hipóteses de vedação contratual de concorrência, a exemplo das cláusulas de não concorrência e confidencialidade, não restabelecimento ou restritivas de concorrência contidas em contratos de trabalho, trespasse e locação de espaço comercial. Especificamente acerca do dever de fidelidade, entende-se que este é inerente ao contrato de trabalho no exercício de sua vigência, com previsão inclusive no art. 482, c , da Consolidação das Leis do Trabalho. A boa-fé no desenvolvimento do trabalho consiste em elemento basilar da relação jurídica entabulada. Encerrado o contrato de trabalho, contudo, eventual condição de não concorrência, caso não previamente pactuada, não mais constitui obrigação a ser observada. Não se desconsidera, contudo, o dever de sigilo quanto às questões confidenciais, as quais estão resguardadas tanto na Lei de Propriedade Industrial como na Lei Geral de Proteção de Dados (artigos 46 a 49). Cumpre registrar que o sigilo não engloba todo conhecimento e informação obtida pelo empregado em sua atividade, porquanto, em seu exercício, ele também desenvolve know-how próprio decorrente da especialidade e anos de experiência. Diante disso, o direcionamento de clientes para a empresa concorrente realizado por empregado no curso da relação de trabalho configura desvio ilícito de clientela, o que se traduz em ato de concorrência desleal, baseado no aproveitamento da condição de representante do empregador no exercício da atividade negocial, conduta que se enquadra no disposto no artigo 195, III, da Lei n. 9.279/1996. No caso, o desvio de clientela perpetrado no exercício do contrato de trabalho dos ex-empregados com a então empregadora preenche os elementos constitutivos do desvio ilícito de clientela. No entanto, em relação ao período que se segue, para que tais condições estejam evidenciadas, faz-se necessária a presença de alguma das hipóteses restritivas da concorrência lícita. Quanto ao ponto, conforme consignado pelo magistrado de origem: "No caso, ausente cláusula contratual expressamente dispondo que os funcionários da parte autora, após o término do contrato de trabalho, estariam proibidos de atuar no setor, com previsão de cláusulas com condições resolutiva, suspensiva ou com sanções em caso de descumprimento contratual, não há que se falar em restrição ao exercício da livre concorrência e da atividade naquele mercado pelos requeridos, o que poderia ser considerado indevido cerceamento ao exercício da livre iniciativa e do exercício de atividade profissional. (..) Ressalto, também, que a atuação no ramo indicado não envolve técnica inovadora ou direito patenteado capaz de justificar a abstenção de seus ex-empregados de se valerem de seus conhecimentos técnicos ( expertise ) na cadeia produtiva de outra empresa, inserindo-se como patrimônio intelectual lícito. Por óbvio, o conhecimento em vendas detido pelos réus também não se qualifica como segredo de indústria". Assim, verifica-se que, em razão da ausência de impedimento legal ou contratual do exercício da atividade pelos ex-empregados em favor da empresa concorrente após sua despedida das ex-empregadoras, não estão preenchidos os elementos configuradores da concorrência desleal, razão pela qual os danos a serem reparados se limitam àqueles gerados até a data do encerramento dos contratos de trabalho.